As Mulheres de Mantilha/XXIV
O jogo de prendas terminou; e Maria, levando outra vez Gonçalo Pereira para a janella, disse-lhe:
— Afortunado e doce entretenimento! abraçamos-nos dez vezes e nos beijamos outras tantas!
— E era isso o que eu devia agradecer-te esta noite? perguntou Gonçalo.— Achas pouco?
— Muito, e pouco.
Maria sorrio-se ternamente e apertando a mão do joven e apaixonado official, tornou dizendo-lhe:
— Não era isso o que eu pensava que me agradecerias, o que ainda penso que me agradecerás.
— Então o que?...
— O que não contavas e nem se quer me pediste: adivinha!
Gonçalo adivinhou immediatamente.
— Passarmos juntos o resto da noite, Maria?
— Sim; mas sob uma condição....
— Qual?
— Dir-me-has o que me escondes: quaes são os projectos de Alexandre Cardoso relativamente á filha do carpinteiro...
— Sempre vil espião!
— Gonçalo!...
— Esta imposição me desatina, e eu declaro que não é possível continuar a obedecer-te.— Tão pouco mereço eu!
— Ah Maria! tu não me dás, vendes-me o teu amor â preço de deslealdade e de deshonra minha!
A bella cortezã, inclinando a cabeça para murmurar um segredo ao ouvido do amante tocou com os labios na face delle, e depois continuando a conversar, torcia levemente com os dedos a ponta do negro bigode do elegante militar.
Dejanira captivava Hercules.
Gonçalo abrazado em apaixonadas flammas, jurou dizer-lhe quanto sabia, quando estivessem sós.
— Porque nâo agora? perguntou Maria.
O tenente corou e disse tremendo e com os dentes cerrados:
— Porque tu és escrava, e eu não sei, se teu senhor te quererá deixar livre.
Maria corou por sua vez, teve um impeto de colera; mas dominou-se e tornou a fallar.
— E se eu o fizer sahir já?....
— Já?...— Em cinco minutos.
— Dir-te-hei tudo immediatamente.
Maria sahio da janella, dirigio-se á sala do jogo, sentou-se junto de Alexandre Cardoso e disse-lhe ao ouvido:
— Ha meia hora que um soldado da guarda do Vice-Rei veio trazer uma carta dirigida á ti.
— Onde está a carta?
Maria mostrou; mas não entregou a carta.
— Da-m'a; disse Alexandre Cardoso: é talvez alguma ordem do Vice-Rei....
— Não é do conde da Cunha....
— Qu'importa? seja de quem fôr; dá-m'a-
— Aqui não; respondeu Maria, retirando-se.
Alexandre Cardoso seguio á cortezã até um gabinete, onde ella entrou.
Maria voltou-se e com voz alterada e os olhos em fogo, disse, mostrando a carta em sua mão:
— Esta letra é de mulher!....
Alexandre Cardoso rio-se do accesso de ciume da amante.— Semelhante carta mandada á minha casa é uma zombaria, uma injuria á que não me resigno!
— Maria; não ha mulher que me escreva; tranquillisa-te.
— Oh!... tranquillisar-me!... exclamou a cortezã, misturando o furor com as lagrimas que dos olhos lhe romperão.
Alexandre Cardoso commoveu-se, ou quiz pôr termo a questão e disse:
— Convence-te de que és louca: abre a carta, e lê o nome de quem me escreve.
Maria tremula de irado ciume rasgou o sobscrito, desdobrou o papel, e vendo a assignatura, sorrio-se e balbuciou um pouco confundida; entregando a carta, que não quiz ler:
— Perdão, Alexandre.
O ajudante official da sala empallideceu, lendo o que lhe communicavão, e visivelmente contrariado fallou á Maria.
— E' forçoso que eu te deixe: um caso imprevisto previsto reclama a minha presença fóra d'aqui: até amanhã.
E, beijando a mão da cortezã, foi á sala do jogo recolher o seu dinheiro, e sahio apressado.
Maria tinha aberto e lido a carta, em que um dos protegidos de Alexandre Cardoso, e encarregado de dar-lhe conta de quanto se passasse com o Vice-Rei, de quem era criado, lhe annunciava que Jeronymo Lirio fôra recebido em audiencia particular pelo conde da Cunha, e estava com este em conversação muito animada.
O ciume da cortezã fôra um embuste para encobrir o reprehensivel abuso do rompimento do sello da carta.
Quando Maria voltou á sala, Alexandre Cardoso já se tinha retirado: ella correu á janella, onde Gonçalo a esperava, e perguntou-lhe:
— Que ha em relação a filha do carpinteiro?
— E' uma bonita menina que nobremente resiste á toda especie de seducção.
— E elle? o seductor?— A' elle proprio nada ouvi; porque confesso que desde algumas semanas me furto ás confidencias e á intimidade de Alexandre Cardoso.
Maria fez um movimento de contrariedade.
— Um dos seus amigos porém ha pouco me revelou um plano atroz, a idéa de um duplo crime....
— Qual?
— Aproveitando o isolamento da casa do carpinteiro, Alexandre Cardoso a fará incendiar, e á pretexto de acudir ao incendio, será presente, e conta poder violentar ou raptar a pobre donzella.
— Quando se effectuará este projecto criminoso?
— Amanhã ou qualquer dia.
— A menina chama-se Emiliana..... o pae Marcos Fulgencio....
— Não sei; como o sabes tu, Maria?
— E' que tu dormes, e eu velo, Gonçalo; nada sabes, e eu sei muito por isso.
— Oh! mas eu tambem sei muito, sei demais!....
— O que, mentiroso?.... — Adorar-te, feiticeira!.....
Maria beijou a fronte de Gonçalo, e fugia-lhe; elle porém deteve-a, segurando-a pelo vestido e perguntou:
— Não basta de canto, de dança e de jogo, Maria?
A cortezã lançou sobre Gonçalo um olhar voluptuoso e delirante.
— Tens razão; respondeu ella; é tarde: as velas estão gastas, as luzes quasi a apagar-se: que outras luzes pois se acendão.
E meia hora depois estavão sós Gonçalo e Maria.