As Vítimas-Algozes (1869)/III/XXI
A chegada dos hóspedes de seu pai e de seu irmão, e no primeiro dia que foi como que de apresentação dos estudantes e do jovem francês, que não eram conhecidos da família, a figura de Souvanel não produziu impressão simpática nem antipática no ânimo de Cândida; claramente, porém, agradaram-lhe mais os acadêmicos, cuja posição era definida: o estrangeiro recomendado só por suas habilitações de pianista e cantor, pareceu-lhe antes um recurso para divertir a sociedade, do que um amigo trazido como igual para o seio dela, e esta consideração o amesquinhou a seus olhos.
A primeira lição tornou Souvanel interessante; a vaidosa moça atendeu ao ensino sem atender à pessoa do mestre, e reconhecendo que muito podia ganhar com as explicações do insigne professor, lisonjeou-o, ameigou-o, sem idéia alguma de merecer-lhe cultos, e só para mais condescendente achá-lo, sempre que lhe pedisse o favor de alguma lição.
Mas Souvanel cantou, e sua voz era como o sentimento, deslizando suave como arroio murmurante, ou troando impetuoso, como a catadupa despenhada: era impossível deixar de olhar o homem que cantava assim, e Cândida viu no rosto e nos olhos de Souvanel todas as doces flamas, e rodas as lavas abrasadoras da paixão.
Na segunda lição o mestre explicou as notas, os compassos, o andamento, as modulações da voz que deviam exprimir amor, e o fez com eloqüência tão viva e insinuante, que a donzela começou a sentir alguma coisa de novo em seu coração, ouvindo Souvanel, e ainda leviana, explicou certo pendor que a inclinava para ele, pelo seu costumado empenho de avassalar sempre novos adoradores; desejou ser cortejada e requestada por esse mancebo, que sabia falar tão doce e fervorosamente de amor, e, insensata, deixou ver o primeiro sorriso e ouvir a primeira palavra, que não sendo provocação manifesta, autorizaram contudo louvores, a princípio apenas ternos, logo depois mais palpitantes de afetuoso interesse, e enfim anunciadores francos de galanteio, ou de amorosa chama.
Cândida deixou-se amar e animou com seus gracejos maliciosos o mestre nos momentos em que ficava a sós com ele e embeveceu-se nesse enleio, que se lhe afigurou simples namoro, como tantos outros, mais delicado e romanesco, porém, por se esconder medroso no encanto do mistério.
Souvanel, encorajado, desenvolveu com arte consumada, todos os ardis e todos os laços da sedução: poucas palavras bastam para mostrar os imensos recursos, o poder temível, e a vitória muitas vezes fácil da mais perigosa das seduções; escreveremos essas palavras que a muitos podem parecer até ridículas e que entretanto revelam séria observação: Souvanel seduzir pela música, e fez-se amar pela música.
Dez dias depois da sua chegada à casa de Florêncio da Silva, Cândida cantou com Souvanel, na fazenda de seu padrinho, o belíssimo e amoroso dueto de Torquato e Eleonora da ópera de Donizetti, e em seu transporte de fiel interpretadora daquela admirável e apaixonada música, desfez-se em lágrimas de indizível enternecimento.
Acabando de cantar, a donzela fugiu aos aplausos, correu para a sala do toilette, e atirando-se sobre um sofá, murmurou tremendo:
– Meu Deus! Que homem!
Cândida acabava de reconhecer que amava perdidamente Souvanel.
Algumas senhoras chegaram, procurando a bela cantora, a quem abraçaram.
– Cantou como nunca, D. Cândida! Cantou a fazer chorar!...
– Também eu chorei...
– É explicável... a comoção... a sensibilidade...
– Sim; foi isso – disse Cândida melancólica e pensativa. – É isso; aquele dueto faz um bem que parece mal.
Quando as senhoras voltaram à sala, trazendo a fugitiva e triunfante cantora, todos a cumprimentaram e a aplaudiram de novo, todos, menos um único cavalheiro e amigo, menos Frederico, que grave e pensativo se fora debruçar a uma janela.
Liberato foi bater no ombro de seu irmão colaço:
– Em que pensas, intempestivo filósofo?...
Frederico voltou-se e respondeu:
– Ocupava-me em resolver um problema.
– Ao diabo a geometria e o cálculo! Vamos dançar.
– Tens razão, Liberato; dancemos.
E Frederico avançou até o meio da sala, e, batendo palmas, chamou pares para uma contradança.
Souvanel dirigiu-se logo ao piano.
– Deixa o piano, Souvanel – disse Frederico. – Tu quase nunca danças; agora quero eu tocar.
Souvanel tomou parte na contradança; mas Cândida não foi o seu par, nem dançou defronte dele, e nem o jovem francês e ela se olharam.
E Frederico tocou, preocupado, porém, com a resolução do seu problema.