As Mulheres de Mantilha/VI

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Jeronymo Lirio era negociante de grosso trafico, de bem merecida fama de probidade e de austeros costumes: portuguez de nascimento e muito pobre viera para o Brasil procurar fortuna: sabendo apenas ler, e escrever mal e as quatro especies da arithmetica, começara por varredor do armazem e arranjador de fardos na casa commercial de outro portuguez que o recebeu: activo e fiel agradou ao amo, que nunca deixou, foi gradualmente subindo até primeiro caixeiro depois de oito annos de labor e de provas; no fim de doze annos chegou á socio com direito á terça parte dos lucros da casa e tres annos depois casou com a filha unica do seu patrão, á qual vio pela primeira vez no dia do casamento: ainda viveu algum tempo sob a tutella do sogro e por morte deste que já era viuvo, herdou-lhe toda riqueza e ficou unico representante da casa.

No casamento por aquelle modo realizado haveria que notar a manifestação franca do interesse material, servindo de base, ou razão exclusiva da união de dous corações, de um homem e de uma mulher que não se conhecião; mas no seculo passado erão frequentes os casamentos feitos assim, e não havia então quem se lembrasse de censurar essa pratica absurda e muitas vezes fatal: especialmente na nobreza e no commercio rico a autoridade dos pais não queria em tal ponto reconhecer limites, e amesquinhava até o extremo a condição da mulher que aliás era educada com o preciso cuidado para não revoltar-se contra a inaudita prepotencia: basta lembrar que era de regra que as filhas não aprendessem á ler e ainda menos á escrever.

Se os costumes da época excusavão á Jeronymo Lirio o se ter sujeitado ao casamento com uma noiva a quem nunca tinha visto, nada mais ha no seu proceder que possa desmerece-lo. E' certo que ainda hoje ás vezes a inveja, ás vezes a irreflexão ou a murmuração indesculpavel atirão contra a opulencia de quem começara pauperrimo a lembrança de seus rudes e abatidos serviços no principio da mais afadigosa vida: eis ahi o que é deprimir aquillo mesmo que dá direito, que obriga o elogio! nada ha mais bello nem mais nobre do que a riqueza filha do trabalho e da economia. O homem que assim enriquece, anda e deve andar de cabeça levantada, e é digno de servir de exemplo aos outros homens.

Jeronymo foi um esposo modelo pela sua dedicação e fidelidade á honestissima e docil senhora, com que se casara: viveu feliz e teve de sua união duas filhas, Irene, e Ignez: dera á primeira o nome de sua mãi, á segunda o nome de sua esposa: amou-as extremosamente, mas sem comprometter com os carinhos a sua gravidade de pai: a mãi educou as filhas no sacrario do lar domestico; ensinou-lhes quanto sabia, á rezar, a coser e a bordar, á tocar o cravo e a guitarra, a dançar o minuete, e danças do tempo, a preparar delicadissimos doces, á governar a casa e nada mais: não sabendo ler, deixou-as na mesma triste ignorancia.

O pai foi contando os annos, e medindo a altura e o desenvolvimento das meninas, e dobrando de cuidados logo que as sentio chegadas a idade em que a natureza revela á joven mulher uma subita revolução na vida, embora a innocencia não comprehenda nem explique o mysterioso segredo, pensou no futuro das filhas, e em prudente silencio estudou solicito e perseverante os costumes e o procedimento dos seus caixeiros e dos mais estimados fez logo á um socio em pequena parte dos lucros, á outro guarda-livros da sua casa commercial.

Jeronymo tinha o seu armazem na rua Direita, onde passava os dias, dirigindo as transacções: chegava já almoçado ás oito horas da manhã: ao meio dia em ponto jantava só ou com negociantes e amigos que lhe aceitavão a mesa: todos os caixeiros e empregados da casa commercial jantavão á parte: ás duas horas da tarde começavão a arrefecer os negocios: das tres em diante só os havia para os armazens de retalho, e então retirava-se o negociante para o seio de sua familia que morava em uma grande chacara da Gamboa.

Por mais que eu me exponha á não me perdoarem certas digressões, teimarei nellas, porque são indispensaveis para o conhecimento do estado e dos costumes da cidade do Rio de Janeiro no seculo passado.

A retirada diaria e constante de Jeronymo Lirio para passar a noite na sua chacara da Gamboa, onde fazia morar a familia, era uma das raras excepções que em semelhante pratica se obervava na cidade.

E' verdade que muitos negociantes e homens ricos possuião chacaras nas visinhanças do outeiro da Gloria, no caminho depois chamado rua de Mata-Cavallos, e agora rua do Riachuelo em memoria da mais gloriosa victoria e tambem na Gamboa e no Sacco-do-Alferes; essas chacaras porém servião só para o goso dos domingos e dos dias santificados que erão muitos até perto da metade do seculo actual. Então as familias fazião os seus farneis, convidavão os amigos e na tarde da vespara dos dias sem trabalho lá ião para Mata-Cavallos ou para a Gamboa, como actualmente se vai para Petropolis e para Novo-Friburgo. Aquelles lugares erão solidões, retiros mal povoados, para onde não havia ruas, e apenas azinhagas difficeis, e tinhão fama de perigosos pela lembrança dos roubos e assassinatos que algumas vezes ali facil e impunemente se davão.

Bem poucos, bem raros erão aquelles que tinhão suas familias morando em chacaras, e entre esses contava-se Jeronymo que provavelmente como os outros assim procedia pelo justo receio da insalubridade e das molestias contagiosas que com frequencia erão o flagello da cidade.

Duas causas principaes contribuião para empestar a capital do Brasil: a valla que deu tão feio nome á rua que apenas ultimamente recebeu o de Uruguayana em lembrança de outra importante victoria, era valla aberta, immunda, que servia para escoamento das aguas e para despejos, tendo portanto fóco perenne de infecções.

O trafego de africanos escravos já era então muito importante, os miseros filhos d'Africa guardados em multidão em depositos dentro da cidade, propagavão nella suas molestias, e, sem o pensar, vingavão-se da escravidão, envenenando os senhores com os germens da peste que espalhavão.

O conde da Cunha acertara de combater aquella primeira causa de infecções mortiferas, mandando cobrir a valla sinistra com grandes lages, melhoramento incontestavel que a elle se deve embora realisado a alto e violento pagar de sacrificios pelos particulares, cujos escravos forão tomados á força para os serviços dessa, como de outras obras.

Continuava porém ainda a influencia maligna, mortifera dos depositos de escravos africanos no centro da cidade, e, pois que o podia, Jeronymo Lirio praticava prudentemente, conservando a familia longe dos fócos de molestias contagiosas.

Por isso sujeitava-se elle á ir todas as tardes, e algumas vezes á noite para a chacara da Gamboa marchando a cavallo, levando boas pistolas e seguido de dous pagens promptos para defende-lo em algum encontro arriscado, por uma azinhaga quasi sempre deserta, que poucos annos depois se alargou sem corrigir sua tortuosidade para dar lugar à rua que se chamou do Vallongo até o anno de 1849 em que tomou o de rua da Imperatriz em lembrança da passagem que fez por ella após o seu desembarque na capital do Império a virtuosa senhora que é augusta esposa do actual Imperador do Brasil.

A azinhaga que dava caminho para a Gamboa Sacco-do-Alferes e outros pontos muito pouco povoados, era, como dissemos, suspeita de máos encontros, e dada a hypothese de algum caso sinistro, era inutil gritar ali — ah quem d’El-Rei! pois que não havia soccorro possível da autoridade naquelles confins solitarios do Campo do Rosario: em taes apertos cada qual devia, contar exclusivamente com os seus proprios recursos.

Jeronymo Lirio sabia bem que a sua condição de negociante rico era um perigo demais, e portanto não se esquecia nunca de renovar as escorvas das suas pistollas e de se fazer acompanhar sempre por dous e á noite por tres ou quatro pagens escravos que merecião a sua plena confiança por valentes e dedicados.