As Vítimas-Algozes (1869)/III/XXXII
O nobre defensor lá se ia, e a mucama escrava ficava ao pé da vítima.
Frederico mal podia pesar o grau imenso da sabedoria do segundo e último conselho que deixara a Cândida.
Lucinda estava sendo junto de sua senhora o demônio tentador, a guarda avançada que preparava o assalto da sedução.
Dedicada a Souvanel, pelo vício alimentado no presente, pelo vício esperançoso do futuro, esquálida amante sem ciúmes, a mucama escrava comprada pelos favores lascivos do francês, contando com a emancipação prometida, e com a sua fortuna feita por ele apaixonado de seus desenfreados transportes, ou por outros sucessivos libertinos ricos e depravados, assediava sua senhora com os sofismas rudes, mas sempre sinistros e formidáveis quando falam ao amor inflamado por violentos ardores.
Frederico o não pensava, e Lucinda uma hora em cada noite, muitas vezes em cada dia, lançava em rosto a Cândida a frieza do seu amor, a ofensa que a sua virtude exagerada irrogava à confiança que merecia o seu amado, quando lhe negava a noturna conferência, que ele pedia teimoso, e já ressentido, ou antes artificialmente ressentido.
Frederico o não pensava, e a mucama escrava predispondo a conferência reclamada, exigida em duas e três cartas vulcânicas por dia, encorajava, excitava Souvanel, recebendo-o em desoras por mais de uma vez no quarto do pajem, o fiel de Florêncio, e vendido a Souvanel, no quarto do escravo, por onde se mostrava caminho aberto para se ir ter ao quarto da donzela.
E quem sabe o que já imaginava o pajem, quando, abrindo a janela em horas mortas da noite saltava para fora, e Souvanel saltava para dentro do quarto, onde a negra o recebia?...
Cândida tinha ao menos triunfado até então das ciladas e dos sedutores invites da mucama e do francês, e não tinha idéia das escandalosas relações de um e outra; mas desde a última noite de festa prevenida por Lucinda contra Frederico, e dele desconfiada ainda mais por certo quê de triste, desgostoso, e contrafeito, que achava no trato de sua mãe, presumira-se atraiçoada em seu segredo pelo irmão adotivo, pagando fingimento por fingimento, e amando em dobro Souvanel pelo impulso da reação, pressentia a falsidade na lealdade, e supunha encontrar a dedicação na traição.
A desgraçada vítima duvidava de Frederico e o enganava com as mais suaves e meigas demonstrações de seguridade, e atendia perdida de amor às instigações tentadoras e traiçoeiras de Lucinda, que sublimavam a paixão ardentíssima de Souvanel.
Frederico punha condições ao amor de Cândida; Lucinda lisonjeava-o plena e absolutamente; é claro, pois, que Lucinda se faria ouvir mais fácil e agradavelmente do que Frederico.
Entretanto Cândida cogitava perplexa e inquieta na recomendação que recebera para resguardar-se da sua mucama: não podia crer que Frederico se abaixasse a mover intriga contra uma escrava e, em sua consciência, lembrando os maus conselhos e insistência de Lucinda no empenho de fazê-la prestar-se a conferências com Souvanel, estava reconhecendo a sabedoria da recomendação.
Mas que motivo teria inspirado a seu irmão adotivo o mau conceito em que ele tinha a sua mucama? Cândida perdia-se em vagas conjecturas, e prometendo a si mesma acautelar-se, prevenindo-se contra Lucinda, mostrou-se como até então desacautelada, julgando que não podia prescindir dos serviços dela, para continuar a entreter sua correspondência amorosa com Souvanel.
Foi assim que na noite do mesmo dia em que Frederico lhe anunciara a sua viagem, e o fim que o levava à Corte, ela, que tinha-se já abalançado a escrever a Souvanel para consolá-lo das negativas de conferência, relatou-lhe em minuciosa carta o fato que a ambos devia interessar tanto.
Lucinda, recebendo a carta de sua senhora, e habituada às mais íntimas confidências do seu amor, não hesitou em perguntar se sobreviera alguma novidade.
Cândida não quis alvoroçar a mucama com reservas a que ela não estava acostumada, e referiu-lhe o objeto da viagem de Frederico,
– Ah! – disse a escrava. – Espere minha senhora pelas boas informações que hão de vir: o moço francês vai ter todos os vícios, e será bem feliz se não lhe imputarem alguns crimes.
– Como? Frederico é incapaz de aleives.
– Minha senhora, o senhor Frederico é hipócrita.
Cândida olhou severamente para Lucinda e disse-lhe:
– Não quero que fales de meu irmão por esse modo.
A escrava curvou a cabeça.
Passados alguns momentos, a senhora, adoçando a voz, perguntou:
– Quando poderá Souvanel receber a minha carta?
– Amanhã, minha senhora.
– E a resposta?... Tê-la-ei amanhã mesmo?
– Talvez
– Ah, Lucinda! Tu não sabes, como é grata e suave a leitura de uma carta do homem a quem se ama!
A mucama animou-se de novo.
– Faço idéia – respondeu. – Há, porém, coisa ainda mais grata e suave.
– O quê?
– Ouvir da própria boca do amado, em conversação secreta, isso mesmo que ele escreve e muito mais que ele não pode escrever.
– Lucinda! Que teima!...
– Pois se minha senhora está com vergonhas e medos de menina tola! É coisa do outro mundo uma moça conversar em segredo com o moço que há de ser seu marido?... E ele que a não vê mais, e deseja tanto vê-la?
– Não insistas mais nisto; eu to proíbo.
– O moço francês há de pensar que minha senhora tem medo dele, e de si...
Cândida corou, e revoltou-se; não se conteve e disse:
– Frederico tem razão... devo acautelar-me de ti!
A mucama recuou um passo perturbada; mas logo depois satanicamente inspirada, perguntou:
– Ele disse a minha senhora, que desconfiasse de mim?
– Disse-me.
Lucinda levou à boca ambas as mãos como para conter uma risada.
– Que é isso?...
– Minha senhora, o senhor Frederico não tem razão; mas tem motivo...
– Dizes que tem motivo?...
A escrava sorriu-se ignobilmente e murmurou, abaixando os olhos:
– A gente às vezes é má e ofende sem querer...
– Como?...
– Era possível que ele viesse a casar com minha senhora...
– E então?
– Eu fiel a minha senhora, e ele... tão feio...
Cândida tinha já compreendido; mas estouvada e louca, prelibando o ridículo, desejando rir, e acostumada a divertir-se com os casos lúbricos que lhe contava a mucama, disse, fingindo-se enleada:
– Explica-te, Lucinda.
– A explicação foi mentira indecente e escandalosa, em que a negra devassa se ostentou esquiva, relutante, e recatada principalmente em respeito e por fidelidade à sua senhora.
Cândida que começava a ouvir a improvisada história, rindo-se, acabou, voltando o rosto com repugnância e nojo de Frederico, que todavia nunca se lembrara de abaixar os olhos sobre a negra, que aliás era amante de Souvanel.