As Vítimas-Algozes (1869)/III/XLI
Lucinda não se esforçou por tranqüilizar o espírito inquietado e apreensivo de sua senhora, que se espantara da súbita e inesperada prudência do amante. Sem dúvida este e a mucama tinham-se entendido sobre o mais eficaz artifício para agravar os erros, e levar até às mais vergonhosas condescendências o desvario da mísera sacrificada.
Cândida contava ter de resistir, em porfiada oposição, aos desejos e às exigências mais veementes de segundo encontro noturno com Souvanel, e no meio de mil recados e protestos de paixão, fácil de manifestar-se em palavras, recebeu o golpe do frio cálculo de uma prudência inverossímil em amor apaixonado!
A infeliz não dormiu, para pensar em tudo, menos somente em novo laço armado pela traição: imaginou Souvanel pronto a abandoná-la; imaginou-o condenando-a pela fraqueza, e punindo-a com o desprezo merecido; em momentos de fugitiva e ditosa alucinação, imaginou-se também sagrada aos olhos do amante pela enormidade do sacrifício; mas imediatamente caindo do céu no abismo, e baixando às misérias materiais, revolvendo-se nos lodos da terra, a mísera imaginou-se, ainda, mulher sem condições de encantamento, pobre taça que não tinha o dom da embriaguez; não imaginou, porém, um só momento Lucinda a empurrá-la para a infâmia, e Souvanel a esperá-la no sorvedouro da corrupção.
À suave frescura da madrugada, Cândida adormeceu; mas breves horas depois acordou em aflitivo sonho e viu diante de si a mucama, que pondo na boca um dedo, e com os olhos indicando-lhe ouvidos suspeitos na sala de jantar, chegou-se para ela e disse-lhe em voz de segredo:
– Ele veio às duas horas da noite e deixou este bilhete ao pajem que lhe abre a janela.
Cândida tomou com ardor o bilhete, e abrindo-o, leu a tremer: “Perseguem-me; sob a ameaça de prisão estou homiziado na casa de um amigo: é por ti que sofro; mas hei de tudo arrostar por ti. Talvez me prendam ou me matem em breve: que importa? Eu te amo, e não fugirei aos perigos; tenho uma idéia salvadora e infalível: fico e ficarei desafiando a perseguição e a morte, enquanto não me desprezares e até que marques a noite em que me deves ouvir e resolver de uma vez sobre o nosso destino.
Adeus... – Souvanel”.
Cândida sentada no leito, trêmula, em desalinho, fora de si, perguntou a Lucinda:
– O meio de chegar uma carta a Souvanel?
– Nenhum: é impossível.
– Um recado ao menos...
– Ninguém se atreverá... minha senhora não faz idéia do que vai pela casa
– Mas para que eu fale a Souvanel?
– Há sinal convencionado entre ele e o pajem: é um ramo de flores deixado em certo ponto do bosque vizinho.
– Quero falar a Souvanel esta noite no quarto do pajem... tu me acompanharás, e não me deixarás um só instante... a menos se eu te mandasse sair... e eu não o mandarei... mas é indispensável... preciso ouvir Souvanel...
– Ele virá – disse a mucama que se mostrava tristemente comovida.
E logo retirou-se com ar sério e temeroso; quando, porém, voltou as costas à senhora, sorriu-se maliciosa e triunfantemente.
Cândida se deixava outra vez cair na rede da perfídia.
A escrava vendia ou revendia a senhora.