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As Vítimas-Algozes (1869)/III/II

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Entre os noivos é de regra quase sempre invariável, que ambos almejem com ardor igual, que o primeiro fruto de sua união seja um menino. A razão é óbvia: o homem vê no filho o herdeiro e continuador de seu nome que ele não perderá como a filha no ato do casamento; a mulher prêve no filho o retrato de seu marido, e para si um protetor no futuro, e ambos adivinham nele zeloso escudo e garantia da família, e ambos o sonham feliz no mundo, glorificado pelos homens, e abençoado por Deus.

Estas considerações algumas das quais, embora egoístas, são muito naturais, justificam a preferência manifestada nos desejos do nascimento de filho varão, preferência aliás inconveniente e prejudicial quando se faz sentir no amor, e em mais esmerada educação que geralmente nas famílias os filhos gozam e recebem com desproporção notável e não pouco amesquinhadora das filhas.

A observação não é falsa: algumas vezes as filhas como os filhos são igualmente amados pelos pais, e ainda mesmo sem dissimulação de preferência; pelas mães quase nunca ou nunca: as mães amam sempre mais os filhos do que as filhas.

No que porém se refere à educação intelectual, e a verdadeira, necessária e imensamente importante educação da mulher, a que se prende e de que depende em máxima parte o futuro moral, social, o que quer dizer, o futuro político, todo o futuro da nação, os pais, as mães e com eles o Estado, dão por cego abandono e por direção e práticas desacertadas e imprudentes vivo testemunho da preferência iníqua, absurda e fatalíssima conferida aos filhos com desvantagem das filhas, ao homem menino e jovem com desvantagem da mulher menina e jovem; aos futuros cidadãos com o abatimento, menosprezo e incrível olvido da transcendente e indeclinável influência das futuras mães dos cidadãos.

Todavia, qualquer que seja o grau de predileção que no seio da família tenham de seus pais os filhos varões, ao menos há para as filhas certa especialidade de cuidados que nas mães é religioso culto de amor que vela incessante, como o das sacerdotisas de Vesta que vigiavam o fogo da pureza, e nos pais uma fonte sublime de melindres e de escrúpulos, uma santa exageração de estremecido zelo que enubla ou descora os próprios extre­mos do mais ardente e cativo namorado.

As mães têm o privilégio das flamas suaves de um sentimento beatifi­cador, da ciência natural do seu sexo, da experiência de sua vida de moças solteiras, da confiança, da liberdade, da convivência íntima; e pelo ventre que concebeu e nutriu, pelos seios que deram o leite, pelo coração que dá o amor, pelo sexo que faz a mãe irmã da filha, pela intimidade que mo­dera as reservas do respeito e do pejo, tornam as filhas transparentes a seus olhos.

Os pais não podem gozar essa expansão ampla e quase ilimitada do amor das filhas, e apenas a invejam nas confidências que das esposas rece­bem: eles, porém, se desforram na exaltação do mimoso cultivo dos seus botões de flores.

O pai adora em sua filha a candideza dos anjos: santo namorado, em­bebe nela os olhos como em divina imagem, tem presa nela o zelo mais suscetível, e o amor que é todo mimos; no passeio dói-lhe a pedrinha em que pisou por descuido o pé da sua princesa; teme por ela a brisa que lhe desmancha o penteado, o raio do sol que pode ofender as pétalas de rosa ou o branco matiz de suas faces; aflige-se, quando a suspeita pensativa ou triste; vai de noite escutar, se ela geme, dormindo; tem a sua glória no seu recato; revolta-se, ouvindo pronunciar diante dela a palavra arriscada que pode confundir sua inocência; duvida que ela já saiba o que a natureza faz adivinhar ainda mesmo obscuramente; dá-lhe a educação da ignorân­cia da missão da mulher; ilude-se com as confianças dessa educação; dese­ja vê-la casada, mas receia de todo noivo; não dá, concede a filha em casa­mento, e tem loucos instantes, em que olha para o melhor dos genros co­mo para o ladrão do seu tesouro, e logo depois, se o genro felicita a filha, chora de alegria, e agradecido quisera beijar as mãos desse ladrão do seu tesouro.

Era assim que Florêncio da Silva amava Cândida.

Não houvera carinho, extremo, escrúpulo, inspiração de angelolatria que ele tivesse poupado com a queridíssima filha: a par da satisfação de todos os caprichos da menina, desvelou-se na sua educação segundo a prá­tica admitida; nunca porém se sujeitou a mandá-la para o internato de al­gum colégio, menos pela consideração dos perigos que nessas casas correm as meninas, do que pela idéia aflitiva de separar-se dela: os pais mais prudentes e cautelosos ainda não compreenderam suficientemente as in­conveniências da educação das filhas em internatos, como não poucos dos que temos.

Cândida teve no lar paterno, e sempre junto de sua mãe, quantos professores e professoras Florêncio da Silva imaginou que lhe eram precisos e, até poucos meses além dos dez anos de idade, a companhia inapreciável e o serviço dedicado de uma boa senhora, mulher pobre, mas livre e de sãos costumes, que fora sua ama-de-leite e a idolatrava como seus pais.

Mas Joana, que aos dezoito anos enviuvara, era ainda moça e agradável, sempre fora honesta, e achando segundo noivo em um laborioso e honrado lavrador, deixou por ele Cândida com o maior pesar, mas com a aprovação de Florêncio da Silva e de Leonídia, que estimavam o lavrador e que deram à ama de sua filha dote relativamente considerável.

A menina chorou com desabrimento próprio da sua idade a separação determinada pelo casamento da ama, que não menos dolorosamente se despediu de sua filha de criação; mas para maior aflição desta, quase logo sobreveio a morte de um tio do marido de Joana, obrigando a este a mu­dar-se com sua mulher para distante município, onde o chamou a herança de importante estabelecimento rural.

Cândida triste, saudosa de sua segunda mãe, da criada amiga, da com­panheira do seu quarto de dormir, não tolerou a idéia de fazê-la substituir pela melhor, ou mais estimada das escravas de sua casa, e até o dia de seus anos em que a encontramos em festa, viveu ou dormiu solitária, on­de não mais dormia perto do seu leito a honesta senhora, que desde a sua infância fora a digna partilhadora de seu amor filial, e como disse ou escreveu um grande poeta português na sua tragédia de Inês de Castro:

“Ama, na criação ama, no amor mãe.”



Plácido Rodrigues, o padrinho de Cândida, conseguira vencer a justíssima repugnância, talvez a instintiva ou providencial, obstinação da afilhada, trazendo-lhe de presente para sua mucama a crioula Lucinda, que sabia pentear e fazer bonecas.

Depois da ama, mulher livre, a mucama, crioula escrava!

Cândida tinha perdido a companhia da mulher que era nobre, porque era livre, e o serviço de braços animados por coração cheio de amor generoso, que é somente grande, quando a liberdade exclui toda imposição de deveres forçados por vontade absoluta de senhor.

E em substituição da companheira livre, amiga, e devotada, recebeu alegre a crioula quase de sua idade, a mulher escrava, uma filha da mãe fera, uma vítima da opressão social, uma onda envenenada desse oceano de vícios obrigados, de perversão lógica, de imoralidade congênita, de influência corruptora e falaz, desse monstro desumanizador de criaturas humanas, que se chama escravidão.