Astúcias de namorada/IV

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Não conhecem os leitores o caráter de Lucinda, se supuseram que ela se importasse um instante só com o desejo que a tia de Adelaide manifestara de não se relacionar com a amiga de colégio de sua sobrinha. Foi ela mesma que tomou a iniciativa; apresentou-se em casa da sua antiga companheira, não pareceu reparar na frieza da dona da casa, lisonjeou-a na sua mania de combater a velhice, declarou alto e bom som que Adelaide era no colégio uma criancinha, de que ela fora não a companheira, mas a protetora, a segunda mãe. Esteve quase dizendo que a sua amiguinha entrara para o colégio ainda de mama. Estas asserções iluminaram num momento o rosto da tia, dissiparam como por encanto a sua frieza, e deram a Lucinda o lugar de amiga intima. Esta, afetava sempre tratar D. Mariana com familiaridade, fazia-lhe confidencias imagináveis, e pedia-lhe igual franqueza. A boa senhora caiu no laço, e, corando pudicamente, principiou a narrar aventuras não menos supostas, porque os namoros que obtinha desfaziam-se sempre à luz traidora do dia, quando o desgraçado pretendente, fazendo sentinela à porta da casa, via a dois passos de distância os encantos que o haviam fascinado da altura dum segundo andar.

D. Mariana devia ter sido formosíssima; e dessa formosura extinta conservava olhos, onde ainda se não apagara de todo o sacro fogo. Eram eles o núcleo em torno do qual se agrupavam os feitiços artificiais.

Notava, contudo, Lucinda, uma extraordinária tristeza em Adelaide. Preocupada e melancólica, a loira criança, em vez de procurar a companhia da sua amiga de colégio, evitava-a pelo contrário, e parecia estar cada vez mais afeiçoada à solidão do seu jardim. Debalde Lucinda tentava penetrar o segredo desta preocupação. Adelaide era impenetrável. Lucinda, devemos confessá-lo, não insistiu muito, e, pensando unicamente no meio de deslindar a comédia, cuja teia imprudentemente urdira, depois de cismar alguns instantes na extraordinária melancolia da sua amiga, não fez mais esforços para penetrar o mistério.

Os seus amores é que progrediam maravilhosamente. Frederico falava-lhe do seu amor tão fervidamente, acompanhava as suas confidências com tão ardentes olhares, que não se podia duvidar que, apesar de toda a sua timidez, um levíssimo impulso bastava para quebrar os cordões da máscara, e transformar numa declaração franca e discreta, as confissões que se trocavam enigmaticamente, por meio dessas bem aventuradas confidências e que se comentavam e explicavam pelo fogo das pupilas.

Contudo o momento decisivo aproximava-se, estava já por tal forma retesada a corda do arco, que por muito que Frederico hesitasse em despedir a flecha inflamada, ela partiria espontaneamente, num instante de exaltação. Vinte vezes Lucinda julgara que esse momento cobiçado era chegado enfim, vinte vezes vira Frederico apertar-lhe a mão convulso, e mover os lábios como se fosse a proferir a palavra que rasgaria o véu transparente, que encobria esses amores, e vinte vezes a mão lhe descaíra gélida, e vinte vezes os lábios se tinham cerrado sem balbuciarem um som. E contudo não era a timidez de Frederico o obstáculo; nesses instantes estava ele nesse estado de ebriedade doida, em que se não pensa, em que os sentidos, o espírito, a imaginação, tudo se acha exaltado a tal ponto que o mais tímido se arroja a audácias que depois o fazem estremecer. E como esse instante rápido, em que nas batalhas o fumo da pólvora, o troar da artilharia, os gritos de vitória, o clangor das trombetas exaltam os próprios covardes e os arrojam, momentaneamente intrépidos, ao centro das fileiras inimigas. Lucinda estava também demasiadamente comovida para que pudesse gelar esse entusiasmo fervente com um sorriso irônico, uma palavra mordaz. Mas parecia que uma voz desconhecida, uma sombra fatal vinha murmurar ao ouvido de Frederico algumas palavras sinistras, e, remorso ou receio, Frederico ficava melancólico e sombrio, como os convivas de Lucrecia Bórgia, ouvindo no meio dos seus cantos bachicos ressoarem as notas fúnebres do coro dos monges.

Lucinda não percebia esta hesitação de nova espécie, e receando vagamente um novo perigo, resolvera dar à comédia o seu desenlace.

Duas palavras de Frederico decidiram-na de todo.

Um dia, depois de terem feito mil floreados sobre o amor a propósito ou antes a despropósito de intangível, da vaporosa Laura daquele Petrarca inconstante, Frederico deixou pender a fronte melancólica, e murmurou:

— Pobre criança!

Lucinda ia desatando a rir; a frase "pobre criança" aplicada à qüinquagenária tia era dum efeito cômico, ainda realçado pelo tom sentimental do romântico mancebo.

Mas, mesmo tempo, Lucinda sentiu um inexprimível júbilo. Essa frase queria dizer "Pobre vítima, que julgas ser o alvo dos meus pensamentos, e que não és mais do que o escudo, que me serve para conquistar, com mais resguardo, o amor da mulher a quem adoro". Assim, essas suas palavras eram uma confissão explicita do que se passava na sua alma; encerravam em si a chave do enigma.

Porém, Lucinda não desejava que esse sentimento de compaixão soasse indefinidamente no peito de Frederico Nunes; julgara que apesar da distância, o seu namorado chegasse a tomar a sério o amor de D. Mariana. A pretensiosa ia podia parecer uma galante senhora, bem conservada nunca uma formosa rapariga. Lucinda sempre julgara Frederico cúmplice do seu amoroso artifício. Vira que ele precisava dum meio, por mais tênue que fosse, para falar sem receio, proporcionar-lhe a ocasião de o obter. Se ele a aceitasse, é porque realmente a amava. Assim sucedeu, e como, nos termos a que tinham chegado, o véu, além de ser inútil, era também prejudicial, tratou de o dilacerar.

Para isso dirigiu-se a D. Mariana, e disse-lhe que um mancebo elegante que nutria por dia a mais violenta paixão, que se julgava correspondido, se podia acreditar nos ternos olhares com que da janela o favorecera, sabendo a amizade que as ligava, e sendo da intimidade de Lucinda, se dirigira a esta para que obtivesse da sua amiga uma entrevista, em que lhe pudesse declarar o seu afeto e o desejo que alimentava de o ver coroado por um feliz himeneu. D. Mariana caiu das nuvens. Tinha distribuído os seus olhares ternos com tanta prodigalidade que não sabia qual dos felizes mortais contemplados na distribuição, queria dar ao crepúsculo da sua vida uma ventura raras vezes reservada para essa idade, a dum casamento por amor.

Escusamos de dizer que, depois da resistência pudica e indispensável, D. Mariana consentiu na entrevista. Marcou-se dia, ou antes noite, porque D. Mariana, alegando a maledicência das vizinhas, mas na realidade para não ter que afrontar senão a luz mentirosa das velas, exigiu obstinadamente que fosse a essa hora. Convencionou-se que Lucinda daria a chave do jardim ao aventuroso namorado, e que passaria aquela noite em sua casa para entreter Adelaide, e velar assim para que não fosse perturbada a amorosa entrevista.

Combinado por este lado o plano estratégico, Lucinda dirigiu-se a Frederico. Disse-lhe que a sua amiga desejava ardentemente falar-lhe, que o encarregava de lhe dizer que era tão urgente a necessidade duma entrevista que a obrigava a por de parte a modéstia feminina, e a dirigir-se a ele, fiando-se na sua honra de cavalheiro. Demais uma senhora respeitável assistirá à entrevista. Concluiu dizendo-lhe que era na seguinte noite que devia realizar-se a entrevista, ensinando-lhe a topografia da casa e dando-lhe a chave do jardim.

Lucinda dissera isto com voz artisticamente suspensa, como se debalde tentasse reprimir os soluços. Estava preparando uma explosão. Podia ser esse o instante supremo. Frederico devia talvez cair-lhe aos pés, e o susto que teria, ele o tímido moço, de ter uma entrevista com uma mulher, apressaria o desenlace. Teria nesse caso a coragem do medo.

Efetivamente era esse o caminho que ia tomando as coisas. No primeiro ímpeto Frederico ia arrojar-se aos pés de Lucinda, atirando para longe de si a chave do jardim. Mas a reflexão sobreveio, e o estranho rapaz apanhou a chave, e passando a mão pela testa, disse com voz firme:

— Irei. É um dever de honra.

Lucinda amaldiçoou os escrúpulos do seu namorado. O destino obstinava-se; a comédia tinha de se representar até ao fim.