As Vítimas-Algozes (1869)/II/XVII
Não era só Teresa que padecia pelo frenesi da paixão criminosa e torpe que escravizava o senhor aos pés imundos da escrava.
O castigo do depravado começara cedo, começara logo após ao esquálido domínio do seu vício miserável.
Para não deixar em amplo gozo de liberdade a crioula banida do serviço doméstico e entregue à ociosidade, Paulo Borges abandonava freqüentemente a direção do trabalho de suas roças que notavelmente se amesquinharam: debalde contratou ele um feitor, cujos olhos e interesse não eram os do fazendeiro. Em sua ambição de grandes lucros e de riqueza, o depravado sofria, impacientava-se; mas não podia vencer os assomos da paixão esquálida.
E isso era o de menos: o adúltero era pai, amava seus filhos, e via-se privado do antigo e suavíssimo encanto que o transportava, quando de manhã antes de sair para roça, quando ao anoitecer e de volta da roça a carinhosa esposa e mãe lhe apresentava os três anjinhos, fruto de seu amor honesto e puro.
Esses gozos Paulo Borges não desfrutava mais: se queria ver os filhos, precisava pedi-los, e então era uma escrava que os trazia confusos, tristes pela ausência da mãe, e olhando espantados, desconfiados para o pai que os abraçava e beijava sem a santa expansão de outro tempo e com o confrangimento do remorso de quem sabe que quem ultraja a mãe ultraja os filhos.
Um dia Paulo Borges perguntou a Luís:
– Que faz tua mãe?...
– Chora muito – respondeu o menino.
O adúltero empalideceu: duas grossas lágrimas caíram de seus olhos sobre a cabeça do filho.
– E por que chora ela? – tornou.
– Mamãe não diz, chora sem falar.
– Mas então...
– Papai não vê mamãe... papai é mau...
Paulo Borges entregou o menino à escrava, e fugiu a soluçar, a maldizer do seu destino e a praguejar contra a escrava-demônio por quem se achava dominado; fugiu, correu para o campo, e viu Esméria à porta da senzala: ao aspecto da escrava que o alucinara, avançou furioso para ela, e chegando com andar acelerado, parou a dois passos, fitou na crioula enraivecido olhar e disse:
- Demônio!
Esméria pareceu tomada de espanto; depois serenou, respondeu:
– É melhor assim.
Paulo Borges bateu com o pé e perguntou:
– Que dizes tu, demônio?
– Que é melhor assim: é preciso que meu senhor acabe isto.
— E há de acabar... sim...
– Não fui eu que tive a culpa... – disse Esméria. – Eu sabia que era negra escrava... não é a escrava que chama o senhor... bem sabe... minha senhora me estimava, e agora...
– Ela tem razão... não hei de atormentá-la mais por tua causa...
– Sei que ela tem razão... fui falsa a minha senhora; porque não pude resistir ao mandado de meu senhor... é preciso que isto acabe... por isso eu queria pedir hoje a meu senhor que me vendesse...
Paulo Borges fez um leve movimento de surpresa e desagrado: começava a esquecer os filhos e o dever.
– Pensas que não sou capaz de fazê-lo? – perguntou.
– Peço a meu senhor que me venda: um de meus antigos senhores moços me comprará, se eu for chorar a seus pés... sei que o ano passado ele herdou fortuna.
– Vender-te-ei a outro! – bradou Paulo Borges.
– Ainda assim; peço venda a meu senhor.
E isso dizendo, a crioula voltou-se e foi sentar-se tristemente a um canto da senzala.
Sem ressentir-se do desrespeito com que a escrava o deixara e fora sentar-se, Paulo Borges daí a pouco entrou na senzala, e perguntou em tom menos iracundo:
– Que aconteceu de novo, Esméria?...
A crioula levantou-se, enlaçou as mãos na altura do baixo ventre, arqueando os braços de modo a tornar salientes os seios mal encobertos, e ostensiva a parte anterior do tronco, e pondo os olhos no chão, disse:
– Não há nada de novo: fui lançada fora da casa, onde eu trabalhava de dia, e minha senhora tão boa tem razão de me aborrecer...
– Mas não te atormenta ao menos...
– Antes me atormentasse! Já não vejo mais, senão de longe os meus senhores-moços, e atirada no campo...
– Não trabalhas, vives como forra... e te queixas!
– No outro tempo eu era perfeita escrava, agora não sei que sou: meu senhor me tomou para si; mas deixou-me de noite abandonada na senzala, negra escrava entre os seus parceiros que são atrevidos...
– Queres dizer... desejas voltar a casa?... Mas dantes dormias como agora na senzala e não tinhas medo...
– Dantes eu não era de meu senhor e negra escrava abria a porta de minha senzala ao parceiro que me agradava.
Paulo Borges não se vexou da petulância com que a crioula dava testemunho franco da antiga desenvoltura, que aliás não se desmentia ainda.
– Seja como for – disse ele – , não posso ofender mais minha mulher, fazendo-te entrar na casa contra suas ordens, e muito mais recolher-te de noite sob o mesmo teto em que ela dorme.
– É por isso que eu peço venda a meu senhor: é verdade que me parece que já não ando boa... mas meu senhor pode mandar forrar seu filho...
O adúltero teve um sobressalto e turbou-se a esse anúncio que faz a glória do amor honesto; disfarçando como pôde sua perturbação, disse:
– Não te venderei. Tu me dirás quais são os escravos que te vão bater à porta de noite.
– Escrava como eles, e abandonada no meio deles, não hei de denunciá-los para que sejam açoitados por minha causa, expondo-me ao seu ódio e a sua vingança.
Paulo Borges irritou-se.
– Eles te perseguem e não os denuncias para serem castigados? É porque gostas da perseguição e sem dúvida recebes os teus parceiros!
– Sou negra escrava lançada no campo: animal solto e livre, se eu me desforrasse do desprezo em que meu senhor me abandona, abrindo a porta da minha senzala aos negros meus parceiros e do meu gosto, faria muito bem.
O miserável senhor soltou dos lábios uma injúria indecente, e uma ridícula ameaça.
A crioula encolheu os ombros como se dissesse que me importa, e sem mudar a posição dos braços e das mãos, descansou o corpo sobre uma das pernas, fazendo avultar saliente a anca oposta.
– Que posso eu? – tornou ela. – Eu era de meus parceiros, meu senhor me tomou a eles; mas esquece-me, desampara-me, despreza-me de noite, e eles pensam que a noite lhes pertence: estou cansada de resistir; passo às vezes sem dormir até de manhã; pode isto continuar assim? Se ar- rombarem a porta da senzala?
– Gritarás – exclamou estupidamente o adúltero.
– Melhor é ceder – disse com desavergonhamento a crioula.
– O Pai-Raiol! – murmurou por entre os dentes Paulo Borges.
– Talvez entre muitos outros – respondeu Esméria. – Bem que Pai-Raiol mostre agora detestar-me e fuja de mim, como de inimigo de quem tem medo: o Pai-Raiol é um mau negro que, se puder, se vingará de mim; mas além dele há tantos!... A preferência que meu senhor me deu, me fez desejada; agora todos os escravos me acham bonita; em seus fados tenho cantigas de elogio, me chamam rainha das negras... eles, os meus parceiros, me festejam, se apaixonam por mim... vêm bater e chorar à porta da minha senzala, lembrar-me o que fui para eles, e o que eles foram para mim...
E a crioula insidiosa, olhando então fixamente o senhor, e lendo em sua fisionomia os efeitos do veneno que lhe lançava no coração, continuou com desfaçatez inaudita:
– Eu também sou negra e escrava, criada na vida solta, animal abandonado e livre no campo, e não quero enganar a meu senhor... assim como vivo, não me vencerei por muito tempo... eu aviso, sou negra e escrava, tenho maus costumes antigos... meu senhor não poderá depois queixar-se... peço perdão, mas confesso: uma noite já cheguei a pôr a mão na chave da porta... se isto continua; assim, em alguma outra noite, Esméria enganará seu senhor, e abrirá a porta...
Nova praga obscena foi a resposta do esquálido senhor.
A crioula fingiu-se alterada e sentida da injúria; começou a passear ao longo da senzala com arrebatamento e artificial comoção, dando ao corpo meneios indecentes, e pondo o vestido em desordem grosseiramente libidinosa.
A rusticidade sensual de Paulo Borges exaltava-se provocada, alucinada pelos trejeitos obscenos da negra que já o conhecia bem.
– Eu peço para ser vendida! Eu preciso sair desta fazenda! – exclamou ela, quase chorando.
Paulo Borges, o adúltero, Paulo Borges o desvairado se curvou ante a negra, sua escrava, e escreveu nos seus pés a sentença da última degradação da esposa virtuosa e honestíssima.
No dia seguinte, e a despeito da vontade expressa de Teresa, Esméria entrou pela porta da cozinha da casa da família de Paulo Borges, e teve ali quarto separado e distinto do dormitório das outras escravas internas.