As Vítimas-Algozes (1869)/III/XLIV
Quem menos lamentara, e antes aplaudira a mudança temporária da residência de Florêncio da Silva para a cidade do Rio de Janeiro, fora Lucinda.
A crioula sonhava com a capital, tinha por ela certa espécie de culto perverso, adivinhava os seus misteriosos escândalos, e adorava-os em sua imaginação de escrava viciosa.
Lucinda mais de uma vez procurara consolar a senhora; mas a sua consolação repugnava por infame.
Vendo Cândida submergida em pesada tristeza, dissera-lhe:
– Minha senhora, não se mate assim; o infortúnio foi grande; mas, se é irremediável, o que convém é remediá-lo.
Em outras circunstâncias Cândida ter-se-ia rido da observação contraditória da mucama; na sua situação, porém, perguntou amargurada:
– E como se remedeia o irremediável?...
– Olhe, minha senhora: o moço francês, o Sr. Souvanel é o mais bonito e o mais merecedor dos homens, e foi feito para seu marido; mas se é irremediável o perdê-lo, como parece...
– Então?...
– O remédio é ter paciência, e minha senhora consolar-se, procurando ou aceitando algum outro moço bonito para marido.
– Eu?!!!
– Sim, minha senhora.
– Eu?!!!
– Que tolice, minha senhora! Eu não digo que esqueça o moço francês; mas no caso de ser impossível o casamento com ele, minha senhora não se há de condenar à vida de freira.
– Oh, se hei de!... eu o amo sempre!
– E se ele morrer?... Se seguir preso para França, como se diz que seguirá?
– Nem assim mudará o meu destino. Eu só posso ser esposa de Dermany.
– Por que, minha senhora?
– Lucinda! – murmurou a moça, abaixando o rosto envergonhada.
– Que tolice de minha senhora! – repetiu a miserável escrava. – Que tolice! .. com a riqueza de seu pai...
Cândida levantou a cabeça, e disse:
– Infâmia!...
Lucinda mudou de tom, e com voz sumida, soprou algumas palavras de segredo importante no ouvido de sua senhora; esse segredo, porém, devia ser esquálido; porque a moça, revoltando-se, tornou com voz surda e imensa perturbação:
– Duas infâmias...
A mucama estava habituada a vencer pela insistência e pela teima a oposição da senhora, e conseqüentemente em suas conversações noturnas, ou das horas dedicadas ao toucador, foi sempre perseverando nas mesmas idéias, e até já tinha sido portadora de amorosos recados de um belo mancebo que se enamorara de Cândida, quando de súbido mudou de rumo e de sistema, e voltou a proteger a causa considerada perdida de Dermany.
Cândida sobressaltou-se, notando a extraordinária transformação do modo de pensar da escrava.
– Dermany está na cidade?... – perguntou, estremecendo.
– Sim, minha senhora, está.
– Ah! Expõe-se por mim?
– Como um louco.
– Ama-me, pois, ainda?
– Apaixonadamente.
– Onde o vês? Onde te fala?...
– Só à noite... no saguão da casa ... coitado! Vem vestido de libré de lacaio...
– Oh!... Por mim...
– Só por minha senhora.
– Ele se expõe ... meu Deus!
– É preciso salvá-lo.
– E como?
– Minha senhora... pertence ao Sr. Souvanel.
Cândida tornou-se branca e fria como a neve; o sangue pareceu refluir-lhe para o coração; seus olhos cerraram-se.
Lucinda, temendo que a senhora desmaiasse, dava-se pressa em acudi-la; esta, porém, repeliu-a brandamente e disse repassada de dor:
– Não há mais Souvanel... há outro... há Dermany, que se esconde, e que se disfarça com a libré de lacaio; porque é criminoso...