As Vítimas-Algozes (1869)/III/XLVI
A demonstração plena de que Cândida nascera com felizes disposições naturais e de que pudera ter sido exemplo de recato, de honestidade e de virtudes, se não tivesse sido sujeita ao influxo perversor da companhia freqüentíssima, pestilencial e depravada da mucama escrava, está em que, a despeito dessa inoculação imoral das lições de Lucinda, a despeito da consciência do aviltamento que a tornara dependente de Dermany, apesar do amor ardente que tributava ao seu infame sedutor, envergonhava-se enfim desse amante, procurava distanciá-lo, repugnava-o ou temia-o, desde que o soubera perpetrador de crimes ignominiosos.
Cândida tinha amado, mais do que isso, adorado Souvanel; mas recuava aterrada diante da imagem de Dermany – o ladrão.
E concebei, se puderdes, esta contradição por assim dizer delicadíssima de sentimentos opostos, mas persistentes e simultaneamente influentes: Cândida amava sempre apaixonada a Souvanel que a ofendera, e rejeitava Dermany réu de crimes infamantes e previamente marcado com o sinal repulsivo do galé: a consciência condenando, o coração amando, e entre a consciência e o coração um abismo, em cujo fundo se levantavam a reprovação da consciência e a tormentosa e aflitiva incandescência do amor.
Se conceberdes essa contradição ou luta de sentimentos, esse não e sim, essa desestima e esse amor, esse medo que faz arredar, e esse laço que aduna, essa convicção da indignidade do amado, e esse cativeiro da amante, essa repulsão e essa atração, tereis compreendido as tempestades, os despedaçamentos do coração, os transes da alma de Cândida.
O maior infortúnio, o mais chorado sacrifício, dera à infeliz moça a experiência do mal sofrido e com esta o cauteloso temor de outros males iguais a sofrer. O remorso de um opróbrio a fazia horrorizar-se de outros.
Cândida amava em Dermany, Souvanel; mas em Dermany inspiravam-lhe repugnância e horror o ladrão e o galé.
Idéia talvez pueril, Cândida, amando Souvanel e esbarrando com Souvanel em Dermany criminoso, lembrava que a esposa toma o nome do marido, e tremeu de horror pensando que poderiam chamar à mulher do galé – galé, à mulher do ladrão – ladra.
A sociedade não impõe, não inflige a condenação injustamente extensiva de semelhantes nomes, que indicam crime e punição; mas a esposa de tal criminoso e sentenciado punido, é em todo o caso mulher de galé, mulher de ladrão.
O crime não se estende pela punição, mas a infâmia do crime estende-se pelo nome à mulher, à esposa infeliz do criminoso.
Daí o medo e o horror que faziam Cândida recuar diante de Dermany, o novo nome com inesperada e horrível condição de Souvanel o sedutor amado.
Cândida amava sempre o antigo Souvanel; mas à força se tornava cautelosa, prudente e sábia.
A cautela, a prudência, a sabedoria chegavam tarde para o grande erro do passado; ao menos, porém, preveniriam erros igualmente fatais no futuro.
Lucinda pleiteava incessante a favor da causa de Dermany, era a portadora das suas cartas, a intérprete de seus sentimentos, a eloqüente descritora dos seus sofrimentos e desesperos.
Cândida ouvia paciente, curiosa e comovida a mucama, inteirava-se de suas conversações com Dermany; mas suspeitosa e tomada de susto, desconfiada de Lucinda, pretextara as estreitas proporções de seu quarto, sem dúvida incomparavelmente inferior à sala em que ela dormia na casa magnífica da chácara de seu pai, para excluir a companhia noturna de sua escrava, e dormir só e trancada, livre portanto de qualquer atrevida visita, ou invasão sinistra do sedutor.
Lucinda exasperava-se, mas continha-se: ao pé do toucador, ou penteando sua senhora, vingava-se gárrula, impudente, venenosa, da sua proscrição noturna, insistindo sempre com a senhora para que confiasse o seu destino a Dermany, e sem dó das lágrimas que a fazia derramar, lembrava-lhe o seu maior infortúnio, e o direito e o dever que assistiam ao amante de tomá-la por esposa; outras vezes aconselhava e pedia a Cândida que, ainda mesmo para desenganar Dermany, concedesse a este uma hora, alguns minutos somente de conversação particular.
A mísera vítima resistia tenazmente com assombro da mucama, que esgotando em vão os esforços mais porfiados, mostrou-se em uma manhã mais séria e apreensiva que de costume, e disse-lhe:
– Minha senhora vai levar o Sr. Dermany a um excesso que certamente lhe custará dias de grande tormento...
– A ele ou a mim? – perguntou Cândida tristemente.
– A ele também; mas principalmente a minha senhora.
– E o excesso? Qual é?...
– Ontem o Sr. Dermany mandou-me chamar, e encarregou-me de dizer a minha senhora, que não podendo dominar sua paixão e resolvido a tudo tentar para ser seu esposo, ou minha senhora lhe irá falar esta noite, ou amanhã ele escreverá a seu pai, exigindo-a em casamento, e remetendo-lhe como prova de seus direitos sobre minha senhora, o bilhete que há três dias minha senhora lhe escreveu.
A escrava tinha os olhos embebidos no rosto de Cândida, que ao receber esse golpe inopinado, abismou as faces em ondas de sangue.
A vítima abrasou-se no fogo da vergonha e da cólera, e instantes depois, quando pôde falar levantou a cabeça, olhou terrível para Lucinda e respondeu:
– Dize a esse homem...
E interrompendo-se logo, prosseguiu depois de um instante:
– Oh! Não: a esse homem... doravante nem mais uma palavra...
– Minha senhora...
Cândida impôs silêncio a Lucinda.
– E tu – disse-lhe – acautela-te: se tornares a falar-me desse homem, hei de acusar-te à minha mãe para que me liberte da tua companhia fatal.
A mucama pôs-se a chorar.
– Deixa-me! – tornou-lhe a moça rispidamente.
E Lucinda saiu, enxugando as lágrimas.
– Que infâmia!!! – murmurou Cândida.