As Vítimas-Algozes (1869)/II/XX
Saída no esquife a senhora, a escrava tomou-lhe o lugar na sala, e nada mais teve a desejar em relação ao domínio da fazenda do senhor.
A vaidade da alta posição imerecida inspirou dentro em pouco arrogância e soberba a Esméria que, reputando já inabalável o seu poder, maltratou e tiranizou as parceiras que tarde compreenderam o que tinham perdido em sua boa e legítima senhora.
Todavia, em seu presunçoso e atrevido entono, Esméria quando mais se exaltava onipotente na sala, estremecia de súbito escutando o silvo da serpente no fundo do quintal.
A crioula após a morte de Teresa e a sua absoluta dominação aborrecera profundamente a Pai-Raiol, e daria tudo pelo golpe que para sempre a livrasse dele.
A escrava tornada senhora do desprezível senhor exasperava-se por continuar escrava do escravo mais hediondo; ela, porém, não ousava arrostar Pai-Raiol o feiticeiro, o rei das serpentes, o demônio que matava de longe com os olhos: poderia facilmente conseguir que Paulo Borges mandasse vender em outro município ou em outra província o seu detestável sócio; já tinha pensado nesse recurso; mas sua imaginação lhe representava sempre o Pai-Raiol vivo e voltando vingativo e terrível para tomar-lhe contas e matá-la sem piedade, ou para denunciar o seu crime, como envenenadora de Teresa.
Assim, pois, abafando no coração a raiva, e sempre sob a influência do terror que lhe causava o negro africano, a crioula vaidosa e soberba continuava a obedecer ao Pai-Raiol, que era ainda o seu amante tornado então repugnante para ela, que todavia apenas escutava o silvo da serpente, corria trêmula, coagida, dentro de si revoltada, mas fingindo-se contente e afetuosa quando se mostrava ao seu único senhor.
E ainda uma vez a serpente assobiou: foi na tarde de um domingo, e Paulo Borges dormia a sesta.
Esméria encontrou Pai-Raiol no fundo do quintal e onde velhas laranjeiras desprezadas pela incúria secavam no meio de moitas de arbustos e cobertas de ervas parasitas. Era o sítio escolhido para as entrevistas dos dois.
Com a gradual elevação da crioula, dir-se-ia que fora também crescendo o amor selvagem que o Pai-Raiol tinha por ela, e a improvisada e arrogante senhora recebia risonha, mas em fúria, donosa, mas em desespero, os afagos do antigo amante que ela então estimaria poder matar.
– Esméria está no meio do caminho – disse o Pai-Raiol.
– Como? De que caminho?
– Mas tem muito que andar ainda para chegar à cima do morro: é preciso andar; Pai-Raiol está subindo da outra banda.
O negro ria-se de modo a causar pavor; Esméria olhava para ele espantada e como se receasse compreendê-lo.
– A mulher tigre morreu na lua nova, e a lua nova já voltou.
– É verdade; está a fazer um mês.
– O velho tigre já esqueceu: agora os tigres pequeninos... depois Pai-Raiol ensina mais.
– Pai-Raiol!... – exclamou Esméria, estremecendo. – Os meninos?... Isso não...
A crioula malvada era menos celerada que o negro africano; este, porém, fitando nela seus olhos vesgos, disse:
– Pai-Raiol quer.
– O senhor teve suspeitas de que sua mulher tivesse morrido envenenada; eu o ouvi fazer perguntas sobre isso ao cirurgião...
O negro encolheu os ombros.
– E para que matar uns meninos que ainda não fazem mal a pessoa alguma?
– Pai-Raiol sabe e quer.
– Os meninos... eu não posso
– Pai-Raiol pode matar Esméria.
– Eu pensarei nisso – disse a crioula, convulsando. – Pai-Raiol me dê alguns dias para me resolver e me preparar...
O monstro africano estava em dia de menos braveza, ou, seguro do resultado do seu plano infernal, entrava também em seus cálculos a contemporização.
– Pai-Raiol espera até a outra lua nova.
Esméria respirou desafrontada.
Daí a pouco o negro riu-se, olhando para o ventre da crioula.
– Esméria não tarda a ter filho – disse ele.
A crioula cruzou instintivamente as mãos sobre o ventre e voltou-se para um lado, como a defender o filho do olhar do feiticeiro.
O Pai-Raiol ou não percebeu o motivo do movimento que fizera a escrava que ia ser mãe, ou não se agastou com isso, e continuando a rir, acrescentou:
– Se é filho do velho tigre, fica muito rico no fim da outra lua nova.
E sem olhar para Esméria, retirou-se vagarosa e tranqüilamente por entre os arbustos cujos galhos afastava com as mãos para abrir caminho.