As minas do rei Salomão/IX
Durante mais de uma hora caminhamos, através da escuridão, guiados por Infandós e pelos chefes -até que de novo surgiu, como um fino traço luminoso, a orla do sol. Daí a pouco havia já luz suficiente; e achamo-nos então longe de Lu, junto de uma larga colina, de duas fartas milhas de circunferência, em forma de ferradura, e toda ela inteiramente plana no topo. Desde, tempos imemoriais, aquele planalto fora (segundo nos disse Infandós) aproveitado como acampamento permanente, e ordinariamente ocupado por uma guarnição de três mil homens. Nessa manhã, porém, à maneira que íamos trepando os flancos da colina, à luz já viva e quente do sol, descobríamos sucessivos regimentos, formando uma divisão de dezoito ou vinte mil homens, quase todos veteranos. Estavam ainda sob o espanto e terror da misteriosa treva, que de repente os envolvera. E foi em silêncio que passamos através das suas filas cerradas, em direção a um grupo de cabanas, que se erguia a meio do planalto. Com surpresa e grande alegria encontramos lá dous servos, à espera, carregados com todas as nossas bagagens, cantinas, e munições que nessa manhã deixáramos nas cubatas de Lu. Numa trouxa as calças de John. Com que sofreguidão ele as envergou, pudico homem!
— Fui eu que mandei vir tudo, à cautela! -explicou o serviçal Infandós. -Quem sabe quantos dias estaremos neste deserto! Como não havia tempo a desperdiçar, o velho e ativo guerreiro deu ordem para que se formassem as tropas imediatamente. Era necessário antes de tudo (disse ele), aclarar aos regimentos os motivos da revolta já decidida pelos chefes, e apresentar-lhes Ignosi, o legítimo rei por quem iam combater.
Meia hora depois os regimentos (a flor do exército dos cacuanas) estavam em formatura nos três lados de um imenso quadrado. Do lado aberto ficamos nós com Ignosi, o velho Infandós e os chefes conjurados. Logo que um arauto intimou silêncio -Infandós avançou; e com um calor, um entusiasmo, irresistivelmente persuasivos, narrou a história de Ignosi, o seu nascimento real, a serpente tatuada na cinta, a trágica morte de seu pai à mão de Tuala, a sua fuga através dos montes, o seu exílio entre estranhos. Depois retraçou o reinado cruento de Tuala, os seus crimes, as suas espoliações, as frias e inúteis crueldades. Em seguida contou como os homens brancos das estrelas, que de lá de cima tudo vêem, se tinham compadecido da grande aflição que ia no reino dos cacuanas; como tinham ido então buscar Ignosi, o rei legítimo, às terras distantes onde ele definhava no exílio, e o haviam trazido pela mão, através dos areais e dos montes, ao país de seus pais; como nessa manhã, para mostrar a Tuala e a todos o seu poder mágico, e provar aos chefes descontentes que Ignosi era rei, eles com as suas artes tinham apagado, e depois tornado a acender o sol; e como, enfim, esses mágicos que nenhuma força vencia, estavam dispostos a derrubar Tuala, o falso rei -e pôr em seu lugar Ignosi, o rei verdadeiro!
Apenas ele findara, entre um longo murmúrio de aprovação, Ignosi deu dous passos, e, alteando a sua nobre estatura, apelou para as tropas. -Elas tinham ouvido Infandós, seu tio! Cada palavra dele luzia como a verdade. Os cacuanas agora só podiam escolher entre Tuala, o monstro que os roubava, os trucidava, e cobria a terra de horror e desordem, -e ele, rei legítimo, que não permitiria mais no reino a caça aos feiticeiros, nem matanças de festa, nem castigos sem julgamento, nem a opressão dos mais fortes... Pelo contrário, sob ele, só haveria paz e abundância! A todos os que ali estavam e o ajudassem daria cubatas, mulheres e gados; e todos, ganha a vitória sobre Tuala, iriam viver nas suas senzalas bem providas, em descanso e alegria para sempre. De resto, os homens das estrelas estavam com ele, a seu lado, para manter os seus direitos. E quem podia ir contra a força das suas artes mágicas? Não tinham eles visto o sol apagado, depois outra vez brilhante, à ordem dos espíritos brancos?
Um rumor de aquiescência, de adesão, corria já entre as tropas. Ignosi então recuou um passo, e erguendo no ar o seu formidável machado de guerra:
—Eu sou o rei! Na verdade vos digo que sou o rei! E se aí há alguém, dentre vós, que diz que eu não sou o rei, que saia a terreiro, se bata comigo, e bem cedo o seu sangue, correndo no chão, provará que na verdade sou rei. Escolhei pois entre mim e Tuala, oh chefes, soldados, vós todos! Sou eu o rei!
—És o rei! -foi a universal, aclamadora resposta, que atroou toda a colina.
—Bem! Tuala está mandando já emissários a reunir os seus homens, para nos combater. Os meus olhos estão abertos e verão aqueles que mais fiéis me são, e que merecerão mais terra, mais gado, mais riqueza. E agora ide, e preparai-vos para as batalhas, em defesa do vosso rei!
Houve um silêncio. Um dos chefes ergueu a mão; e os vinte mil homens, ferindo o solo com as azagaias, soltaram a grande saudação real -Krum! Krum! Krum! Ignosi estava aclamado rei. Os batalhões imediatamente recolheram aos seus acampamentos. No planalto reinou silêncio e ordem. Logo depois celebramos um conselho de guerra, com todos os capitães. Era evidente que em breve seríamos atacados pelas tropas fiéis a Tuala. Já do alto da nossa colina nós víamos regimentos marchando, a concentrar-se em Lu -e um incessante movimento de armas por toda a estrada de Salomão. Do nosso lado contávamos com vinte mil homens. Tuala, segundo o cálculo dos chefes, poderia ter reunidos, na manhã seguinte, trinta e cinco a quarenta mil soldados. Mas desses, muitos eram recrutas; e a forte flor do exército, os veteranos endurecidos, os capitães de experiência, estavam felizmente conosco, sobre a colina da Revolta.
O primeiro cuidado era fortificar a nossa posição. Começamos por obstruir, com grossos rochedos, todos os carreiros que subiam da planície. Nos pontos mais acessíveis erguemos estacadas e trincheiras. Acumulamos, à orla do planalto, montes de pedras para arremessar sobre os assaltantes. Aqui e além cavamos fossos. E, como todo o exército trabalhava, ao fim da tarde a colina fora convertida em cidadela.
Justamente antes do pôr do sol, vimos um grupo de homens que, de uma das portas de Lu, avançava para nós, fazendo soar um tantã. Um deles trazia na mão uma palma verde. Era um arauto.
Ignosi, Infandós, dous ou três chefes, eu e os amigos, descemos ao seu encontro. Vimos um soberbo homem, ainda moço, com a pele de leopardo aos ombros.
—Saúde! -gritou ele, parando e agitando a palma. -O rei envia o seu saudar àqueles que lhe fazem uma guerra infiel. O Leão envia o seu saudar aos chacais.
—Fala! -bradei.
—Estas são as palavras do rei: "Entregai-vos à minha mercê, ntes que a minha forte mão caia sobre vós!" -Assim disse o rei. Já foi arrancada ao touro negro a espádua direita! Já o rei o anda enxotando, ensangüentado, em volta ao acampamento! ( Este cruel costume é comum a muitas tribos da África, por ocasião de guerra. )
—Quais são as condições de Tuala? -perguntei com curiosidade.
O arauto declarou que as condições eram misericordiosas e dignas de um grande rei. Muito pouco sangue o contentaria.
De cada dez homens um seria morto, os outros perdoados; mas o branco Incutiu que matara Escraga, o servo Ignosi que pretendia o seu trono, e Infandós que preparara a rebelião, seriam postos a tormentos, em sacrifício aos Silenciosos. Tais eram as misericordiosas condições do rei. Consultei um instante com os chefes, e repliquei, num tom estridente, para que todos os soldados ouvissem, por sobre a colina:
—Volta para Tuala que te mandou, oh cão, filho de cão! E dize-lhe em nome de Ignosi, legítimo rei, e de Infandós, seu tio, e dos homens das estrelas que apagam o sol, e de todos os chefes e soldados aqui juntos, dize a Tuala -que antes que o sol dê duas voltas, o cadáver de Tuala jazerá hirto e frio no terreiro de Tuala... Vai e treme, oh cão, filho de cão! O oficial riu, com arrogância:
—Não se assustam homens com palavras inchadas! Amanhã se verá em que terreiro e que corpos jazerão hirtos e frios. Adeus, pois, homens das estrelas. Para meu próprio regalo, espero que tenhais o braço tão forte, como tendes ousada a língua.
Com este sarcasmo o valente voltou costas. Quase imediatamente a noite desceu.
À luz da lua ainda continuaram os trabalhos da defesa.
Depois, já por noite alta, quando tudo se completara, o barão, Ignosi e eu, acompanhados por um dos chefes, descemos a colina a visitar os postos avançados. À maneira que caminhávamos, víamos de repente surgir dos sítios menos esperados, de uma cova na terra, de uma moita de arbustos, de um montão de rochas, alguma enorme figura emplumada, com a ponta da azagaia rebrilhando à lua, que, trocada a palavra de passe, logo se sumia, como dissolvida na sombra das cousas. A vigilância era realmente perfeita. Demos assim toda a volta à colina, que tornamos a subir pela vertente norte, através das companhias de soldados adormecidos. A lua batia nas lanças ensarilhadas. Aqui e além uma sentinela destacava imóvel, com as suas altas plumas ondeando à brisa fria da noite. E os robustos homens escuros, estirados no chão, uns contra os outros, no confuso abandono da fadiga e do sono, formavam como um vasto montão de humanidade já prostrada e preparada para a sepultura. Quantos daqueles estariam ainda vivos, quando na outra noite de novo nascesse a lua? Estranha fatalidade e tristeza da vida! Muitos desses tinham alegria e paz nas suas arrogas. Um príncipe ambicioso passava. E eis que milhares, que ali dormiam um sono tranqüilo, cairiam, varados por lanças, seriam frios cadáveres, desapareceriam em pó impalpável, sem de si deixar mais vestígio que folhas de árvores que um vento leva. E nós mesmos -quem sabe? tornaríamos nós a ver a lua brilhar naquela colina?
—Barão -disse eu de repente, dando voz a estes pensamentos, -sinto-me num lamentável estado de atrapalhação e de medo.
—O amigo Quartelmar costuma sempre queixar-se...
—Não, não! Desta vez é sério. Nem sinto as pernas. Nós amanhã somos atacados com forças colossalmente superiores e não escapa um de nós. É estúpido! E para quê? Não temos nada com as questões dinásticas dos cacuanas! Somos estrangeiros; somos neutros!
—É verdade. Mas já agora, estamos envolvidos na aventura e é necessário levá-la a cabo airosamente. E depois, que diabo, Quartelmar! Mais vale morrer de repente, numa batalha, que durante meses na cama!...
Eu pensei comigo (e bem estupidamente) que o melhor era não morrer nem numa cama, nem numa batalha. E daí a instantes recolhíamos à nossa estreita senzala, a dormir algumas horas antes da grande ação.
Infandós veio-nos acordar ao romper da alvorada, dizendo que se observavam já do lado da cidade movimentos de tropas, e que já ligeiras escaramuças tinham obrigado as nossas sentinelas avançadas a recolher. Começamos logo, febrilmente, os nossos preparativos. O barão, pelo princípio de que na "Cacuânia se deve ser cacuano", armou-se e enfeitou-se como um guerreiro selvagem -pele de leopardo aos ombros, enorme pluma de avestruz presa à testa, cintura de rabos de boi, escudo de ferro coberto de couro branco, machado de combate, facalhões de arremessar, azagaia, todo o complicado armamento de um chefe negro. E devo confessar que assim armado e emplumado, era uma esplêndida e formidável figura! O Capitão John não causava tanta impressão. Em primeiro lugar insistira em conservar as calças que Infandós lhe obtivera; e um cavalheiro baixote e gordote, de monóculo, suíça de um lado e a cara rapada do outro, com uma cota de malha de ferro metida para dentro das pantalonas, grande lança e chapéu coco, oferece na realidade um espetáculo mais estranho que imponente. Eu por mim, ao contrário, tinha tirado as calças para correr mais lesto, se tivéssemos de retirar; mas a fralda da camisa aparecia-me por baixo da cota de malha; um facalhão que pendurara à cinta, batia-me lamentavelmente nas canelas; o escudo enfiado no braço entanguia-me os movimentos; e sentia em geral que não apresentava para combate uma figura suficientemente heróica. De sorte que espetei uma imensa pluma no meu boné de caça -e procurei dar ao rosto uma expressão de ferocidade. Além do arsenal de armas selvagens, tínhamos naturalmente as nossas carabinas, que três soldados atrás conduziam com os sacos de munição. Apenas armados, engolimos à pressa o almoço, e abalamos. Numa das extremidades do planalto do monte havia uma espécie de casebre de pedra, que servia ao mesmo tempo de quartel-general e de torre de vigia. Encontramos aí Ignosi, magnificamente emplumado e apetrechado. Com ele estava Infandós; e como guarda real o regimento de Infandós, decerto o mais numeroso e aguerrido de todo o exército. Este regimento tinha por nome os Pardos, porque usava plumas pardas na cabeça. Era composto de três mil praças; e estava colocado de reserva, deitado em ordem e por companhias sobre o capim que ali crescia. Os chefes, num grupo, junto do casebre, com as mãos em pala sobre os olhos, observavam o movimento das tropas de Tuala -que vinham nesse momento saindo de Lu em longas colunas semelhantes a formigueiros. Cada uma dessas colunas tinha de onze a doze mil homens. Logo que saíram as portas de Lu e se acharam na planície, pararam; depois, formadas em batalha, marcharam uma para a direita, outra para a esquerda, a terceira em direção à nossa colina.
—Bom -murmurou Infandós -vamos ser atacados por três lados!