As Vítimas-Algozes (1869)/III/XXX
Travada estava a luta entre o anjo e o demônio; entre o gênio benéfico que se empenhava em salvar, e o gênio maléfico a quem convinha perder Cândida; entre Frederico, o homem livre e moralizado, cuja nobilíssima natureza a educação aprimorara, e Lucinda, a mulher escrava e pervertida, sem educação zeladora dos costumes, e cuja natureza, ainda mesmo que excelente pudesse ter sido, se achava desde muito depravada pela ignomínia e pelas torpezas da escravidão.
Cândida, não se abandonava quanto devia à segurança plena e ampla na dedicação extraordinária e magnífica de Frederico: repugnava à sua vaidade o prestar fé àquele pronto sacrifício do amor que inspirara: em seus hábitos de conquistadora e namoradeira, via nessa substituição de sentimentos, nessa abnegação de amante, nesse exclusivo extremo da amizade fraternal, força de vontade maior que o poder da sua beleza, e portanto uma ofensa ao império dos seus encantos, que julgava irresistíveis; além disso um pouco impressionada pelas prevenções e receios, que a mucama procurara acender em seu ânimo, hesitava, presumindo que Frederico, sempre dela apaixonado, sempre com aspirações a desposá-la, fizesse de mentirosa virtude uma rede para prendê-la, um engano soporífero para, aproveitando-lhe o sono, separá-la perpetuamente de Souvanel, seu rival.
Hesitante assim, Cândida não soube ser franca e leal com seu irmão adotivo, e antes empregou todos os recursos da dissimulação para iludi-lo e levá-lo a acreditar na sua fiel submissão, aos conselhos que lhe ouvira; mas, ainda suspeitosa por vaidade, sua alma obrigada ao culto da majestade da virtude, embeveceu-se muitas vezes contemplando Frederico tão grande na proteção com que a queria escudar, e no artifício com que se acusara, a fim de poupá-la aos desgostos, às repreensões, e ao triste desencanto de sua mãe.
Trazendo porém da sala essas impressões, e no meio de injustas dúvidas pelo menos a convicção de que devia acautelar-se contra os possíveis ardis de Frederico e também contra os perigosos enleios do amor de Souvanel, Cândida, recolhendo-se a seu quarto, esbarrou com Lucinda que parecia sobressaltada a esperá-la.
– Que há? – perguntou.
A mucama pôs um dedo na boca, recomendando silêncio, e apontou para o lado, onde ficava contígua a sala de dormir de Leonídia.
Por alguns minutos os gestos e as meias palavras pronunciadas quase imperceptivelmente pela escrava anunciaram crítica situação.
A senhora e a mucama emprazaram-se mais com a mímica, do que com frases abafadas, para conferenciarem oportunamente nessa mesma e já adiantada noite.
Cândida trocou seu toilette de festa por leve roupão de dormir, e deitou-se, mandando apagar a luz.
Eram duas horas da madrugada.
Meia hora depois o silêncio tornara-se profundo. A casa toda dormia.
Velavam somente o medo de Cândida, a perversão da mucama escrava, e a infame traição de Souvanel.
Cândida sentiu os leves passos de Lucinda que trêmula foi ajoelhar-se à cabeceira do leito de sua senhora.
Falaram então ambas, apuridando-se.
A mucama disse:
– O senhor Frederico revelou tudo a minha senhora velha... à mãe de minha senhora...
– Tu ouviste?
– Ouvi o fim da conversação, foi ali na sala de jantar... o senhor Frederico prestou um juramento que não percebi; mas falaram de casamento...
– Ah!
– Depois o senhor Frederico foi encontrar-se no jardim com o moço francês...
– Sim... saíram ambos... reparei...
– E intimou-o a deixar esta casa amanhã...
– Ele? Com que direito?
– O moço francês quer desafiar o senhor Frederico...
– Oh! Não!... Isso não...
– Mas temendo comprometer o nome de minha senhora, chora de raiva... amanhã não sei o que será... ele fala em retirar-se para a Corte, esperar lá o senhor Frederico e provocá-lo ao que chama duelo de morte...
– Sei o que é... é horrível! Não quero isso!...
– Há só um meio de o impedir; diz o moço francês.
– Qual?
– É minha senhora ir entender-se com ele sobre as esperanças e o futuro do seu amor, receber suas despedidas e combinar seus planos de próximo casamento...
– Como? Quando? Onde?
– No quarto de Leopoldo, o pajem fiel de meu senhor: há no quarto uma janela para o jardim: o pajem é dedicado a minha senhora e ao moço francês, que às três horas lá a espera...
– Lucinda!
– Minha senhora pode ir e voltar sem ser sentida... dormem todos...
– Oh! Não!... É impossível!...
– Eu a acompanharei, se minha senhora tem medo...
– Mas... um encontro assim... a tais horas... não irei.
– A tais horas é que deve ser para que ninguém o suspeite...
– E a minha honra?
– O moço francês é incapaz de atentar contra ela.
– E meu pai? E minha mãe?
– Dormem a sono solto.
– Render-me desse modo escrava de um homem... aviltar-me!
O relógio da sala de jantar anunciou três horas.
Cândida estremeceu.
– É a hora – disse Lucinda.
– Não irei; seria indigna, se fosse...
– Minha senhora não ama.
– Oh! Se amo!!!
– E se ele fugir-lhe? E se ele se fizer matar...
– É para desesperar... Lucinda!
– Ânimo! Vamos: nunca se viu uma senhora conversar com um homem?
Cândida sentou-se no leito; Lucinda ergueu-se:
– Vamos ... eu a acompanho, minha senhora...
Cândida refletiu por breves instantes e disse:
– Souvanel quer pôr em experiência a minha virtude...
E tornou a deitar-se.
– Minha senhora – disse Lucinda – , pense bem nos perigos a que expõe o seu amor, e o homem que ama.
– Não irei: Souvanel há de amar-me muito mais; porque não vou.
– E fugirá... e matar-se-á...
– Escuta: vai tu por mim...
– Como? – perguntou a mucama com um certo abalo.
– Vai tu por mim – repetiu Cândida.
– Eu, por minha senhora? – murmurou Lucinda, inflamando-se, e contendo as flamas de súbito pensamento.
– Sim; vai: dize-lhe que o amo, que o adoro, que serei sua esposa; que sofra tudo por minha causa e não se ausente; que espere e confie no meu amor; que hei de ser dele... dele só e para sempre... mas honesta e pura; e que por honesta e pura não posso dar-lhe, nem jamais lhe darei conferências a tais horas, em semelhante lugar.
– Minha senhora!... – disse a mucama, que aliás não mais insistia.
– Vai por mim.
E Lucinda perfeitamente convencida da acertada resolução de Cândida, saiu do quarto pé ante pé e foi por sua senhora a encontrar-se com Souvanel.
Passou uma longa hora que a Cândida pareceu um século.
Enfim Lucinda voltou, e chegou-se ao leito de sua senhora.
– Ele fica – murmurou com voz trêmula.
– Disseste-lhe tudo que te recomendei?
– Tudo.
– E ele?
– Comoveu-se... chorou... e resignou-se.
– Que me mandou dizer?
– Que a adora, e que há de obedecer à sua vontade, como escravo.
– Não se baterá com Frederico?
– Não, minha senhora; mas detesta-o.
– E por que tardaste tanto?
A mucama riu-se da pergunta da senhora, riu-se contente e zombeteira; porque ria-se na escuridão, e não atraiçoava a sua torpeza no escandaloso riso, riu-se pois de Candida e respondeu:
– O moço francês demorou-se... esperei-o mais de meia hora...
– Ainda bem que não fui eu que o esperei – disse Cândida.