As Vítimas-Algozes (1869)/II/XXIII
Esméria voltou para casa com o coração palpitante de assombro e com o espírito, embora perturbado, aceso em sinistras idéias e bárbaros projetos.
Só naquele dia medira toda a extensão dos planos de Pai-Raiol que, rude e ignorante como era, queria fazer dela o instrumento da sua fortuna e maior poder, erguendo uma e outro sobre os cadáveres da família inteira de seu senhor, que devia ser a última pedra do horroroso edifício.
A última pedra?... Esméria estremecia, lembrando-se de seu filho, em quem Pai-Raiol talvez, ou certamente, não perdoaria o sangue de Paulo Borges.
E se até então Pai-Raiol brutal e tiranicamente a dominava e lhe impunha sua vontade absoluta, a que extremos não se arrojaria, quando, morto o senhor, entrasse na casa, em cujo dono contava já erigir-se?
A crioula jurava a si mesma não sujeitar-se a tamanha calamidade, e mil vezes veio-lhe à memória o nome e a imagem de Alberto; não lhe escapou que preparava neste um outro bem provável dominador, confiando-lhe algum dos segredos das suas atrocidades, e encarregando-o de livrá-la do Pai-Raiol, o inimigo comum, dando-lhe a morte; mas entre Pai-Raiol e o tio Alberto não podia haver hesitação na escolha, e o poderio deste sorria além disso à viciosa negra.
Esméria tranqüilava-se tanto quanto lhe era possível, contando com o braço de ferro do Hércules africano; mas adiava ainda a sua entrevista com ele, receosa de que por temor ou generosidade Alberto se opusesse ao envenenamento dos dois meninos.
Este crime nefando estava decididamente resolvido pela malvada escrava, que ainda mais se assanhara com a perspectiva do futuro que o Pai-Raiol mostrara em grosseiro quadro a seus olhos.
Só lhe faltava a oportunidade para o medonho atentado, e foi ainda o desmoralizado e vil senhor quem lha proporcionou.
Corria o mês de março que ardente abrilhantava os campos: abundavam as frutas próprias da estação e entre outras as mangas tão doces ao gosto, como suaves ao olfato: uma tarde, de volta da roça, Paulo Borges trouxe aos meninos um cestinho de mangas.
A traiçoeira crioula opôs-se, simulou reprovação a esse regalo oferecido a Luís e Inês, observando que as mangas eram muito quentes e perigosas para as crianças; estas, porém, choravam, o pai ralhou brandamente com a escrava-senhora que, não desejando outra coisa, deixou a sala de jantar, onde se passava a cena.
Os dois meninos acompanhados de alguns crioulinhos da sua idade comeram as mangas, que aliás não eram muitas; mas saltaram de contento, encontrando no fundo da cestinha três pequenos cachos de cocos de tucum.
Esméria, acudindo à gritaria das crianças, pôs as mãos na cabeça ao vê-las comendo cocos depois das mangas.
Paulo Borges não deu importância aos avisos da crioula. Os meninos regalaram-se, brincaram ainda, e às oito horas da noite dormiram logo depois da sua costumada ceia de simples canja de arroz.
Mas dentro em pouco estava a casa em movimento, Paulo Borges em sustos, e a crioula em desespero: terrível indigestão se declarara em todas as crianças, que em gritos, em vômitos, em convulsões e delírio, e com as mãozinhas nos ventres, que se abrasavam e se dilaceravam em fogo e em dores horríveis, avançavam depressa para a morte que se manifestava já na decomposição dos traços fisionômicos.
O sábio curandeiro, chamado imediatamente por ordem da crioula, não tardou; ouviu a história das mangas e dos cocos, notou a coincidência e semelhança dos sofrimentos dos meninos e dos crioulos, aplicou os seus meios mais enérgicos para vencer aquelas violentas indigestões; não foi, porém, feliz.
Ao amanhecer estavam mortos os dois filhos legítimos de Paulo Borges, e dos crioulinhos, três provaram a mesma sorte, e apenas dois escaparam a esse horroroso morticínio.
Paulo Borges consternado, acusava-se em altos brados de assassino de seus filhos; as três escravas, mães dos crioulos vítimas, o acusavam também chorando na cozinha. Esméria doidejando em pranto, corria mil vezes a abraçar e a beijar os pés dos dois meninos seus senhores já cadáveres, e arrancada de junto deles, ia ver as três criancinhas mortas, e os dois que gemiam ainda, mas que se consideravam salvos.
E aparentemente em aflição desmesurada, e dentro de si turbada, medrosa. aturdida pelo próprio crime, mas ainda assim cuidosa observadora daquela cena lúgubre de assassinato de crianças, dizia entre si como admirada:
– Que demônio de Pai-Raiol! Que temível veneno! Só escaparam os dois crioulos que apenas ceiaram o restinho da canja que sobejou dos outros!
A história da indigestão de mangas e cocos correu pelas vizinhanças, o caso foi geralmente lamentado.
A morte dos três crioulos conjuntamente com a dos dois filhos de Paulo Borges, e os sofrimentos semelhantes das duas crias que sobreviveram, excluíram toda suspeita de envenenamento.
Luís e Inês foram, como sua mãe, sepultados na capela, e os três crioulos no cemitério da fazenda.
Esméria e seu filho triunfaram sobre as sepulturas das vítimas.
O tigre da escravidão já tinha despedaçado e devorado as carnes, e bebido o sangue da mulher e dos filhos do senhor.
A vez de Paulo Borges ia chegar.