Astúcias de namorada/VI

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Voltemos agora ao instante em que vimos Frederico desaparecer no jardim.

Os cálculos de Lucinda pecavam pela base. A autora deste enredo não podia acostumar-se a considerar Adelaide, que tinha menos seis anos do que ela, como uma mulher capaz de amar e de ser amada, não suspeitara que por baixo da varanda do segundo andar, onde estava Mariana, havia uma janela de peitos, que nessa janela, por maior que fosse a reclusão em que Adelaide vivesse, ia esta espairecer por alguns instantes, que seria exatamente numa dessas ocasiões que Frederico passaria, e que o vulto elegante e nobre deste moço não produziria menos impressão na criança de dezenove anos, do que produzira na mulher de vinte e cinco.

Frederico amava realmente Lucinda, e aproveitara com avidez a ocasião que se lhe oferecia de vencer a sua timidez, e da ter com a esplendida coquette essas longas conversações d'amor, que nunca ousaria encetar se esse pretexto se lhe não proporcionasse. Mas a suave figura d'Adelaide não deixara de lhe fazer impressão, e a tristeza que principiava a ver na fisionomia dela, à medida que os dias iam correndo, sem que essa troca de olhares tivesse resultados, causara-lhe um vago remorso.

Parecia-lhe que essa formosa menina merecia mais do que servir de pretexto à poesia, de que era outra o objeto verdadeiro; parecia-lhe que ele cometia um crime, povoando de sonhos d'ouro aquela juvenil imaginação, para depois só os esmagar com a massa brutal do desdém.

Portanto aceitara a entrevista, como se aceita o cálice d'amargura, que um dever nobre e elevado nos impõe a obrigação de bebermos. Queria falar com Adelaide, confessar-lhe tudo, mostrar-lhe uma franqueza tal, humilhar-se tanto, que, senão lhe pudesse amortecer a dor, lhe lisonjeasse pelo menos o amor próprio e o impedisse de se ferir no doloroso espinho, que lhe ia fazer brotar na tenra haste dessa namorada flor da fantasia. No mesmo dia da entrevista (era um domingo) entrava ele numa igreja. Acabava a missa, e no templo solitário estavam apenas duas mulheres, uma, elegante e airosa, parecia absorvida numa prece fervente, a outra, que era uma criada velha, mostrava impaciência visível de se retirar.

Finalmente a devota senhora ergueu-se, e os seus olhos encontraram os olhos de Frederico, que reconheceu com espanto a mulher, cuja imagem o perseguia como um remorso. Estava pálida, os olhos azuis lânguidos e tristes denunciavam lágrimas enxutas de pouco. Fitou um longo olhar em Frederico; este pálido e trêmulo curvou-se respeitosamente levando a mão ao coração, como se uma dor súbita o ferisse, e desviando os olhos dela, afastou-se rapidamente.

Nessa noite, como vimos, estava ele à porta do jardim. Entrou, e, apenas dera dez passos numa pequena alameda, encontrou um vulto feminino, que se dirigia vagarosamente para casa. À luz do candeeiro de gás, que iluminava uma pequena porção da alameda, os dois reconheceram-se. Adelaide recuou um passo, soltou um pequeno grito.

— O senhor aqui! bradou ela com voz que debalde procurava tornar firme e austera. Ah! percebo, continuou ela como que ferida por uma idéia, e desatando a chorar, julga talvez que sou uma dessas mulheres levianas, com as quais basta empregar a audácia...

Não pôde dizer mais. Os soluços sufocaram-na. Audácia! Era a primeira vez que Frederico ouvia uma mulher dirigir-lhe semelhante acusação.

— Oh! juro-lhe que se engana; exclamou ele caindo-lhe aos pés e não reparando até no incompreensível espanto dessa mulher, que, segundo ele julgava, fosse a primeira a conceder-lhe um rendez-vous, a ninguém neste mundo merece mais respeito. Sou culpado, bem o sei, mas tudo vou resgatar corri a minha franqueza extrema e sem limites.

Adelaide não o ouvia; pendia-lhe desfalecida nos braços; não ousamos dizer que fosse completamente involuntário esse desfalecimento.

Frederico, consternado, olhou em torno de si, e viu um banco ao fundo da alameda. Segurando com o braço na cintura de Adelaide, foi-a levando para esse lado.

Adelaide caiu sentada no banco, e escondeu o rosto entre as mãos.

Frederico ficou silencioso junto dela. Sentia dele uma desconhecida perturbação. Aquele encontro inesperado, a solidão e a noite, o perfume das flores, combinado com essas vagas e voluptuosas emanações das noites d'estio, esse vulto flexível e airoso de mulher que lhe pendera nos braços, tudo isso, sobrevindo dum modo tão imprevisto, o enebriava e entontecia.

Vendo aquela mulher tão linda, com o rosto banhado de lágrimas, o ânimo desfaleceu-lhe; como havia ele de dizer a essa criatura do céu, quando estava ele mesmo sujeito ao indizível magnetismo, à fascinação do seu olhar, como havia ele de lhe dizer: "Iludi-a, sacrifiquei-a a uma coquette, fiz do seu vulto gracioso e angélico, anteparo, que me resguardasse do fogo duns olhos audazes, que me fascinavam e me queimavam?"

Impossível! Completamente impossível!

Por isso Frederico pôde apenas balbuciar:

— Perdoa-me?...

Ela abaixou para ele os olhos, em que através das lágrimas transparecia um amor imenso, e com voz suave, tremente, doce e suavíssima, como vibração longínqua d'harpa eólia, murmurou:

— Perdoar-lhe! Como lhe não hei de perdoar, se por este momento ansiava, se o meu desejo era vê-lo ali onde está, e ouvir a sua voz? Oh! Meu Deus bem sei que me vai julgar mal, bem sei que o devia repelir, que devia estranhar o seu proceder? Que quer? Não tenho ânimo. Há tanto tempo que a ventura me foge, que não posso fugir-lhe agora que ela me surge de súbito! Depois eu sei que é cavalheiro, sei que me ama, li-o no seu olhar, e esse livro misterioso para nós outras mulheres não tem segredos. Confio na sua honra, e sequiosa há tanto desta suprema felicidade, ouso dizer-lhe: "Obrigada por ter vindo, obrigada por ter prevenido o meu secreto desejo, obrigada por ter lido nas minhas faces pálidas, nos meus olhos amortecidos a ansiedade que me devorava, por ter adivinhado que morria longe de si, como a flor, a que falta o orvalho, como a árvore a que falta o sol."

Frederico, arrastado por esta eloqüência ardente, fascinadora, auxiliada por uma indescritível melodia de voz, pelos murmúrios dulcíssimos do jardim, sentia abrasar-se-lhe a imaginação, e o vulto de Lucinda, que por momentos flutuava diante dele, esvaía-se ao longe como um sonho ao romper da alvorada, e as palavras dela, que primeiro se haviam interposto ao seu ouvido, e à voz d'Adelaide, pareciam-lhe agora tão frias e descoradas, comparando-as com essas frases veementes, que lhe iam ferir o coração, porque do coração partiam!...

— Minha senhora... balbuciou ele.

— Oh! chame-me Adelaide, tornou ela, apertando-lhe as mãos com ímpeto febril, e diga-me o seu nome para que os meus sonhos o saibam, e mo venham repetir à noite, depois de eu adormecer balbuciando-o.

— Adelaide, que me enlouquece, bradou o mancebo com a cabeça em fogo.

— O seu nome, o seu nome!

— Frederico! murmurou ele e tão próximo dela, que os lábios d'Adelaide pareceram aspirar essa palavra, assim que saiu da boca do seu amado, como se temesse que a surpreendesse a brisa.

As árvores meneavam as suas folhudas copas impelidas pelo sopro da viração; a luz das estrelas tremia no céu azul, e os seus pálidos raios, coando-se por entre os ramos, iluminavam frouxamente a alva fronte de Adelaide.

Súbito soou um grito de mulher ansioso e dilacerante.

Frederico levantou-se dum ímpeto, e correu para o sitio donde partia o brado; na escuridão topou um homem que fugia, estendeu as mãos a aferrou-se-lhe ao pescoço

O resto sabem-no os leitores.

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D. Mariana, que, sentada no sofá, vestida, enfeitada, e colocada na sombra, debalde esperava a prometida visita, correu ao jardim, ouvindo o grito, e já lá encontrou os criados.

Viu então o ladrão das galinhas fugir por cima do muro, deixando os seus despojos no campo de batalha, Frederico empunhando os voláteis, e junto dele Adelaide.

A tia ficou fula de cólera, notando que sua sobrinha estava num rendez-vous, enquanto ela esperava debalde o seu. Era possível mesmo que os dois não fizessem senão um.

— O que é isto? bradou ela. A menina com um homem no quintal!

— Minha senhora, disse Frederico abandonando as galinhas, confesso que fomos culpados ocultando a V. Exa os nossos amores, mas estamos a tempo de reparar essa culpa, porque tenho a honra de pedir a V. Exa a mão de sua sobrinha.

— O lugar é impróprio bastante, respondeu secamente D. Mariana, queira portanto sair. E a menina recolha-se ao seu quarto e seja mais prudente.

Debalde a pobre tia pedia explicações a Lucinda. Esta furiosa declarou-lhe que nada percebia, e no dia seguinte retirou-se para sua casa.

Daí a quinze dias recebia uma carta de Adelaide, a qual, como podem supor, ignorava tudo o que se passara.

A carta dizia o seguinte:

"Minha boa amiga.

Caso-me daqui a um mês. Não podes imaginar como sou feliz. Quero falar contigo muito, muito e muito."

Lucinda rasgou a carta, e pisou-a aos pés com lágrimas de raiva. Ao outro dia tanto instou com seu pai, tão doente disse que estava que o resolveu, apesar da extrema repugnância da Sra D. Leocádia em deixar Lisboa, a irem passar o resto do verão numa quinta que possuíam no Ribatejo.