As Vítimas-Algozes (1869)/III/XI
Na cidade de... eram raros os bailes de grande cerimônia, como esse em que fora Cândida apresentada, e que se dera com a maior solenidade e ostentação em obséquio ao presidente da província, que viera pessoalmente (caso raro) examinar a direção e as conveniências de uma importante estrada que se projetava.
Desse baile falar-se-ia dez anos: cada qual guardou suas recordações da brilhante noite de festa, e Cândida não esqueceu que o presidente da província exaltara diante de seu pai a sua beleza, modéstia, e inocência, felicitando-o por isso.
Nenhuma outra donzela merecera elogio igual: a distinção inflamou a vaidade da menina.
Em feliz compensação da falta de bailes cerimoniosos, havia na cidade de... freqüentes reuniões e saraus, além de uma companhia dramática, dando duas vezes por semana representações toleráveis, porque eram o único divertimento público. Em duas épocas do ano, enfim, nos meses de junho, e de dezembro a janeiro, nas noites de Santo Antônio, São João e São Pedro, e nos dias que correm do Natal até os Reis as festas se multiplicavam, principalmente nas fazendas, onde as reuniões de famílias não acham o entretenimento e o gozo suave de algumas horas do dia ou da noite, como se observa nas cidades e nos povoados, mas longa e amena folgança que dura uma noite e um dia, quando não vai além.
Imenso espaço se abria pois aos vôos da vaidade de Cândida.
As observações nocivas, ruins que a mucama imoral tinha feito sobre as declarações de amor e os namorados, preocuparam durante o resto da noite do baile a donzela, que facilmente se convenceu da importante significação desses tributos rendidos aos seus encantos que reputava inexcedíveis; a afortunada nova que no dia seguinte Florêncio da Silva lhe deu do elogio que o presidente da província tecera à sua beleza, modéstia e inocência a encheu de alegria; mas ao mesmo tempo levou-a a compreender e reconhecer que a modéstia e inocência eram mimosas condições do realce e beleza de uma moça.
Ora modéstia e inocência infelizmente faltavam já ao coração de Cândida, a modéstia banida pela vaidade, a inocência do pensamento e do sentimento, a inocência, essa noite edênica do sono sem sonhos do querubim que não sabe desejar, consumida pela luz da ciência negra acesa pelo sopro da escrava.
As observações imorais, e o elogio honesto e nobre, a lição da escrava a inspiração do homem livre, os ímpetos exigentes da vaidade e o reconhecimento do poder e do encanto da modéstia e da inocência não podiam combinar-se porque se repugnavam, amalgamaram-se porém à força no espírito já egoísta e viciado de Cândida, e dessa mistura de princípios contraditórios e repulsivos uns dos outros tirou ela, sem o pensar talvez, um sistema vil, indigno da sua idade generosa, da educação que devia a seus pais, e da nobreza do seu sexo, um sistema que se resumia, e que se resumiu em uma palavra – hipocrisia.
Cândida não teve consciência da enormidade e da fealdade do seu erro: quis ser incensada, amada, adorada, porque era vaidosa, e parecer, fingir-se modesta e inocente, porque a modéstia e a inocência realçam a beleza.
O fingimento, a hipocrisia, eram nesse caso um recurso para disfarçar e encobrir a ciência repugnante por prematura, os estragos morais do coração que a influência ou a companhia da mucama escrava produzira. Era o rigor implacável da lógica, o erro arrastando a erros, o gérmen da imoralidade a desenvolver-se, a sementeira a brotar.
Mão de escrava tinha semeado no campo ingênuo e virgem do coração de menina: a colheita de espinhos era certa.
Cândida freqüentou saraus e foi muitas vezes ao teatro. Fiel ao sistema que se havia imposto, resistiu impávida às flamas de olhos ardentes de admiração ou de amor, ouviu indiferente ou como que alheia confissões apaixonadas, concedeu sorrisos que não explicou com palavras, provocou adorações, olhando sem indicar que as provocava, e brilhou como fulgurante planeta que é foco de luz e não se abrasa.
A formosura, a isenção, e a singeleza de Cândida encantavam, e desatinavam cem corações de mancebos. Ela foi proclamada a bela das belas, como entre os heróis guerreiros o mais distinto se aclama o bravo dos bravos.
Lucinda era naturalmente a dona das íntimas confidências de sua senhora, que ruminava seus triunfos e suas conquistas, repetindo muitas vezes os ternos episódios dos saraus, em que deixara escravos confessos, e a adoração, de que fora objeto no teatro.
Cândida mostrava-se orgulhosa e satisfeita; a mucama porém não parecia contentar-se com tão pouco. Ela disse-lhe uma noite:
– Minha senhora, aproveite o seu tempo, enquanto não se casa: quem sabe com que casta de homem se casará...
– Mas eu o aproveito como posso, Lucinda.
– Qual! Minha senhora não anima bastante a nenhum dos seus apaixonados; é admirada como uma flor, que é esquecida pelos que a admiram, logo que eles deixam o jardim.
– São tantos os que me adoram!
– Porém como?... Ouço minha senhora dizer que tem muitos apaixonados; mas por certo que ainda não tem um namorado.
Cândida sorriu-se e respondeu:
– Morrem por mim... eu o sinto no ardor com que me olham e na ternura a com que me falam...
– E minha senhora?
– Deixo-os olhar e falar.
– Eis aí! Desanima a todos com a sua indiferença! No colégio onde eu aprendi a ser mucama, não havia menina por mais feia que fosse, que não tivesse o seu namorado.
– E de que serve animar o namoro de um homem, a quem não se ama, e que não se quer para marido?... Basta para meu desvanecimento saber que muitos me adoram.
– E todos hão de fugir de minha senhora cansados de adorá-la em vão, e minha senhora nunca experimentará os encantos do namoro; nunca receberá um bilhete amoroso, o retrato de um belo moço; nunca apreciará os ciúmes de um que se exaspera com as esperanças de outro...
– Mas é preciso que eu namore também, Lucinda!
– Um pouco sem dúvida, e sem comprometer-se.
– Sem comprometer-me?... Namorar sem comprometer-me?... Tu não sabes o que dizes.
– Sei muito bem, minha senhora: a moça que se entrega ao namoro de um único homem, procura nele um noivo, e compromete-se, quando não se casa; aquela porém que excita um pouco, e dá corda ao namoro de diversos moços, a nenhum deles se prende, e diverte-se à custa de todos.
O que havia de maligno, de aviltante e falaz no conselho da escrava, não escapou a Cândida, que fez um movimento de repugnância.
Lucinda, observando esse movimento, tornou dizendo:
– Minha senhora há de ser sempre criança! Qual é a moça que não namora?... Vai aos bailes e ao teatro e ainda não reparou que todas as moças namoram?