Astúcias de marido/I
Não me admira, dizia um poeta antigo, que um homem case uma vez; admira-me que, depois de viúvo, torne a casar. Valentim Barbosa achava-se ainda no primeiro caso e já compartia a admiração do poeta pelos que se casavam duas vezes.
Não é que a mulher dele fosse um dragão ou uma fúria, uma mulher como a de Sócrates; ao contrário, Clarinha era meiga, dócil e submissa, como uma rola; nunca abrira os lábios para exprobrar ao marido uma expressão ou um gesto. Mas que faria então a desgraça de Valentim? É o que eu vou dizer aos que tiverem a paciência de ler esta história até o fim.
Valentim fora apresentado em casa de Clarinha pelo correspondente de seu pai no Rio de Janeiro. Era um rapaz de vinte e oito anos, formado em direito, mas suficientemente rico para não usar do título como meio de vida.
Era um belo rapaz, no sentido mais elevado da palavra. Adquirira nos campos riograndenses uma robustez que lhe ia bem com a beleza máscula. Tinha tudo quanto podia seduzir uma donzela: uma beleza varonil e uma graça de cavaleiro. Tinha tudo quanto podia seduzir um pai de família: nome e fortuna.
Clarinha era então uma interessante menina, cheia de graças e prendas. Era alta e magra, não da magreza mórbida, mas da magreza natural, poética, fascinante; era dessas mulheres que inspiram o amor de longe e de joelhos tão impossível parece que se lhes possa tocar sem profanação. Tinha um olhar límpido e uma fisionomia insinuante. Cantava e tocava piano, com a inspiração de uma musa.
A primeira vez que Valentim a viu, Clarinha saía da cama, onde a detivera, durante um mês, uma febre intermitente. Um rosto pálido e uns olhos mórbidos deixaram logo o advogado sem saber de si, o que prova que não havia nele uma alma de lorpa.
Clarinha não se inspirou de nada; gostava do rapaz, como o rapaz gostara de outras mulheres; achou-o bonito; mas não sentiu amor por ele.
Valentim não teve tempo nem força para analisar a situação. Ficou abalado pela menina e decidiu-se a apresentar-lhe as suas homenagens. Não há ninguém que tome mais facilmente intimidade do que um namorado. Valentim, aos primeiros oferecimentos do pai de Clarinha, não hesitou; volveu à casa da moça e tornou-se o mais assíduo freqüentador.
Valentim conhecia a vida; metade por ciência, metade por intuição. Tinha lido o Tratado de paz com os homens, de elefantes. Uma tia da moça detestava o império e a constituição, chorava pelos minuetos da corte e ia sempre resmungando ao teatro lírico; Valentim contrafazia-se no teatro, dançava a custo uma quadrilha e tecia loas ao regime absoluto. Enfim, um primo de Clarinha mostrava-se ardente liberal e amigo das polcas; Valentim não via nada que valesse uma polca e um artigo do programa liberal.
Graças a este sistema era amigo de todos e tinha seguro o bom agasalho.
Mas daqui resultavam algumas cenas divertidas.
Por exemplo, o velho surpreendia às vezes uma conversa entre Ernesto (o sobrinho) e Valentim a respeito de política: ambos coroavam a liberdade.
— Que é isso, meu caro? Então segue as opiniões escaldadas de Ernesto?
— Ah! respondia Valentim.
— Dar-se-á caso que também pertença ao partido liberal?
— Sou, mas não sou...
— Como assim? perguntava Ernesto.
— Quero dizer, não sou mas sou...
Aqui Valentim tomava a palavra e fazia um longo discurso tão bem deduzido que contentava as duas opiniões. Dizem que é isto uma qualidade para ser ministro.
Outras vezes era a tia quem o surpreendia no campo contrário, mas a habilidade de Valentim triunfava sempre.
Deste modo, concordando em tudo, nas opiniões como nas paixões — apesar das pesadas obrigações de jogar o xadrez e ouvir a velha e as histórias do outro tempo —, Valentim conseguiu na casa de Clarinha uma posição proeminente. Sua opinião tornou-se decisiva em tudo quanto concernia aos projetos do velho pai. Baile onde não fosse Valentim não ia a família. Dia em que este não fosse visitá-la podia dizer-se que corria mal.
Mas o amor caminhava ao lado da intimidade, e até por causa da intimidade. Cada dia trazia a Valentim a descoberta de uma nova prenda no objeto do seu culto. A moça estava na mesma situação do primeiro dia, mas era tão amável, tão doce, tão delicada, que Valentim, tomando a nuvem por Juno, chegou a acreditar que era amado. Talvez mesmo Clarinha não fosse completamente ingênua no engano em que fazia cair Valentim. Um olhar e uma palavra não custa, e é tão bom alargar o círculo dos adoradores!
O pai de Clarinha descobriu o amor de Valentim e aprovou-o logo antes da declaração oficial. Aconteceu o mesmo à tia. Só o primo, apenas desconfiou, declarou-se interiormente em oposição.
Para que encobri-lo mais? Não sou romancista que me alegre com as torturas do leitor, pousando, como o abutre de Prometeu, no fígado da paciência sempre renascente. Direi as coisas como elas são: Clarinha e Ernesto amavam-se.
Não era recente esse amor: datava de dois anos. De três em três meses Ernesto pedia ao velho a mão da prima, e o velho recusava-lhe dizendo que não dava a filha a quem não tinha eira nem beira. O moço não pôde arranjar um emprego, apesar de todos os esforços; mas no fim do período regular de três meses voltava à carga para receber a mesma recusa.
A última vez que Ernesto renovou o pedido, o pai de Clarinha respondeu que se lhe ouvisse mais falar nisso fechava-lhe a porta. Proibiu à filha que falasse ao primo, e comunicou tudo à irmã, que julgou oportuna a ocasião para obrigá-lo a suspender a assinatura do teatro lírico.
Ir à casa de Clarinha sem poder falar-lhe era cruel para o jovem Ernesto. Ernesto, portanto, retirou-se amigavelmente. No fim de algum tempo voltou declarando estar curado. Pede a fidelidade que manifeste neste ponto ser a declaração de Ernesto a mais séria do mundo. O pai acreditou, e tudo voltou ao seu antigo estado; sim, ao seu antigo estado, digo bem, porque o amor que Ernesto cuidara extinto reviveu à vista da prima. Quanto a esta, ausente ou presente, nunca esqueceu o amante. Mas a vigilância prudente do pai pôs os nossos dois heróis de sobreaviso, e ambos passaram a amar em silêncio.
Foi pouco depois disto que apareceu Valentim em casa de Clarinha.
Aqui devo eu fazer notar aos leitores desta história, como ela vai seguindo suave e honestamente, e como os meus personagens se parecem com todos os personagens de romance: um velho maníaco; uma velha impertinente, e amante platônica do passado; uma moça bonita apaixonada por um primo, que eu tive o cuidado de fazer pobre para dar-lhe maior relevo, sem todavia decidir-me a fazê-lo poeta, em virtude de acontecimentos que se hão de seguir; um pretendente rico e elegante, cujo amor é aceito pelo pai, mas rejeitado pela moça; enfim, os dois amantes à borda de um abismo condenados a não verem coroados os seus legítimos desejos, e ao fundo do quadro um horizonte enegrecido de dúvidas e de receios.
Depois disto, duvido que um só dos meus leitores não me acompanhe até o fim desta história, que, apesar de tão comum ao princípio, vai ter alguma coisa de original lá para o meio. Mas como convém que não vá tudo de uma assentada, eu dou algum tempo para que o leitor acenda um charuto, e entro então no segundo capítulo.