As Vítimas-Algozes (1869)/I/XIX
Foi medonho o desencanto de Simeão, que saiu da sala quase cambaleando, aturdido pelo golpe que recebera.
A sua esperança de liberdade despedaçara-se contra os ferros da escravidão.
O crioulo despertou, saindo de um sonho celeste, e entrou na vigília do inferno.
Turvo e como atoleimado, atravessou a cozinha, murmurando automaticamente“escravo... escravo...”
Saiu para o campo, e como se falasse às árvores, aos animais, ao espaço, repetia sempre: “escravo... escravo...”
Não refletia, não podia refletir; tinha a alma cheia de uma só idéia, que o afrontava, semelhante ao pesadelo do sono do criminoso; respirava, sentia, ouvia, dizia só essa idéia: “escravo... escravo...”
Instintivamente e sem consciência tomou a estrada que o levava de costume à venda: ia sem ver por onde ia, tropeçou em uma pedra, caiu e feriu-se na cabeça; a dor chamou-o não à razão, mas ao refletido ressentimento do seu desencanto; sentou-se e apoiou a fronte sobre os joelhos, e nem percebeu o sangue que lhe corria da cabeça ferida.
De repente deu um salto, e caminhou acelerado para a venda: seus olhos lampejavam: o crime tinha acordado e fervia-lhe no coração odiento, como lava terrível no seio da cratera.
Saltando, ele exclamara:
– Demônio que estás no inferno, espera-me!
Era uma imprecação danada contra o senhor finado.
Andando apressadamente, Simeão ria-se com um rir atroz: esse rir convulsava-lhe os lábios, misturando-se com a alvura dos dentes cerrados; era um rir que fazia lembrar o ziguezague rápido do raio que vai cair e fazer destroços.
Era o rir do celerado que acha gozo nos sonhos de atrocidades.
Chegou à venda e não encontrou o Barbudo; irritado bateu com o pé, disse uma frase obscena, bebeu um grande copo de aguardente, e com aguardente lavou o sangue que lhe banhava o rosto, pensou a ferida, atou o lenço à cabeça, e, proferindo horríveis blasfêmias, foi deitar-se à beira da estrada.
Pouco depois levantou-se: era-lhe impossível o sossego; passeava agitado, sentava-se, deitava-se, entrava no bosque, e do bosque voltava para a estrada com inquietação e impaciência febril.
Às vezes balbuciava, gesticulando doidamente:
– Liberdade... e dinheiro
Era de horrível aspecto, quando lhe rompiam dos lábios trêmulos e por entre os dentes brancos, e como a morderem-se, essas palavras que resumiam duas fomes desesperadas.
Era um tigre a rugir de fome.
Aos seus rugidos acudiu outro tigre; o Barbudo apareceu.
Simeão correu para o Barbudo, disse-lhe ao ouvido breves palavras e ambos meteram-se pela floresta.
Iam procurar a solidão e a sombra.
Domingos Caetano tinha errado: a liberdade não se promete, dá-se ao escravo.
Prometer e aprazar a liberdade, e, pior do que isso, deixar esperar e não dar ou adiar a liberdade, é pôr em desatino de desejos a alma do escravo.
Dar por prazo da liberdade a morte de alguém é excitar um apetite de hiena no coração do escravo, é fazê-lo aspirar à morte de quem enquanto vivo lhe demora a alforria.
Simeão, o crioulo mimoso, perdido, malcriado pelas afetuosas condescendências e fraquezas dos senhores em casa, pervertido pelos deboches da venda e pelo veneno da crápula, ingrato pela condição de escravo, sem educação e sem hábito de trabalho, contando com a liberdade, e não a conseguindo, era um perverso armado loucamente contra seus senhores pelas mãos de seus senhores.
Esta lição não deve desanimar, deve ilustrar a caridade: amar, beneficiar, criar com afeição paternal o crioulo filho da escrava e uma esmola que se dá a Deus, é a mais santa e pura das orações que se elevam ao céu.
Mas deve-se saber fazer o bem, e nunca fazê-lo por metade.
Ao senhor que se afeiçoa do crioulo que vê nascer e cria com amor, cumpre completar o favor dos sentimentos com o favor da educação, inoculando no coração do pequeno escravo predileto as noções do dever, o ensino da religião, a virtude da paciência, a obrigação do trabalho que moraliza e nobilita o homem, do trabalho não do homem máquina, mas do homem inteligência e coração.
O escravo assim criado pode não ser um amigo, porque enfim é escravo, e portanto um oprimido pela prepotência do senhor ainda mesmo bom; é, porém, em regra, um homem agradecido, que esquece o forçado aviltamento da sua condição pela lembrança inteligente dos benefícios recebidos.
Mas o amor cego que não educa o escravo simpático ou preferido, que o abandona aos instintos, aos sentimentos baixos, às inspirações malévolas da escravidão, que é água encharcada e foco de miasmas, que o aquece ou o cria por traiçoeira, mal pensada compaixão na ociosidade, que é a placenta de todos os vícios, alimenta, aquece, fortifica um desgraçado que é sempre ingrato por ser escravo, e às vezes inimigo pela reação do oprimido.
Se estas observações desanimassem a caridade dos senhores para com os crioulos que em casa lhes nascem e se criam, fariam morrer uma virtude, agravando ainda mais o perigo que correm os senhores, e os sofrimentos que experimentam os escravos.
Os crioulos são muito mais inteligentes e maliciosos que os negros da África; e, desprezados e flagelados pelo trato áspero da escravidão, que faz do homem instrumento material do trabalho, e irmão da besta de carga, tornam-se inimigos ferozes; e se chega a oportunidade da vingança, ostentam na ferocidade verdadeiro e delirante luxo de malvadeza.
O escravo africano mata o senhor, e se afasta do cadáver: o escravo crioulo, antes de matar, atormenta e ri das agonias do senhor, e depois de matar insulta e esquarteja o cadáver.
Toda escravidão é perversa; mas a escravidão inteligente é dez vezes mais perversa do que a escravidão brutal. Uma odeia por instinto; a outra por instinto e com reflexão.