As Vítimas-Algozes (1869)/III/XVII
A escolha do noivo de Cândida era questão de máxima importância para Lucinda, pois que a ela se prendia naturalmente a do domínio de um senhor e a do sistema de vida em que sua senhora, e também ela, teriam de submeter-se.
A mucama de Cândida já conhecia Frederico e o aborrecia pela completa indiferença com que ele havia mostrado quase ignorar a sua existência.
As escravas também têm suas vaidades, embora torpes: são as vaidades que lhes concede a escravidão, torpes, como ela.
Além desse ressentimento, que aliás abonava a moralidade de Frederico, o grave caráter deste, o seu proceder, as claras disposições do ânimo circunspecto e frio, indicavam que o seu viver seria como o seu caráter, modesto, zeloso de sua reputação, sério, e reservado, e que na sua casa a honestidade, a prudência, e o sábio culto do dever, moderariam a impetuosa paixão dos gozos da vaidade de Cândida, e por conseqüência imporiam ordem à família, respeito aos costumes sãos, e não dariam margem aos cálculos de expansão libertina e aos dourados sonhos de um dia achar fortuna, com que a mucama muito se preocupava.
O que convinha a Lucinda, era para sua senhora um noivo estouvado, libidinoso, extravagante e rico; era o chefe de família desgovernando, na casa a licença aproveitando a desordem, e o desatino dos senhores facilitando a devassidão dos escravos.
Cândida, entrando para seu quarto, leu no rosto da mucama anúncios de novidade.
– Que há? – perguntou.
– Importante segredo, minha senhora.
– Dize-o.
– Querem casar minha senhora com o filho de seu padrinho.
– Deveras? Ë cômodo: sou poupada ao trabalho de procurar marido – disse Cândida negligentemente, sentando-se e oferecendo os pés, pa que a mucama lhe tirasse as botinas.
Lucinda curvou-se, e enquanto descalçava a senhora e punha em seus pés mimosos lindas chinelas de pelica bordada, refletiu sobre a indiferente frieza da resposta que recebera.
– Ah! Minha senhora já sabia?... Mas sou capaz de apostar que ignora as condições...
– As condições?... Quais são?
– Minha senhora que tem já dezesseis anos, há de esperar solteira mais dois... vale porém a pena...
Cândida, que não se demorava em pensar no casamento com Frederico, ainda não tinha calculado com esse sacrifício de dois anos de espera.
Lucinda saboreou a impressão que produzira no espírito da senhora o que acabava de dizer-lhe; logo depois prosseguiu:
– E como em dois anos, a cabeça de minha senhora pode doidejar, e onde há mais perigo de endoidecer é nos bailes e nos teatros, já se sabe por que, logo que meu senhor-moço e o Sr. Frederico tornarem a partir, minha senhora irá muito poucas vezes a tais divertimentos...
– Não entendi bem... – disse Cândida, sentindo-se ofendida.
Lucinda repetiu palavra por palavra a sua traiçoeira informação.
– Tu gracejas, Lucinda! – tornou a moça, fitando olhos brilhantes de cólera no rosto da escrava.
– Uma palavra descuidada de minha senhora poderia ser-me fatal.
– Nunca te comprometi, e preciso do teu zelo e dos teus serviços. Fala: dize-me tudo que sabes.
A mucama relatou a conversação de Florêncio da Silva e de Liberato, azedando o que podia ser desagradável à senhora, e esquecendo de plano a generosidade com que o pai protestara respeitar e defender a plena liberdade de sua filha na decisão do seu casamento com Frederico.
Cândida, tendo os olhos pregados nos lábios de Lucinda, escutou-a até o fim com os supercílios quase cerrados, e atormentando os dedos em nervoso aperto das mãos entrelaçadas. Custava-lhe sobretudo duvidar do amor de seu pai, acreditando nas combinações de prepotência e imposição, que a mucama deixava claramente entrever.
Grave, um pouco sombria e como suspeitosa, a donzela perguntou:
– Onde meu pai e meu irmão conversaram assim?
– Na sala da entrada.
– A que horas?...
– Logo que anoiteceu... às sete horas talvez.
– Pode ser... Liberato tinha ido fumar... eu ficara a ler... mas pai não tinha chegado ainda... e então?
– Também eu pensava que ele não tinha chegado – disse irrefletidamente a escrava.
– Também tu?... Pois sim: e donde ouviste a conversação?...
– Da porta que comunica a sala da entrada com o corredor.
– E que tinhas ido fazer ao corredor?
Lucinda não soube que responder, perturbou-se, tentou mentir e não pôde; quis falar e não passou de repetir:
– Eu ia... eu ia... eu ia...
Cândida corou fortemente: compreendera enfim o motivo que levara a mucama ao corredor, mas em vez de revoltar-se contra a petulância viciosa da escrava, achou somente nela uma prova da veracidade da relação que acabava de ouvir.
– Que me importa o que foste fazer ao corredor!... – exclamou.
– Minha senhora perguntava...
Que me importa!
E, levantando-se, Cândida avançou um passo para Lucinda, e voltando-lhe as costas, disse-lhe:
– Despe-me.
A mucama estendia os braços, quando a moça tornando-se de frente, rápido movimento, encarou-a de novo e perguntou:
- Não mentes?... O que dizes é verdade?
- Eu juro que é verdade, e minha senhora há de experimentar as provas do que eu disse, na vida que lhe vão dar.
Cândida rompeu a rir.
– De que ri, minha senhora?
– Não vês que me dão dois anos?... Ah, Lucinda! Querem governar o tempo; e quanto tempo? Dois anos!
E, trocando sem explicável transição o riso por seriedade pesada, pareceu começar a refletir; logo, porém, levantou os braços e com as mãos desmanchou acelerada o penteado e disse à mucama:
– Despe-me: preciso dormir.