As Reinações de Narizinho/Cara de Coruja

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CARA DE CORUJA

I — PREPARATIVOS



DONA Benta estava ensinando Pedrinho a cortar as unhas da mão direita quando Emilia appareceu na porta e piscou para elle com os olhos novos de seda azul, que a menina lhe havia dado na vespera. Pedrinho respondeu á piscadela com outra, que na linguagem do "pisco", como dizia a boneca, significava: "Que ha de novo?"

— Narizinho está chamando! respondeu Emilia tão baixinho que dona Benta nada percebeu.

— Para que? indagou o menino ainda na lingua do "pisco".

— Para ajudar a arrumar a sala e salvar o visconde.

Desta vez dona Benta pilhou a palavra arrumar e erguendo os oculos para a testa perguntou:

— Que arrumação é essa, Pedrinho?

— Não é nada, vóvó, respondeu elle. E' uma festinha que vamos dar aos nossos amigos do paiz das maravilhas.

— Quer dizer que vamos ter novamente aqui o principe e aquelles bichinhos todos do mar...

Pedrinho riu-se.

— A senhora não entende disto... Eu disse — amigos do paiz das maravilhas, e não do reino das Aguas Claras. Ha muita differença.

— Pois vá receber seus amigos, disse dona Benta depois que acabou de lhe aparar as unhas, mas primeiro lave essa cara. Você comeu manga e está com dois bigodes amarellos.

— Foi de proposito, vóvó, inventou o menino. Quero que elles pensem que sou o conde dos Bigodes de Manga!...

Narizinho estava muito atrapalhada para salvar o visconde que cahira uma semana antes atraz da estante. Logo que Pedrinho appareceu, gritou-lhe:

— Venha acudir o visconde. Estou vendo um pedaço delle lá no fundo; o resto, com certeza, foi devorado pelas aranhas de pernas compridas. Temos que salval-o depressa — e vestil-o, porque os convidados não tardam.

— Já mandou todos os convites?

— Pois de certo. Mandei-os por um beija-flor que todos os dias vem beijar as rosas do pé de rosa da Emilia. Cheguei-me para elle e disse: "Sabe ler?" — "Sei, sim!" respondeu a galanteza. "Então pegue estas cartinhas no bico e vá entregal-as aos donos." E elle pegou as cartinhas e prrrrr!... lá se foi!...

— Para quem mandou convites?

— Para todos — para Cinderella, para Branca de Neve e sua irmã, para o Pequeno Pollegar, Capinha Vermelha, Ali Babá, Gato de Botas — todos!

— Não esqueceu Peter Pan?

— Está claro que não. Nem Aladino, nem o gato Felix verdadeiro. Até Barba Azul convidei.

Pedrinho não gostou da idéa.

— Acho que não deveriamos convidar esse monstro. Vóvó vae morrer de medo.

— Não faz mal, conciliou a menina. Mandei-lhe um convite bem secco, mas se mesmo assim elle vier, nós fechamos a porta bem no nariz delle — bá!... Convidei-o de tanta vontade que tenho de ver se a tal barba é mesmo azul como dizem. Mas tratemos de salvar o visconde.

Pedrinho ajudou-a a desencostar a estante de modo que pudessem pescar o pedaço do visconde com o cabo da vassoura. Não era pedaço, não, estava inteirinho, apenas mais embolorado do que nunca — e tão sujo de poeira e teias de aranha...

— Agora é que vae ficar um sabio completo! Tia Nastacia não acredita em sabio que toma banho, faz a barba e perfuma-se todo. Diz que sabio de verdade é assim — bem sujinho...

— O senhor visconde, ordenou o menino, vae ficar no alto da janella com o binoculo de vóvó para espiar a estrada. Assim que apparecer uma poeirinha lá longe, avise. Agora vou buscar Rabicó.

Rabicó veio de má vontade como sempre, porque fôra obrigado a interromper uma comilança de mandioca. Pedrinho amarrou-lhe na cauda a celebre fitinha vermelha e pendurou-lhe das orelhas dois brincos de amendoim.

— O senhor vae-me ficar na porta para ir recebendo os convidados. Assim que chegar um, abra a porta, pergunte quem é e annuncie: "O senhor ou a senhora Fulano de Tal!" Mas comporte-se e não vá comer os brincos como da outra vez, ouviu?

Emquanto isso Narizinho dizia á boneca, que encontrou a varrer furiosamente, com o pincel de gomma arabica que lhe servia de vassoura, um lugar do chão que o visconde sujara de verde com o seu bolor.

— Chega, Emilia ! Assim você fura o soalho de vóvó. Antes vá tomar banho e vestir seu vestido côr do pomar com todas as suas frutas. Ponha ruge, não esqueça. Está um tanto pallida hoje...

A boneca, téc, téc, téc, muito esticadinha para traz, foi vestir-se. Assim que ella sahiu, o visconde, já no alto da janella de binoculo apontado, annunciou numa voz rouca de sabio embolorado:

— Estou vendo uma poeirinha lá longe !...

— Ainda não, visconde ! E' muito cedo. Temos de ir tomar café primeiro. Só na volta é que o senhor começa a ver poeirinhas.

O café, que já estava na mesa, foi tomado de galope. Vendo aquella pressa, dona Benta perguntou :

— Que reinação vamos ter hoje, Narizinho ?

Nem é bom falar, vóvó! Vae ser uma festa linda, linda até não poder mais. Só reis e principes e princezas e fadas...

— Muito bem, disse dona Benta, mas tenho que escrever uma carta á mana Antonica, porisso não me façam muito barulho. Deixem-me em paz no meu canto.

— Sim, vóvó, mas a senhora tem de espiar um pedacinho da festa — um pedacinho só, sim? Pelo buraco da fechadura. Isso quando ouvir uma grande salva de palmas e um hymno de indios.

A pobre velha fez cara de quem não estava entendendo muito bem tamanha trapalhada. Narizinho teve de explicar tudo. As palmas e o hymno dos indios guerreiros, escripto especialmente pela Emilia, eram para saudar a chegada de Peter Pan, o famoso menino que nunca quiz crescer e que pela primeira vez os vinha visitar no sitio.

Dona Benta prometteu que espiaria.

Voltando á sala da festa, Narizinho gritou para o visconde:

— E' hora!

O pobre sabio, que estava cochilando em cima do binoculo, acordou, espiou a estrada e disse:

— Estou vendo uma poeirinha lá longe!...

— Poeirinha bem pequenininha ou grandinha? perguntou Emilia. Se é grandinha, então aposto que é Pé de Vento que vem vindo.

Narizinho franziu a testa.

— Não convidei Pé de Vento nenhum, Emilia, nem conheço tal personagem.

— Pois eu conheço, retorquiu a boneca. Estou escrevendo uma historinha onde ha o grande principe Pé de Vento, que é o maior levantador de poeira que existe. Uma vez, quando elle tinha justamente tres annos, tres mezes, tres dias e tres horas de idade...

— Feche a torneira, Emilia! Historias só de noite. Não vê que o primeiro convidado já vem vindo?

II — CINDERELLA


Uma carruagem parou no terreiro. O marquez de Rabicó adeantou-se e indagou do cocheiro quem vinha. Depois abriu a porta e annunciou:

— Senhorita Cinderella, a princeza das botinas de vidro!

— Como é estupido! exclamou Narizinho. Cinderella é casada, e não usa "botinas de vidro". Uma boa botina de vidro de garrafa precisa você no focinho...

Depois foi receber a famosa princeza, á qual fez uma grande mesura, dizendo: "Asalam alekun !"

Cinderella admirou aquelle modo oriental de saudação, que Narizinho tinha aprendido num volume das "Mil e Uma Noites" que estava lendo, e como tambem entendesse muito de coisas orientaes, porque ia a muitas festas do principe Codadad e outros, respondeu na mesma lingua: "Alekun Asalam!"

— Faça o favor de sentar-se, princeza ! disse a menina indicando uma cadeira de espaldar marcado com as iniciaes G. B. (Gata Borralheira) em grandes letras de ouro — letras recortadas em casca de laranja por Pedrinho. Depois fez as apresentações :

— Permitta-me, senhora princeza, que apresente meu primo Pedro, o conde dos Bigodes de Manga, e a minha amiga Emilia, marqueza de Rabicó.

Pedrinho saudou Cinderella com uma curvatura de bater com a cabeça no chão. Já Emilia esqueceu todas as recommendações e enfiou-se debaixo da cadeira de Cinderella para ver bem de perto os seus famosos pés calçados do menor sapatinho do mundo.

A menina horrorizou-se com aquella inconveniencia ; Cinderella, porem, achou muita graça. Poz Emilia no collo, dizendo : Já te conheço de fama !

A boneca tomou conta della immediatamente.

— Tambem eu conheço toda a sua historia. Mas ha um ponto alli que não entendo bem. E' a respeito dos seus sapatinhos. Um livro diz que eram de crystal; outro diz que eram de setim. Afinal de contas estou vendo você com sapatinhos de couro...

Cinderella riu-se muito da questão e respondeu que na verdade fôra com sapatinhos de crystal ao famoso baile onde se encontrou com o principe pela primeira vez. Mas que esses sapatinhos não eram nada commodos, faziam callos ; por isso só usava agora sapatinhos de camurça.

— E qual o numero delles?

— Trinta.

— Trinta ? exclamou a boneca admirada. Então meu pé é muito menor porque o meu numero é 3 — e no entanto nunca me appareceu nenhum principe encantado!...

— Sim, disse a princeza sorrindo, mas pode apparecer ainda. Não perca a esperança, Emilia!...

— Ha um outro ponto que me causa duvidas, continuou ella. Que é que aconteceu para a sua madrasta, e irmãs, afinal de contas? Um livro diz que foram condemnadas á morte pelo principe; outro diz que um pombinho furou os olhos dellas...

— Nada disso aconteceu, disse Cinderella. Perdoei-as — e hoje já estão curadas da maldade e vivem contentes numa casinha que lhes dei, bem atraz do meu castello.

— Como a senhora é boa! Se fosse commigo, não perdoava! Sou bem mazinha, não tenho nem uma isca de coração. Tia Nastacia esqueceu de me arranjar um quando me fez...

Narizinho achou que a prosa de Emilia estava se prolongando muito.

— Basta, Emilia, advertiu. Conversar demais com uma princeza é contra as regras da etiqueta.

III — BRANCA DE NEVE


Nesse momento o visconde gritou do alto da sua janella :

— Estou vendo outra poeirinha lá longe!...

— Deve ser a minha amiga Branca de Neve, disse a princeza Cinderella. Branca mora perto de mim e quando passei por lá vi que sua carruagem já estava na porta do castello.

E foi isso mesmo. Minutos depois ouviu-se um toc, toc, toc. O marquez abriu a porta e annunciou:

— A princeza Branca das Neves !

Narizinho damnou outra vez.

— Branca de neve, bobo! disse de passagem, indo receber a recem-chegada.

Introduziu-a, fez as apresentações e levou-a a sentar-se junto de sua amiga Cinderella. Branca reconheceu immediatamente a famosa boneca, apezar de ser a primeira vez que a via.

— E trouxe um presentinho para você, disse, tirando da bolsa um pacote. E' um espelho magico que responde a todas as perguntas que se lhe façam. Toma.

Abriu o pacote amarrado com fita de ouro e deu-o a Emilia.

Que alegria ! A boneca abraçou o espelho, beijou-o, bafejou nelle e depois o limpou, bem limpo, com o seu lencinho de cambraia. Por fim não resistiu á tentação de fazer alli mesmo uma experiencia.

— Diga-me, senhor espelho, qual é a boneca que conta historias mais bonitas?

— E' a illustre marqueza de Rabicó! respondeu o espelho na sua voz magica.

Emilia suspirou. Embora nada dissesse, Narizinho percebeu que aquelle suspiro era de tristeza de já ser casada e não poder casar-se com o espelho.

Branca de Neve contou toda a historia de sua vida, promettendo vir mais vezes ao sitio de dona Benta brincar com a menina e a boneca. Prometteu tambem trazer os anõezinhos que a tinham salvo das garras da má madrasta.

— Onde vivem hoje aquelles sete anõezinhos? perguntou Emilia.

— Vivem commigo, no castello. Tudo lá brilha que nem ouro porque não pode haver no mundo creaturas mais trabalhadeirinhas.

— Oh, exclamou a boneca, porque não dá um delles á tia Nastacia? A coitada vive se queixando que está velha e muito precisada de quem a ajude na cozinha.

— Impossivel! respondeu Branca. Elles são sete e se sahir um, quebra a conta. A gente não deve mexer com o numero sete, que é magico.

Neste ponto da conversa o visconde gritou de novo do alto da sua janella.

— Estou vendo duas poeirinhas lá longe!...

— Duas? exclamou Branca de Neve. Com certeza é Rosa Vermelha e sua irmã Rosa Branca. Nunca andam sem ser juntas.

Eram ellas, sim. Logo que a carruagem parou no terreiro, Rabicó, com toda a burrice, annunciou:

— As senhoras Pé de Rosa Branca e Pé de Rosa Vermelha !

Desta vez Narizinho deu-lhe um pontapé disfarçado, emquanto recebia as duas princezas. Rosa Branca disse logo avisasse que não ao entrar:

— A Bella Adormecida pediu-me que avisasse que não póde vir.

— Que pena! exclamou Narizinho. E por que?

— Não sei. Supponho que está se preparando para espetar o dedo noutro espinho e dormir outros cem annos.

Emilia immediatamente veio perguntar pelo urso que tinha virado principe e casado com Rosa Branca.

A princeza deu uma risada gostosa.

— Pois se o urso virou principe, como ha de existir ainda?

— Sei disso, replicou Emilia toda espevitada. Mas pelo menos a pelle hade existir. Eu queria tanto ver uma pelle de urso que virou principe...

Depois contou que sabia a historia das duas e que muito se indignara com as brutalidades do anão de barba comprida.

— Você querendo fazer o bem para elle e o burro (ai!... não me belisque, Narizinho!) sempre com malcreações.

— Anões são gentinha perigosa, disse Rosa Vermelha. Se uns são anjos de bondade, como aquelles sete do castello de Branca, outros são verdadeiras pestes. E' muito perigoso lidar com essa gentinha.


IV — O PEQUENO POLLEGAR


O visconde gritou mais uma vez :

— Vem vindo uma poeirinha tão pequenininha que até parece poeira de camondongo!...

— Quem poderá ser? exclamaram as princezas interrompendo a conversa.

Logo depois ouviu-se um tic, tic, tic, na porta, e Rabicó annunciou:

— Um senhor pingo de gente com umas botas maiores do que elle !

— Pequeno Pollegar! adivinharam todas — e acertaram.

Esquecidas de que eram famosas princezas, foram correndo receber o pequenino heroe. Era elle o chefe da conspiração para fugirem dos embolorados livros de dona Carocha e virem viver novas aventuras no sitio de dona Benta. Pollegar já havia escapado uma vez e apezar de ter sido capturado, estava preparando nova fuga — delle e de varios outros.

Emilia ficou num assanhamento jamais visto. Agarrou o heroezinho e não o largou mais. Botou-o no collo, fel-o contar toda a sua vidinha. Depois o levou ao seu quarto de boneca para lhe mostrar a porção de brinquedos que tinha.

— Antes de mais nada, tire as botas. Nem sei como o senhor tem coragem de andar com tamanho peso nos pés!...

— E' que sem ellas não valho nada. Sou pequenino demais, e fraco, mas com estas botas não tenho medo nem de gigante.

— E de elephante? perguntou Emilia.

— Nem de elephante, nem de hippopotamo, nem de rhinoceronte, nem de girafa, nem de anão mau, nem de serpente...

— E de jacarépaguá? perguntou ainda a boneca, para quem jacarépaguá devia ser o monstro dos monstros.

— Nem de jacarépaguá, nem de nada. Cada passo desta bota anda sete leguas. Acha que um jacarépaguá pode me pegar?

— Que belleza! exclamou Emilia extasiada. Eu, se fosse o senhor, deixava-as aqui no sitio por uma semana. Que bom! Poderiamos brincar o dia inteiro de estar aqui e estar lá no mesmo instante!...

Das botas passou aos seus brinquedos. Mostrou-lhe uma collecção de feijões pintadinhos que tia Nastacia lhe déra, o pincel de gomma arabica que lhe servia de vassoura e mil coisas.

Pollegar gostou de tudo, principalmente dum pito velho que tinha sido de tia Nastacia — um pito sem canudo. Gostou tanto que a boneca lhe disse:

— Pois se gosta, leve, que arranjo outro. Mas, com perdão da curiosidade, para que é que o senhor quer esse pito?

— Para brincar de esconder, respondeu o pingo de gente dando um pulo para dentro do pito e ficando tão bem escondidinho que ninguem seria capaz de o descobrir.

Emilia era muito interesseira. Gostava de receber presentes, mas não de dar. O unico presente que deu em toda sua vida foi esse pito. Mesmo assim, mais tarde, quando se lembrava do pito suspirava.

Estavam naquillo quando rompeu um grande rumor na sala. A boneca foi correndo ver o que era. Encontrou Branca de Neve muito assustada dizendo a Rabicó:

— Não abra! E' o malvado que matou seis mulheres!...


V — BARBA AZUL


Branca chegou a ficar zangada com Narizinho.

— Como é que para uma festa destas convida um monstro como esse? Se eu soubesse não vinha.

A menina, muito desapontada, desculpou-se dizendo que não resistira á tentação de verificar se a barba delle era mesmo azul como diziam. Mas as princezas que não se assustassem, pois Rabicó não abriria a porta. E ansiosa por ver a tal barba, correu a espiar pelo buraco da fechadura.

— E é azul mesmo! exclamou. Azul como um céu!... Que horrendo monstro! Imaginem que traz na cintura um collar de seis cabeças humanas...

Não podendo resistir á curiosidade as princezas tambem foram espiar. Cinderella observou:

— E' exquisito isto! Sempre suppuz que o irmão da setima mulher de Barba Azul houvesse matado esse monstro!...

— E' que não matou bem matado, explicou Emilia. Outro dia aconteceu um caso assim aqui no sitio. Tia Nastacia matou um frango, mas não matou bem matado e de repente elle fugiu para o quintal...

Barba Azul damnou de não o deixarem entrar. Deu varios murros na porta, ameaçando de se casar com todas aquellas princezas.

Emilia perdeu a paciencia; botou a boquinha no buraco da fechadura e berrou:

— Pois case, se for capaz! Mando Pé de Vento te ventar para os confins do Judas. Vá pintar essas barbas que é o melhor, sêo cara de coruja!

Barba Azul virou as costas e lá se foi, furioso da vida, resmungando como negra velha.

Logo em seguida chegou Aladino, recebido com grandes festas. Todos queriam ver a sua lampada maravilhosa e seu anel magico. Emilia perdeu a vergonha, chegando a pedir que lhe désse a lampada.

— Não seja tão pidonha assim, Emilia! advertiu a menina puxando-a de lado.

— Não é dada que eu quero, Narizinho. E' emprestada; depois a entrego outra vez.

Aladino era um bello rapaz. As princezas o rodearam de tantas festas que os principes, seus maridos, haviam de ficar com ciumes, se estivessem presentes.

Depois veio o Gato de Botas. Narizinho e Emilia aproveitaram a occasião para lhe contar toda a historia do falso gato Felix, que se impingiu como cincoentaneto delle.

— Mentira cynica! disse o Gato de Botas. Nunca me casei. Não tenho nem filho, quanto mais cincoentaneto!

O Pequeno Pollegar veio cochichar ao ouvido delle alguma coisa — com certeza a respeito da tal conspiração contra dona Carocha. Emilia bem que apurou o ouvido para ver se pescava alguma coisa, mas foi inutil.

Nisto Cinderella bateu na testa, exclamando muito assustada:

— Céus! Deixei minha varinha de condão em cima do criado-mudo! E' capaz dalgum máu genio apparecer por lá e furtal-a...

Immediatamente o Gato de Botas e Pequeno Pollegar se offereceram para irem ao castello buscar a varinha. Cinderella acceitou, com um sorriso de allivio.

Minutos depois voltavam elles, cada qual segurando a vara por uma ponta. Tanta foi a alegria da pobre princeza que deu um beijo na testa de cada um.

Emilia quiz por força que Cinderella lhe desse a varinha, ao menos para a segurar por uns momentos. Insistiu tanto que Narizinho teve de ralhar com ella.

— Se continua com esses peditorios, leva um beliscão, está ouvindo? disse-lhe ao ouvido.

A boneca fez bico e emburrou. Rosa Vermelha consolou-a, pondo-a no collo e promettendo mandar-lhe um sacco de presentes cada qual mais lindo. E estava ainda dizendo que presentes seriam, quando a porta se abriu com violencia. Havia entrado um novo personagem, muito afflicto, com ar de quem foge da perseguição de alguem. Entrou, fechou a porta com a tranca e ainda ficou a escoral-a com os hombros, de olhos arregalados de pavor.

— Ali Babá! exclamou Cinderella, que o conhecia dos bailes no castello do principe Codadad.

O jovem voltou-lhe os olhos, como que pedindo que se calasse.

Psit!... Os quarenta ladrões souberam que eu vinha. Armaram uma emboscada ahi no terreiro e por um triz que não me apanham...

— Como? exclamou Narizinho. Pois a Morgiana não matou essa gente toda com azeite fervendo?

— O azeite não estava bem fervendo, respondeu Ali Babá. Queimou só, não deu para matar. Sararam, e agora andam me perseguindo por toda a parte.

Aladino pulou á frente com a sua lampada na mão.

— Espere que já curo esses malandros! disse. Chamo o Genio e elle espalha os quarenta ladrões num pingo de minuto.

— Que horriveis, fuças! dizia Narizinho com os olhos no buraco da fechadura. Parece que foi nas caras que cahiu o azeite fervendo. Todas ainda mostram as cicatrizes...

Aladino passou a mão pelo vidro da lampada. Uma fumacinha começou a surgir, que logo se transformou no Genio.

— Amigo Genio, disse elle, vá lá fóra e espalhe duma vez para sempre esses quarenta bandidos que vivem atropelando o meu amigo Ali Babá.

Ninguem sabe o que o genio fez, mas quem fosse ao terreiro logo depois não veria nem rasto de um ladrão, quanto mais os quarenta juntos!

Ali Babá agradeceu muito a boa acção de Aladino. Abraçaram-se, ficando desde ahi os maiores amigos do mundo.


VI — OUTROS CONVIDADOS


Em seguida veio o alfaiate que matava sete de um golpe. Veio tambem o soldadinho de chumbo que depois de ter sido derretido ao fogo se transformou em coração.

— E como virou soldadinho outra vez? quiz saber Emilia.

— Uma linda fada que leu minha historia chorou uma lagrima tão sentida que virei soldado outra vez.

— E a dançarina de saiote côr de rosa? Morreu no fogo tambem?

— Essa morreu para sempre, respondeu o soldadinho, fingindo que se assoava, mas de facto enxugando uma lagrima. O burrinho achava que como era soldado não devia mostrar fraqueza, chorando.

Depois veio o Patinho Feio, filho daquelle outro que virara em cysne. Assim que entrou, Emilia, que já tinha visto tia Nastacia matar um pato, foi depressa cochichar-lhe ao ouvido:

— Não saia daqui, não vá á cozinha, ouviu? Lá mora uma fada preta que não tem piedade nem de frangos, nem de patinhos. Pega nos coitados e vae logo torcendo o pescoço. Sabe para que? Para assal-os no forno, imagine!...

O pobre patinho levou tamanho susto que teve de se encostar á parede, mais pallido que uma vela de cera — das que não são côr de rosa.

Hansel e Gretel vieram em seguida, sendo muito festejados. Emilia quiz saber noticias daquelle ossinho que mostravam á feiticeira cada vez que ella dizia: "Hansel, mostre o dedinho, para eu ver se está engordando." Emilia achava que como tinham sido salvos por aquelle ossinho, era injustiça não terem feito delle um collar para ser trazido ao pescoço.

Depois chegou a Scheherazade, acompanhada de todos os heroes das "Mil e Uma Noites". Como não pudessem entrar na sala, muito pequena para contel-os todos, tiveram de ficar no terreiro. Narizinho, Emilia e as princezas correram á janella, donde puderam regalar-se de ver o Pescador e o Genio, o Cavallo Encantado, os principes Codadad e Ahmed, Sindbad o Marujo, Morgiana e mais uma multidão de sultões, sultanas, califas e escravos nubios, pretos e lustrosos como jaboticabas.

— Porque não trouxe tambem o passaro Roca? perguntou Emilia a Scheherazade.

— Que idéa! respondeu a princeza sorrindo. Para que esse bruto derrubasse uma pedra em cima do sitio de dona Benta e nos esmagasse a todos como fez com o navio de Sindbad?

Depois vieram os heroes gregos, o valente Perseu que matou a Gorgona, o heroico Theseu que matou o Minotauro e até a cabeça de Medusa, espetada na ponta de um pau, com aquella porção de cobras se mexendo em lugar de cabellos.

Tantos personagens maravilhosos vieram que o terreiro de dona Benta ficou de não caber um alfinete. Narizinho olhava, olhava, no maior extase da sua vida. Só reis e principes e fadas e anões e madrastas bôas e más, e bruxas e magicos de chapeus em forma de cartucho e ursos que viram principes e lobos de dentuça arreganhada...

Só Peter Pan não apparecia — e isso muito amolava Pedrinho. Seu grande desejo era justamente conhecer Peter Pan.

Estavam todos á janella regalando os olhos naquelle espectaculo nunca visto no mundo, quando Emilia se poz a philosophar.

— Estou pensando na vacca mocha, disse ella. A coitada costuma deitar-se ahi no terreiro todas as tardes. Imaginem a surpreza della agora! Olha dum lado, vê um rei. Vira-se de outro, dá com um anão. Sacode a cauda e bate numa princeza. A coitada deve estar que nem mover-se pode. Se não morrer de medo, é capaz de seccar o leite — e amanhã dona Benta vae ficar damnada!...


VII — A COROINHA


Depois que Narizinho e as princezas se enjoaram de ver aquella maravilha, resolveram dançar. A boneca immediatamente sahiu para arranjar pares. Foi ao terreiro e trouxe de lá o principe Ahmed, o principe Codadad e outros.

Narizinho agarrou em Codadad antes que alguma princeza o fizesse, e sahiu dançando com elle como se fosse uma princeza oriental. Branca de Neve dançou com o principe Ahmed. Rosa Vermelha foi tirada por Ali Babá, e Rosa Branca, pelo Gato de Botas. Só Cinderella não dançou para não estragar os seus sapatinhos de camurça.

Nisto o visconde, que ainda estava na janella, gritou:

— Estou vendo uma poeirinha lá longe...

Todos pararam de dançar, murmurando: "Quem poderá ser?" Logo depois duma batidinha na porta Rabicó introduziu a menina da Capinha Vermelha.

— Capinha! exclamaram todas, porque todas queriam muito bem a essa gentil menina. Viva Capinha!...

A menina entrou, muito corada por ter vindo a pé, e disse:

— Boa tarde para todos os presentes, ausentes e parentes!

— Em seguida deu um beijo em Narizinho e outro na boneca.

— Antes de mais nada, foi dizendo Emilia, quero saber o seu verdadeiro nome, porque uns dizem Capinha Vermelha e outros Capuzinho Vermelho. Qual é o certo?

— Meu verdadeiro nome é Capinha Vermelha, porque depois que minha boa vóvó me fez esta capinha todos que me viam ir para a casa della diziam: "Lá vae indo a menina da capinha vermelha!" Mas, como vocês podem ver, esta capinha tem um capuz, que eu ás vezes uso. De modo que tanto podem me chamar de Capinha, como de Capuzinho, ou mesmo de Chapeuzinho Vermelho.

— Coitada da sua avó! exclamou Emilia. Você não imagina como ficamos tristes com o que lhe aconteceu! Diga-me: sua avó era muito magra?

— Capinha estranhou a pergunta, mas respondeu que sim.

— Muito magra ou meio magra?

— Bem magra.

— Então não entendo aquelle lobo, disse Emilia, porque uma velha muito magra não é alimento. Só osso...

Todos deram grandes risadas da boneca, obrigando Narizinho a explicar que Emilia, coitada, era asneirenta de nascença.

Nisto o relogio bateu cinco horas.

— Senhoras princezas e senhores principes, disse Narizinho, estão todos convidados para tomar café.

E voltando-se para a cozinha:

— Tia Nastacia! Traga um café bem gostoso para estes illustres amigos.

Quando tia Nastacia entrou na sala com a bandeja de café, seus olhos se arregalaram de espanto.

— Crédo! exclamou. Não sei onde Narizinho descobre tanta gente importante e tanta princeza tão linda! A sala está que até parece um céu aberto...

— Quem é ella? perguntou Branca de Neve ao ouvido da boneca emquanto a negra servia o café.

— Pois não sabe? respondeu Emilia com carinha malandra. Nastacia é uma princeza nubia que uma fada má virou em cozinheira. Quando apparecer um certo anel, que está na barriga dum certo peixe, virará princeza outra vez. Quem vae damnar com isso é dona Benta, que nunca achará melhor cozinheira.

Quando tia Nastacia veio servir Narizinho a menina notou qualquer coisa enganchada em sua saia.

— Que é isso, Nastacia? perguntou ella. Parece uma coroinha...

— A negra abaixou-se.

— Crédo! exclamou. Até parece feitiço. Uma coroinha de rei!... E' que fui ao quintal buscar um pau de lenha e quasi nem pude andar de tanto rei e fada e princeza amontoado lá. Com certeza esbarrei nalgum reizinho e a corôa enganchou na minha saia. Mas não foi por querer, não. Crédo!...

— Estou conhecendo essa coroa! exclamou Rosa Vermelha. E' do meu sogro, o poderoso rei que mora atraz do meu castello. Com certeza viu passar o bando da Sheherazade e correu atraz para espiar.

E guardou no bolso a coroinha para restituil-a ao seu dono.

Todos tomaram café, menos Cinderella.

— Só tomo leite, explicou. Tenho medo que café me deixe morena.

— Faz muito bem, disse Emilia. Foi de tanto tomar café que tia Nastacia ficou preta assim...

VIII — A VARNHA DE CONDÃO


Durante todo aquelle tempo Pedrinho, Aladino e o Gato de Botas ficaram de parte, conversando sobre valentias. Aladino contava as mil façanhas que fizera com a sua lampada maravilhosa. Pedrinho, não querendo ficar atraz, contava as proezas feitas com o seu famoso bodoque. Por fim chegaram até a brigar.

— Pois appareça aqui um dia, disse Pedrinho, para vermos quem pode mais, se você com sua lampada ou eu com o meu bodoque.

— Eu aposto na minha lampada! disse Aladino.

— E eu aposto no meu bodoque! disse Pedrinho.

— O gato de Botas interveio.

— E eu serei o juiz. Em seguida desafiarei a ambos. Quero ver o que vale mais, se esse bodoque e essa lampada ou as minhas botas de sete leguas!...

Emquanto discutiam e marcavam a data do "péga", um accidente muito grave aconteceu na sala. O pobre visconde dormira em cima do binoculo, tão bem dormido, que, de repente, plaf!... cahiu lá do alto um grande tombo no chão. Cahiu e ficou desacordado. As princezas correram a acudil-o com agua e esfregações pelo corpo. Como, porem, o pobre sabio não voltasse a si, foi uma consternação geral.

— O melhor é virar o visconde nalguma coisa, suggeriu Emilia dirigindo-se a Cinderella. Dê-lhe uma boa varada com a varinha de condão, princeza!

Cinderella, achando boa a idéa, assim fez. Mas antes quiz saber no que havia de virar o visconde. Narizinho achava que deviam viral-o num grande magico de chapeu de cartucho. Rosa Vermelha preferia que o virassem em urso. Venceu afinal a opinião da Emilia, que era a mais pratica.

— Tia Nastacia, disse ella, anda precisando dum pilãozinho de soccar sal. Boa occasião para virar o visconde em pilão! Ao menos fica servindo para alguma coisa.

Approvada a idéa, a princeza da varinha bateu nelle, dizendo:

— Vira que vira, vira que vira, vira virando, vira pilão!

Immediatamente o visconde virou num pilãozinho novo, exactamente como tia Nastacia queria. Emilia foi leval-o á cozinha. A negra ficou assombrada. Depois disse:

Mas eu não tenho coragem de soccar sal nesse pilãozinho! Pégo a imaginar que já foi visconde e fico com dó. Em todo o caso, diga a dona Cinderella que agradeço muito o lindo presente, ouviu?

E guardou o pilãozinho numa prateleira, resmungando:

— O mundo está perdido!... Quando eu havia de pensar que o visconde ia acabar assim? Não valemos nada nesta vida! Quando chega a hora de virar, pode ser rei, pode ser visconde, a gente vira mesmo — e ainda é bom quando vira em pilão...

Na sala de baile estavam todos brincando de virar. Cinderella batia com a varinha de condão e virava tudo que lhe pediam. Emilia trouxe todos os seus brinquedos para os fazer virar em outros brinquedos ainda mais bonitos. Depois sentiu saudades dos brinquedos velhos e os fez desvirar novamente.

E estavam ainda nessa brincadeira quando ouviram na porta uma batida exquisita, muito differente das outras. As princezas assustaram-se.

— Parece batida de lobo! disse Capinha Vermelha indo espiar pelo buraco da fechadura.

— E é lobo mesmo! exclamou de lá, arregalando os olhos de pavor. E' justamente o malvado que comeu vóvó!...

Foi uma correria. Narizinho procurou acalmar as princezas.

— Não pode ser, disse ella. O lobo que comeu a avó de Capinha foi morto a machadadas por aquelle homem que entrou. E' o que dizem os livros.

— Deve ser erro de impressão, suggeriu Emilia, que tambem fôra espiar o lobo. E' lobo, sim — e magrissimo! Bem se vê que só se alimenta de velhas bem velhas. Com certeza soube que dona Benta morava aqui e...

Não poude concluir. Narizinho.estava de prantos.

— Pobre vóvó! gemia torcendo as mãos. Que desgraça se o lobo a devora! Chamem Pedrinho e os principes! Corra, Emilia!...

Mas justamente minutos antes Pedrinho e os principes haviam sahido para o terreiro a fim de fazerem uma experiencia com a lampada de Aladino. Estavam as meninas alli sem um homem que as pudesse soccorrer.

— Bata com a vara nelle e vire-o numa pulga, lembrou Emilia já preparando a unhinha para matar a pulga.

— Impossivel! exclamou Cinderella afflicta. Seria preciso abrir a porta e o lobo poderia me agarrar de um bote...

Emquanto isso o lobo continuava a bater, toc, toc, toc, cada vez mais furioso. Depois começou a arranhar a porta, tirando lascas.

Rabicó tremia como geleia; em vez de ajudar as princezas a se salvarem dos apuros, mais atrapalhava. Agarrou-se á saia de Branca de Neve, que teve de afastal-o com um bom pontapé.

— Só o visconde poderá nos salvar! exclamou Emilia. Os sabios sabem meios para tudo.

Disse e foi correndo buscar o pilãozinho para que Cinderella o revirassse em visconde. Cinderella, muito tremula, bateu com a varinha e o visconde surgiu de novo, tonto e assustado.

Narizinho explicou-lhe do que se tratava, apontando para a porta.

— O lobo está arrebentando as taboas. Mais um minuto e está dentro. Veja se acha um geito de nos salvar, visconde!...

Mal a menina acabara de pronunciar essas palavras, o lobo arrancou uma taboa e enfiou o focinho no buraco, farejando o ar.

— Hum! hum!... Estou sentindo cheiro de avó de gente... disse elle.

Era demais. Narizinho desmaiou. Vendo aquillo, as princezas desmaiaram tambem. Emilia ficou na sala sozinha com o visconde.

— Vamos, visconde! gritava ella. Faça alguma coisa! Mexa-se!...

Mas o visconde não sahia do lugar, e só então Emilia percebeu que tinha virado visconde só da cintura para cima, continuando pilão da cintura para baixo. Com a pressa e o nervoso Cinderella só havia dado nelle meia varada..

— E agora? exclamou Emilia coçando a cabeça e pensando lá comsigo se valeria a pena desmaiar tambem. E talvez fizesse isso, se o lobo naquelle instante não arrancasse mais uma taboa e não enfiasse para dentro da sala quasi meio corpo.

Vendo que o monstro entrava mesmo, Emilia berrou com todas as forças dos seus pulmões:

— Acuda, tia Nastacia! O lobo está entrando de verdade e vae comer dona Benta...

Ouvindo o berro, a negra veio lá da cozinha com a vassoura e num instante espantou dalli a fera com umas boas vassouradas no focinho.

— Lobo ordinario! gritou ella. Vá prear no matto, que é o melhor. Dona Benta nunca foi quitute para os teus bicos, cão sarnento!...

— Bravos! exclamou Emilia batendo palmas. A senhora é tão valente que até merece se casar com o passaro Roca.

A preta só disse:

— Em vez de estar ahi a dizer bobagens antes venha me ajudar a acordar estas princezas. Traga depressa uma caneca de agua fria, ande!...

A primeira a ser despertada foi Narizinho.

— Que é do lobo? perguntou ao voltar a si, ainda tonta e com a vista atrapalhada. Já comeu vóvó?

A negra deu uma risada com a beiçaria inteira.

— Crédo! Que idéa! O lobo a estas horas já deve estar chegando na Europa!... e contou o que havia acontecido.

Em seguida despertou as outras. Capinha Vermelha, louca de alegria, abraçou tia Nastacia, promettendo mandar-lhe uma cesta de bolinhos. As princezas tambem a abraçaram, promettendo mandar pilõezinhos de verdade e mais coisas bonitas.

Nisto entrou Pedrinho com os principes.

— Bonito! exclamou Narizinho. Os senhores vão para a troça e nos deixam aqui sozinhas á mercê das feras... e contou tudo.

Aladino ficou aborrecidissimo de haver perdido aquella opportunidade de mostrar o poder da sua lampada e Pedrinho ainda mais, pois que com duas bodocadas tinha a certeza de que o lobo sahiria ventando.

Nesse momento um vulto entrou pela janella, como um grande passaro — Peter Pan! Assim que Pedrinho e os demais o reconheceram, reboou uma grande salva de palmas, seguida do hymno dos indios guerreiros, composto pela boneca.

Dona Benta, que havia acabado de escrever a sua carta, ouviu o rumor e lembrou-se da promessa feita a Narizinho. Veio espiar a festa. Entrou na sala.

— Boa tarde senhor Peter Pan! Fico satisfeita de saber que o senhor tambem é amigo dos meus netos — mas quero que não faça com elles o que fez com Wanda e seus irmãozinhos. Não lhes ensine a voar, senão estou perdida. Se não sabendo voar já são assim, imagine sabendo...

— A senhora pensa que voar é perigoso? perguntou Emilia. Levando o seu guarda-chuva como para-quedas, não ha perigo nenhum!...

— Sei que não ha perigo, disse a velha. Mas sei tambem que se voarem começarão a ir para muito longe e poderão um dia esquecer-se de voltar.

Peter Pan sossegou-a. Disse que nada receiasse, pois só os ensinaria a voar se obtivesse o consentimento della.

IX — A PARTIDA


O relogio bateu seis horas.

— Como é tarde! exclamou Branca de Neve. Tenho de estar no castello ás sete para receber dois principes que vem jantar comnosco.

— E nós tambem, disseram Rosa Vermelha e Rosa Branca. Temos á noite a visita do Passaro Azul.

Cinderella tambem tinha de ir-se, de modo que foi um rodopio de abraços e beijos e palavras de despedidas — tudo num grande atropelo.

— Adeus! adeus! dizia Narizinho, passando dos braços de uma para os braços de outra. Voltem outra vez, agora que sabem o caminho...

Pedrinho, que havia cochichado muita coisa para Pater Pan, despediu-se delle dizendo:

— Quando voltar veja se traz o crocodilo que comeu o capitão Gancho. Tenho muita vontade de ver um crocodilo dessa especie.

A Aladino lembrou o desafio.

— Venha com a sua lampada — e areie bem ella, ouviu?...

Emilia andava de mãos em mãos. Nunca fôra tão beijada e amimada! Quando chegou o momento de despedir-se do Pequeno Pollegar, cochichou-lhe ao ouvido uma porção de coisas sobre dona Carocha, aconselhando-o a fugir de novo para vir morar com elles alli no sitio.

Logo que todos partiram a casa de dona Benta ficou mais vazia do que nunca. Na sala, só os dois meninos e a boneca. No terreiro, só a mocha mascando as suas palhas e Rabicó acabando de comer a sua raiz de mandioca.

Os dois meninos trocavam impressões.

— De quem mais gostei foi de Branca de Neve, dizia Narizinho. Como é boa e linda! Contei-lhe que estive com a aranha que lhe fez o vestido de casamento e Branca ficou muito admirada. Pensou que dona Aranha tivesse morrido do desastre na perna. Nunca imaginei que pudesse haver uma creatura alva assim. Parece feita de coco ralado...

— E eu gostei muito do Gato de Botas, disse Pedrinho. Já Aladino achei um tanto prosa. Pensa que aquella lampada é a maior coisa do mundo.

Nisto Emilia, que havia rolado para debaixo da mesa, deu um grito de espanto.

— Olhem o que está aqui! disse ella. A lampada de Aladino! Com a pressa elle esqueceu-se de leval-a...

— E' verdade, exclamou Pedrinho no auge da alegria. Esqueceu-se e agora a lampada é minha!...

— E está aqui tambem a varinha de condão de Cinderella! berrou de novo Emilia mostrando o precioso talismã. Com a pressa esqueceu-se da vara e a vara é minha. Vou brincar de virar o dia inteiro.

E olhem o que está aqui atraz do armario! gritou por sua vez Narizinho. As botas de sete leguas do Gato de Botas. São minhas — e quero ver quem me pega!...

Ficaram todos os tres na maior alegria da vida, a mirar e remirar aquellas maravilhas e a fazer projectos de aventuras ainda mais extraordinarias que as que os livros contam.

No melhor do enlevo, porem, ouviram uma batidinha tremula á porta, tuc, tuc, tuc...

Emilia foi abrir. Era uma baratinha de mantilha — a celebre dona Carocha...

— Que é que a senhora quer? indagou Emilia.

— Bôa tarde! disse a velha, fingindo não reconhecer a boneca e sentando-se para descansar. Sou dona Carocha, a que toma conta de todos esses personagens do mundo maravilhoso.

— Já sei disso, observou a menina de mão na cintura, prevendo que ia haver complicações. Mas que é que a senhora quer?

— Vim buscar a lampada de Aladino, a vara de condão de Cinderella e as botas do Gato de Botas. Esses maluquinhos, com a pressa de voltarem, esqueceram-se desses objectos aqui.

Foi um desapontamento geral. Emilia quiz mentir, dizendo que não havia alli, nem bota, nem vara, nem lampada. Narizinho teve impetos de se atracar com a velha. Pedrinho chegou a olhar para o bodoque. Mas dona Benta estava na salinha proxima e dona Benta fazia muita questão que seus netos respeitas sem os mais velhos. Porisso resignaram-se a entregar aquellas preciosidades.

— Pois leve, disse Narizinho contendo-se a custo. Mas fique sabendo que o que lhe vale é vóvó estar ahi na salinha. Se não fosse isso...

Dona Carochinha nada disse. Foi tratando de pegar a vara, a lampada, as botas e até o espelho magico que Branca de Neve déra á boneca, raspando-se dalli a toda a pressa.

Mas antes della chegar á porteira Emilia explodiu.

— Cara de coruja secca! berrou. Cara de jacarepaguá cozinhada com morcego e misturada com farinha de bicho cabelludo! Ahn!...

E botou-lhe uma lingua tão comprida que dona Carochinha achou melhor arregaçar a saia e botar-se na carreira — de medo!...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.