As Vítimas-Algozes (1869)/I/VI
A necessidade da alimentação dos vícios torna o vadio ladrão.
Domingos Caetano e Angélica fatigaram-se de duvidar, e cederam à evidência, reconhecendo que Simeão lhes furtava dinheiro e objetos de valor; mas em vez de castigá-lo com severidade, fracos ainda, quiseram ver no crime apenas uma extravagância da mocidade, e limitaram-se a repreender com aspereza, e a impedir durante algumas semanas as saídas de Simeão.
A insuficiência do castigo serviu somente para irritar o crioulo que, ressentido da privação de seus prazeres, maldisse dos senhores na cozinha, recrudescendo-lhe a raiva com as zombarias e as provocações dos parceiros.
A escravidão já tinha com o seu cortejo lógico e quase sempre infalível de todos os sentimentos ruins, de todas as paixões ignóbeis, estragado o crioulo que talvez houvesse nascido com felizes disposições naturais: o ódio aos senhores já estava incubado na alma do escravo; só faltava para desenvolvê-lo o calor mais forte da ação do domínio absoluto que desumaniza o homem a ele sujeito.
Simeão acabava de contar dezenove anos e nunca houvera sofrido castigo algum corporal. Vira por vezes o quadro repulsivo dessas punições que são indeclináveis nas fazendas, mas nem por isso menos contristadoras, e de cada vez que os vira, experimentara abalo profundo e seguido de melancolia que durava horas: não falava, não manifestava por palavras ou queixas o que sentia; mas dentro de si estava dizendo: “e também eu posso ser castigado assim!
Entretanto Domingos e Angélica eram senhores bons e humanos.
Um dia quase ao pôr-do-sol Florinda, que aliás protegia muito Simeão, surpreendeu-o, saindo do quarto de seus pais, e no ato de esconder um objeto no bolso.
O crioulo aproveitara a ocasião, em que Angélica e Florinda tinham ido passear à horta, para invadir o quarto do senhor, donde furtara uma corrente de ouro que dois dias antes Domingos comprara a um vendedor de jóias.
– Ainda um furto, Simeão!... – exclamou Florinda que de súbito acabava de chegar.
– E quem lhe disse que eu furtei?... – perguntou audaciosamente o crioulo.
A moça avançou um passo para o escravo e disse-lhe:
– Entrega-me o que furtaste: eu não direi nada e te perdoarei... tu és doido e queres ser desgraçado...
Em vez de obedecer sem insolência e de curvar-se agradecido diante do anjo do perdão, o crioulo recuou, dizendo em alta voz:
– É mentira! Eu não furtei.
À palavra mentira, Florinda estremeceu ferida pelo insulto.
– Atrevido! – bradou.
Uma escrava correu ao grito da senhora-moça.
– Tira do bolso desse miserável o que ele acaba de furtar!
A escrava ia cumprir a ordem; mas Simeão repeliu-a, e tirando a corrente do bolso, lançou-a de longe à parceira com movimento tão desastrado ou com tal propósito de ofensa, que a corrente foi cair aos pés de Florinda.
Nesse momento entravam Angélica e Domingos que chegara da roça, e tinha ainda na mão o açoite do cavalo.
– Que foi isto? – perguntou ele.
Florinda era uma santa: compadeceu-se do crioulo e calou-se; a escrava, porém, obedeceu e falou.
Ouvindo a relação do caso e do insulto feito à filha, Domingos Caetano, tomado de justa cólera, levantou o açoite e descarregou-o com vivacidade sobre as costas de Simeão.
Seis vezes e repetidamente os golpes se tinham repetido, quando Florinda em pranto arrancou o açoite da mão de seu pai.
Simeão recebera as chicotadas imóvel, sem soltar um gemido, sem derramar uma lágrima, e sem pronunciar uma só palavra de arrependimento ou desculpa, e quando privado do açoite Domingos Caetano o ameaçava ainda, ele com os olhos turvos e como em olhar febril mediu de alto a baixo o senhor que tão justamente o castigara, e a senhora-moça que tão piedosa correra a poupá-lo a maior e bem merecida punição.
Foi nesse dia que se desenvolveu o ódio do escravo. O ingrato se tornou odiento e inimigo figadal de seus benfeitores.
Até os dezenove anos corpo virgem de castigos, Simeão vira enfim realizada a sua terrível e sombria apreensão: também ele tinha provado o açoite da escravidão.
O pervertido crioulo não pesou nem por instantes as proporções do desrespeito audacioso, da injúria com que ofendera a senhora-moça, não se lembrou da reincidência do seu crime de furto, esqueceu, desprezou o generoso movimento com que Florinda o acudira, nem mesmo pareceu ter idéia da dor das chicotadas; mas a seus olhos só e incessante se mostrava a imagem do açoite, quando atirado no ar, a cair-lhe sobre as espáduas, e a imprimir-lhe nas espáduas a marca da última abjeção.
Em falta de pundonor e de vergonha, que a escravidão não comporta, o escravo tem o rancor e o desejo da vingança.
Nas pontas do açoite está o emblema do rancor do escravo: às vezes há nas pontas do açoite marcas de sangue.
Tudo isto é repugnante, é repulsivo, é horrível; mas tudo isto se acha intimamente ligado com a escravidão, e absolutamente inseparável dela.
Onde há escravos é força que haja açoite.
Onde há açoite é força que haja ódio.
Onde há ódio é fácil haver vingança e crimes.
Simeão odiava pois seus senhores, a quem devia os cuidados zelosos de sua infância, amizade e proteção, e cegas condescendências que tanto lhe haviam suavizado a vida de escravo sem sofrimentos de escravo.
Simeão odiava o senhor, que o castigara com o açoite, odiava a senhora que nem sequer o castigara, e, inexplicável nuança ou perversão insensata do ódio, odiava mais que a todos Florinda, a senhora-moça, a santa menina que ofendida, insultada por ele, tão pronta lhe perdoara a ofensa, tão prestes se precipitara a livrá-lo do açoite.
O negro escravo é assim.
Se o não quereis assim, acabai com a escravidão.