As Vítimas-Algozes (1869)/III/XXVII
A noite precedente passara toda em fervoroso e alegre festim, e as senhoras cansadas de dançar e de velar, embora em regozijo, amanheceram somente ao meio-dia.
Duas horas antes, conversavam reunidos no salão quase todos os cavalheiros hóspedes e amigos de Florêncio da Silva.
Souvanel animava a conversação e entretinha com a sua espirituosa garrulice a sociedade masculina que o cercava, e impávido atrevia-se a afrontar os olhos de Frederico, que aliás tranqüilo e grave não lhe mostrava nem ressentimento, nem indiferença, e apenas frieza imperceptível a todos, e só por ele sentida, na modificação do antigo acolhimento.
O jovem francês falou da França e de Paris, e contou cem histórias das delícias daquele país de vulcões políticos, e daquela capital rainha da moda e dos prazeres.
Então um velho fazendeiro disse-lhe:
– Está visto que o Brasil é para o senhor terra feia do desterro, e a própria cidade do Rio de Janeiro, deserto medonho.
Souvanel provocava desde meia hora essa observação ou alguma outra que lhe desse ensejo para fazer calculada proposta; respondeu pois imediatamente:
– O Brasil é o meu seio de amparo, terra abençoada por Deus, que no futuro igualará e excederá em opulência e brilho a minha França. Amo a França como filho, amo o Brasil como o menino enjeitado ama a santa mulher caridosa, que sem ser sua mãe, lhe deu desinteressada o leite de seus peitos. Viva o Brasil!... – bradou ele com entusiasmo que iludiu a quase todos.
– Estou vendo que também depois de Paris, não há para o senhor cidade como a do Rio de Janeiro – disse o mesmo velho que se encantava, ouvindo o astuto francês.
– Não – respondeu Souvanel. – Sou franco: não gostei da cidade do Rio de Janeiro: é uma capital sem monumentos, sem divertimentos públicos; capital, onde o viver custa caro, como em Londres, e não oferece compensações amenas; não me agrada a cidade do Rio de Janeiro; eu prefiro a ela a cidade de São Paulo, onde o acadêmico é príncipe, e a democracia ri aos sonhos esperançosos da mocidade inteligente que saúda encorajada o futuro; mas, depois de São Paulo, não conheço torrão mais belo, mais atraente, mais hospitaleiro, e mais capaz de fazer dormir as saudades da minha França, do que esta nascente e esperançosa cidade de...., do que este rico, civilizado e nobre município.
Frederico que passeava ao longo do salão, parou de súbito, e encarou Souvanel com olhar suspeitoso.
– É lisonja! É favor! – disseram algumas vozes.
– Lisonja! – tornou Souvanel. – Eu dou prova de que o não é: pobre proscrito político, exploro para viver os conhecimentos que tenho da arte de música; na capital do Brasil posso já contar com algumas discípulas de piano e canto; pois bem! Dêem-me os senhores a certeza de iguais recursos nesta pequena cidade, e eu juro preferi-la à orgulhosa cabeça do império.
Frederico franziu os supercílios e continuou a passear pelo salão.
O oferecimento de Souvanel era claro, positivo; sua notável habilidade no ensino tornara-se famosa pelo extraordinário aproveitamento de Cândida em poucas e rápidas lições; a palavra do mestre de música francês foi tomada ao sério: em poucos minutos teve ele a segurança de dez discípulas.
Souvanel declarou que ficaria estabelecido na cidade de...., como mestre de piano e canto.
Frederico viu na resolução audaz de Souvanel cálculo refinado de hipocrisia e de egoísmo, ou expediente de amorosa paixão para a conquista de Cândida: tinha decidido deixar Leonídia na ignorância do amor de sua filha, enquanto se habilitasse para julgar do merecimento e das condições morais desse estrangeiro mal conhecido; medindo, porém, os perigos que Cândida ia correr em suas relações com semelhante mestre de canto, pois que não podia duvidar de que Souvanel a contasse também por discípula, à vista dos milagres de ensino operados em lições passageiras, determinou prevenir sua mãe adotiva de quanto sabia, e do que era preciso acautelar.
O cumprimento de semelhante dever custava muito a Frederico: era míngua da sua magnanimidade da noite antecedente; podia afigurar-se vingança ciumenta de desprezo sofrido: embora, era sagrado dever a cumprir: Frederico havia de satisfazê-lo.
O caso não urgia: ele assentou em esperar um ou dois dias, observando solícito o procedimento de Cândida.
A resolução de Souvanel foi durante o almoço o ponto exclusivo da conversação geral.
Aplaudiam-se todas os fazendeiros e habitantes do município daquele inesperado tesouro que lhes ficava da festa do Natal.
Cândida estava por certo preparada para ouvir a feliz nova; recebeu-a pois sem sobressalto e notando que Frederico a observava suspeitoso, conteve a alegria e esforçou-se por mostrar-se pensativa.
Souvanel agradeceu comovido o favor com que o exaltavam e, encarecendo a proteção de que era objeto, declinou os nomes das dez discípulas que já contava.
– Esqueceu uma, Sr. Souvanel – disse Florêncio da Silva.
– Qual?
– Minha filha.
Cândida viu que Frederico se turbara, e voltara o rosto: revoltou-se dentro de si contra o censor a quem aliás tinha prometido plena confiança de irmã; mas obrigada a respeitá-lo, disse:
– Meu pai, eu não devo ser ingrata ao meu antigo mestre...
Souvanel empalideceu: Frederico olhou com reconhecimento para Cândida.
Florêncio da Silva quis insistir; sua filha, porém, o interrompeu, dizendo:
– Conheço por experiência própria a superioridade do método de ensino de M. Souvanel; mas quero aprender menos, conservando o meu velho professor.
Não faltou quem louvasse o procedimento de Cândida, que entretanto nunca fora tão hipócrita e refalsada.
O almoço terminou. Cândida prendeu-se todo o dia às outras senhoras, e evidentemente evitou Souvanel.
Frederico não compreendia ainda até onde pode chegar o fingimento de uma moça namoradeira, e começou a ter esperanças de poder salvar Cândida sem perturbar a serenidade e o amor maternal de Leonídia. Ele estudou até à noite a fisionomia e o proceder de sua irmã adotiva, acompanhou-lhe o olhar e os passos; acreditou ter-lhe sondado o coração, e em suas observações solícitas, mas disfarçadas, supôs encontrar melancolia e dor mal abafadas, anelo e temor, e exagerada esquivança própria de donzela inexperiente, alvoraçada pela convicção do perigo: tudo indicava seu amor por Souvanel; ao menos, porém, a prudência já, com excesso talvez, a fazia arrecear-se do homem desconhecido, a quem amava.
As comoções diversas da última noite, a morte da sua esperança de ser amado, o sacrifício que se impusera por dedicação, tinham roubado o sono e alquebrado as forças a Frederico, que cedendo à fadiga de horas longas de interessada e triste indagação dos sentimentos e das disposições de Cândida, sem querer, adormeceu em uma otomana na mesma câmara onde na véspera surpreendera Souvanel a beijar a mão que lhe era amorosamente abandonada.
O sono de Frederico não escapou a Cândida, que foi debruçar-se a uma janela, passando diante de Souvanel, o qual não perdeu o ensejo.
O jovem francês aproximou-se da janela com aparências respeitosas:
– Fiquei só por ti, e me rejeitaste!... – disse-lhe.
– Pobre louco! Terei dois mestres; um por dissimulação, outro por amor: espera.
– Até quando?
– Até que ele durma no navio em que tem de seguir para os Estados Unidos.
E Cândida com um volver d’olhos mostrou a câmara, onde Frederico repousava.
Souvanel fez um movimento com os ombros, como indicando que desprezava o mancebo, e imediatamente disse:
– A entrevista que pedi?... É indispensável...
– Não canto; absolutamente não canto esta noite – disse Cândida, vendo chegar Liberato.
– E por quê? – perguntou este.
– Porque... estou rouca: só cantarei para acordar Frederico; hei de porém cantar ao pé dele...
– Boa idéia! – despertemos o preguiçoso.
A idéia realizou-se.
Frederico despertou no meio de suaves harmonias, e em face de Cândida que ainda o enganava cruelmente assim.
Quando, logo depois, pôde falar-lhe sem indiscrição, Frederico, docemente iludido, disse à sua irmã adotiva:
– Obrigado, Cândida; mas eu penso que já posso dormir...
– Pode – respondeu a pérfida moça, sorrindo meigamente.