As Vítimas-Algozes (1869)/II/XIV
A realidade cruelíssima não tardou a tocar os olhos e a penetrar como punhal envenenado o coração da vítima.
Teresa, a incauta, estremeceu um dia ao luzir da primeira suspeita do adultério e da traição; apiedada de si mesma, abraçou-se com a dúvida; mas dissimulando a revolta de seu orgulho e os sobressaltos do seu amor, observou cuidadosa e incessante o marido, e infeliz passou das suspeitas aos indícios mais veementes: não podendo mais duvidar, a pobre louca imaginou que se vingaria na confusão dos culpados; cega e surda se fingiu, acalmou os ímpetos de iradas acusações com que excitara prudentes cautelas do adúltero, tornou-se aparentemente tranqüila e cheia de serena confiança, e por fim surpreendeu algum sinal, ou adivinhou um ajuste escandaloso, e delirante de cólera em convulsivo tremor... foi... chegou... e viu o assassinato da sua felicidade e da paz da família.
Esméria contava desde muitos dias com o nefando caso: não lhe tinham escapado os assomos de cólera e os sinais da desconfiança da senhora, mas logo que se supôs vício dominante de Paulo Borges, desde que conheceu que alucinara os sentidos do senhor com a embriaguez aviltante, animal da luxúria mais desenvolta, baniu do seio o medo de escrava, mal se contrafez pelo simples hábito de hipocrisia, e desejou e quase que provocou a prova evidente da sua traição a Teresa, e do adultério de senhor.
A esposa ultrajada, embora certa de receber o golpe que fora procurar entrou em violenta crise nervosa em que a convulsão se misturava com as lágrimas de raiva que abrasam os olhos, e com as frases, as palavras roucas; difíceis, trêmulas, e com o grito doido, e com as contrações dos primeiros momentos do supremo ciúme da mulher casada.
Esméria em pé, com os olhos no chão, fria e indiferente, sem dúvida dentro de si satisfeita do vergonhoso e infame caso, apenas às vezes recuava diante de Teresa, que aliás só parecia ver o adúltero.
Paulo Borges, finalmente, perturbado, abatido, confundido a princípio, surgiu revoltoso desse constrangimento e da vergonha do seu crime, e insolente e brutal, sem generosidade e sem brio, soltou um brado feroz, agarrou no braço da esposa, e:
– Vamos para casa! – disse.
O insólito proceder do marido, que ainda pela segunda vez ofendia a mulher, despertou nesta a dignidade, que o arrebatamento da cólera fizera esquecer.
Teresa com rápido e forte movimento arrancou o braço que Paulo Borges agarrava, lançou-lhe um olhar de soberana altivez da virtude, e voltando-lhe logo as costas, retirou-se.
– Estou perdida!... – murmurou tremendo e chorando a pérfida crioula, que nem tremia nem chorava.
– Não há de ser nada... – disse Paulo Borges de mau modo. – Fica na senzala hoje e amanhã: depois veremos...
E contrariado e aflito deixou a sós Esméria que não se descuidou de ir passar a noite na senzala do Pai-Raiol, seu amante e conselheiro.
O verdadeiro amor é puro, honesto, suscetível, e como a água límpida e fonte solitária que se tolda com a enxurrada que a invade, se ressente a menor quebra e se embaça com a primeira infidelidade no próprio coração do infiel: a diferença é que a fonte reconquista sua limpidez, e o amor não pode reaver sua virginal pureza: quem atraiçoa a quem ama, deixa de amar.
Paulo Borges amara verdadeiramente sua esposa durante um ano: depois amou-a como tantos amam, mentindo à fidelidade conjugal, estimando-a pelo conhecimento de suas virtudes, preferindo-a pelo encanto de suas graças, respeitando a sua vontade por hábito e por certeza do seu bom-senso; mas ofendendo-a sem consciência das ofensas, porque a pureza e o melindre do amor não existiam mais.
Estulta e torpemente preso à devassa crioula, o aviltado e infeliz fazendeiro passara a ver na mulher um embaraço ao desenfreamento de sua paixão ignóbil, um objeto incômodo que lhe acordava os remorsos, um estorvo, uma punição, um peso: desde então, o vendaval do vício e da irrupção varreram da alma de Paulo Borges os restos do antigo amor que tributara à digna e carinhosa esposa.
O adúltero, deixando a crioula, vagou em torno da casa por muito tempo sem se atrever a entrar: enfim resoluto, havendo nas vertigens de seu espírito agitado concebido um plano de vida doméstica que se baseava no emprego da tirania e da imposição do seu capricho despótico, foi arrostar as iras da esposa.
Arrojo inútil! Teresa fugira à câmara nupcial e se trancara em um gabinete afastado daquela.
Paulo Borges aplaudiu-se desse recurso tomado pela esposa para se poupar a uma cena desagradável e tormentosa: passou a tarde e a noite sem ver Teresa; na manhã seguinte foi para a roça sem tê-la visto; de volta para casa ao anoitecer também não a viu.
Oito dias se passaram assim. Na ausência do marido, Teresa saía do gabinete, alimentava-se suficientemente para não morrer de fome, cuidava dos filhos e governava a casa, olhando para as três crianças.
Nesses oito dias temperou-se a alma da pobre vítima para viver vida de martírio, ensaiou suas forças, fez estudos de paciência e achou-se forte.
Teresa voltara para casa com uma idéia infernal, a de vingar-se, matando-se; mas logo ao entrar encontrou os seus três anjos que a salvaram: submeteu-se a viver pelos filhos. Reputou-se viúva: Paulo Borges era daí em diante, como marido, morto; como homem vivente, absolutamente estranho para ela. Não pensou em separar-se legalmente do esposo, nem retirar-se para algum dos sítios da fazenda menos pelo escândalo do que pelos três meninos, por amor dos quais, embora com repugnância, conservou a direção do serviço da casa. Não se humilhou ao ponto de indiciar ter ciúmes de Esméria; desprezou a criatura vil que lhe pagara a confiança e a estima com traição malvada: limitou-se a ordenar que lhe permitissem entrada na cozinha, e esqueceu-a, ou deixou-a atirada e livre no campo e na senzala.
Passados os oito dias, Teresa na manhã de um domingo e apesar de saber que seu marido estava em casa, saiu do gabinete, como praticava outros dias na ausência dele.
Paulo Borges a viu então: ela estava pálida e magra, mas serena; envelhecera vinte anos em oito dias: muitos dos seus longos e negros cabelos tinham embranquecido.
Encontrando-a de passagem na sala de jantar, o marido saudou-a melancólico e respeitoso; ela correspondeu a saudação, como se dirigisse a um desconhecido.
Paulo Borges sentiu-se comovido; lembrou a vida passada, a felicidade que devera àquela senhora, lembrou a mãe de seus filhos, enterneceu-se, maldisse da sua loucura, e procurando e tomando o passo à sua vítima estendeu para ela um braço, ofereceu-lhe a mão e disse:
– Perdão, Teresa!
Mas a esposa ultrajada recuou e respondeu:
– Sou viúva.