As Vítimas-Algozes (1869)/I/XII
À noite, mas um pouco tarde, Simeão corria à venda para compensar-se da tarefa diária junto do velho paralítico.
Depois das dez horas da noite a venda achava-se sempre fechada; a porta, porém, abria-se pronta à voz de freguês conhecido. Dentro era certa a reunião de escravos e da pior gente livre da terra.
Simeão preludiava com a conversação e com o jogo devassidões subseqüentes. A conversação era animada: na venda sabia-se de tudo, e a vida íntima das famílias se despedaçava ali aos dentes ferozes dos escravos, os atraiçoadores e caluniadores das casas.
A moléstia de Domingos Caetano e suas inesperadas melhoras tinham sido por muitas vezes discutidas.
Muitos lamentaram Simeão pelo adiamento da sua alforria: os escravos zombavam dele.
Um só homem soube consolá-lo com um raio de esperança: foi o homem de imensa barba que vimos dormindo no banco da venda no dia em que Simeão fora mandado a chamar o médico.
José Borges, que aliás era mais conhecido por José Barbudo, ou simplesmente por – Barbudo – tinha dito a Simeão:
– Ataque de cabeça, quando deixa sinal, não tarda a voltar.
O aforismo popular, que José Borges repetira, ficou na memória do crioulo que depois por mais de uma vez consultou o seu aforista.
E o Barbudo começava a interessar-se muito por Simeão, com quem estreitara amizade, acompanhando-o em suas excursões noturnas, e partilhando seus deboches.
O companheiro não podia ser pior: José Barbudo era uma celebridade turbulenta e suspeitosa; mais de uma acusação de crime pesava sobre sua cabeça, e pretendiam que havia em sua vida nódoas de sangue.
Nenhum freguês da venda se atrevia a negar um copo de aguardente ao Barbudo e menos ainda exagerar com ele a disputa no jogo. O Barbudo tinha sua fama.
Até então quase indiferente a Simeão, tornara-se em poucos dias seu íntimo camarada, e sempre que estavam juntos embebia nele seus olhos de tigre como serpente a magnetizar a presa.
Era fácil de explicar aquela súbita amizade do Barbudo.
O escravo é a matéria-prima com que se preparam crimes horríveis que espantam a nossa sociedade. No empenho de seduzir um escravo para torná-lo cúmplice no mais atroz atentado, metade do trabalho do sedutor está previamente feito pelo fato da escravidão.
Não há, não pode haver escravidão sem a idéia da vingança, sem o sentimento do ódio a envenenar as almas dos escravos, e a vingança e o ódio têm sempre chegado de antemão à metade da viagem, quando soa a hora infernal da marcha pelo caminho do crime.
Mas o Barbudo não deixava entrever projeto algum criminoso: bom amigo de Simeão, apenas manifestava por ele afeição e interesse.
Uma noite, por exemplo, levou o crioulo a conversar no terreiro da venda.
Depois de fácil ajuste para um de seus freqüentes deboches em senzalas de escravas e sítios ocupados por gente depravada, o Barbudo perguntou:
– Simeão, donde diabo veio o favor que conseguiste de teus senhores? Olha que deveras eles te estimam!
– Minha mãe foi ama-de-leite da menina – respondeu o crioulo.
Fora de casa Simeão mudava o tratamento que por costume e lição recebida prestava a seus senhores: a Domingos Caetano, em vez de meu senhor, chamava – o velho – , a Angélica, em vez de minha senhora, chamava – a velha – , a Florinda, em vez de sinhá-moça, chamava – a menina.
O Barbudo tornou dizendo:
– Ah! Era de razão; mas com os diabos! Se morrer o velho, a liberdade que ele te vai deixar tem ares de benção seguida de pontapé!
– Como assim?
– Não te mandaram ensinar ofício, fizeram de ti um famoso vadio, como eu, e agora se vieres a ficar forro, escorregarás da alforria para a mi-
séria... hem?...
– Penso às vezes nisso, Barbudo; mas...
– Mas o quê?...
– E que a liberdade sempre é a liberdade! No dia em que me achar forro, cresço um palmo.
– Boa consolação! Não serás capaz de viver liberto, como vives escravo: tu passas um vidão.
– Talvez; mas sou escravo; este nome quando soa, fura-me os ouvidos, como se fosse um estoque envenenado...
– Não me venhas com essa; eu sei o que esperas: o velho é rico a abarrotar, e sabes e contas que te deixará com a liberdade dinheiro bastante para o princípio de algum negociozinho.
Simeão sacudiu a cabeça tristemente e disse:
– Liberdade sim... dinheiro não: é certo que o dinheiro anda lá em sacos; mas o velho é unha-de-fome, e nunca falou senão em ajuntar fortuna para a menina...
– Com os diabos! Olha, Simeão; acabas em cachorro leproso se ficares forro sem dinheiro... coitado do Simeão! Que injustiça! Quando pouco te bastava, e há tantos... tantos sacos...
– Muitos... – murmurou o crioulo com voz surda.
– Que lorpa de velho! Com os diabos! E o sovina não tem medo dos ladrões?
– Ladrões? Que iriam lá fazer?... A casa da fazenda é uma fortaleza.
– Só assim; mas não há fortaleza que não se renda.
– Aquela somente por traição.
O Barbudo sorriu-se sinistramente; mas o crioulo não lhe viu o rir medonho; porque a noite era escura.
– Que nos importa a fortaleza?... Que o diabo a leve e também ao velho contanto que ele te contemple com algum dinheiro no seu testamento; do contrário manda-o pinotear no inferno pela liberdade miserável em que te abandonará.
– Com efeito, eu tenho necessidade de dinheiro: já fiz meus planos; negociarei em bestas e cavalos... ganha-se muito nisso
– Mas para principiar o negócio?
– É isso: preciso ter algum dinheiro.
– Olha, Simeão, criado como filho adotivo, tens direito a herdar um pedacinho da fortuna do velho, e eu no teu caso... queres um conselho de amigo?
– Quero, sim.
– Eu, no teu caso, herdava por minhas mãos: morrendo o velho, tirava o meu quinhão; não sejas tolo; se puderes, e há muitos meios, faze-te herdeiro sem te importar o testamento: ninguém sabe quanto o sovina aferrolha, e os mortos não falam. Não sejas tolo.
Simeão não respondeu; mas o Barbudo tinha adivinhado a sua íntima e decidida resolução.
Os dois passearam ainda ao longo do terreiro; mas não conversavam mais. Meditavam ambos, e as almas de ambos banhavam-se em inundação de idéias criminosas.
– Vou-me embora – disse de repente o crioulo.
O Barbudo apertou-lhe a mão, e murmurou-lhe ao ouvido:
– Se em qualquer dificuldade precisares de um companheiro seguro, que valha como dez, lembra-te de mim, e conta com o Barbudo, Simeão.
Q crioulo afastou-se sem dizer palavra.
A venda já estava deserta.
Simeão esperou na estrada o Barbudo, e vendo-o sair logo atrás, deixou-o aproximar-se e perguntou-lhe à meia voz:
– Então é certo que o ataque de cabeça, quando deixa sinal, volta sempre?...
– É de regra.
– E demora-se muito a voltar?...
– Quase nunca.
– Leve o diabo o teu quase, Barbudo!
O Barbudo soltou uma gargalhada cínica.