Através do Brasil/LII

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LII. UM ENCONTRO

Quando tomaram o trem, que devia deixá-los na Bahia, eram mais de duas horas da tarde. Carlos respirou. Não deixara de apreciar a visita ao engenho, mas o desejo ardente que tinha de chegar à capital da Bahia não lhe dava margem para qualquer distração ou divertimento. Estava ansioso por tocar o termo daquela vida de aventuras e de expedientes. Enfim, via aproximar-se esse termo, tão fervorosamente ambicionado. Dali a menos de cinco horas, — que tanto dura a viagem de Alagoinhas à Bahia, — ia ele saber o que o esperava, e qual o rumo que devia tomar com o irmãozinho.

O que mais preocupava Carlos não era a sua própria sorte; era a de Alfredo, tão criança ainda, e que daquele modo se expusera a perigos sem conta, atravessando os sertões, alimentando-se mal, dormindo mal, mal vestido. Felizmente, nada acontecera de muito grave. Mas só em pensar nos perigos passados Carlos estremecia de horror.

Alfredo, esse não tinha preocupações. Encostado à janela do carro, contemplava a paisagem, divertia-se com o movimento dos passageiros e com o atropelo das bagagens nas estações de parada, e fazia perguntas sobre perguntas a Juvêncio, que respondia como podia, às vezes bem embaraçado para satisfazer aquela inesgotável curiosidade.

Por volta das quatro horas da tarde, o trem atravessou sobre uma ponte o rio Jacuípe, de águas plácidas, banhando margens cobertas de abundante vegetação, e, logo depois, parou numa estação. Havia quinze minutos de demora, e os rapazes desceram, para, como dizia Juvêncio, desenferrujar as pernas. Assim que pisaram a plataforma da estação, uma voz gritou:

— Juvêncio!

O sertanejo voltou-se, e teve uma exclamação de júbilo:

— Oh! Manuel!... — e precipitou-se para abraçar um rapaz, pouco mais velho do que ele, que lhe retribuiu o abraço com efusão.

Eram conhecidos antigos, filhos da mesma terra, criados juntos. Juvêncio apresentou-o aos seus companheiros.

— Para onde vão? Perguntou Manuel.

— Para a Bahia.

— E eu também! — disse ele.

E começou a contar o que tinha feito, depois que saíra de Cabrobó. O pai mudara-se de lá para uma roça, perto da cidade de São Francisco. A mãe falecera, e o velho ficara muito acabrunhado de desgosto, começara a ficar inativo e triste, e agora estava doente, numa cama, sem se poder mover. De modo que era ele, Manuel, quem sustentava toda a família.

— Como, Manuel?

— Trabalhando. Apesar da minha pouca idade, sou o homem de confiança do dono da fazenda, em que me empreguei. Sou eu, por assim dizer quem dirige tudo, quem faz as compras, e quem paga as contas. Agora vou à Bahia receber um dinheiro do patrão, uns três contos de réis.

— E não tem medo de viajar sozinho, com tanto dinheiro? — perguntou Carlos.

— Não, porque ninguém imagina que um criançola como eu, ande com os bolsos cheios de contos de réis. Sei disfarçar, e até hoje, apesar de sempre andar fazendo estas viagens, nunca me aconteceu cousa desagradável. Uma vez... Mas a locomotiva já apitou... Vamos tomar os nossos lugares, que em viagem lhes contarei a história.

Entraram no carro, sentaram-se, e Alfredo foi logo exigindo a narrativa.

— O caso é engraçado, — começou Manuel. — Eu andava fazendo cobranças entre Curralinho e Cachoeira, e tive de pernoitar numa venda, onde achei uns sujeitos mal encarados, que também lá deviam passar a noite. Levava comigo quatro contos de réis; e, quando me fui deitar, num quarto pequeno, que havia no fundo da casa, tive um pressentimento mal: a porta do quarto não tinha chave, e as caras antipáticas dos dois sujeitos nada de bom anunciavam. Mas, como nunca me faltam expedientes, pus o dinheiro em baixo de uma bacia de rosto, que havia sobre a mesa, deitei água dentro da bacia, e meti-me tranqüilamente na rede, apagando a luz. Dormi; mas, uma hora depois, acordei ouvindo a porta ranger. Tive o cuidado de não fazer um só movimento: abri um pouco os olhos, e vi que eram os dois tratantes que entravam pé ante pé. Um deles trazia uma lanterna. Aproximaram-se da rede: fechei os olhos e fingi que ressonava. Acreditaram que eu dormia, e começaram a passar revista no quarto; esquadrinharam a minha maleta, remexeram todos os bolsos da minha roupa, espiaram debaixo da mesinha, revistaram até as minhas botas. Depois, um deles, veio apalpar-me com toda a cautela, enquanto eu ressonava mais alto ainda; quando viram que nada achariam, saíram com o mesmo cuidado com que haviam entrado, — e fiquei rindo sozinho... — Os idiotas lembraram-se de tudo, menos de levantar a bacia!

— É boa! — exclamou Alfredo — mas olhe que o senhor esteve com a vida em perigo!

— Não há dúvida! Mas salvei-me, salvei o dinheiro do patrão, e ainda hei de salvar-me muitas vezes, graças ao meu sangue frio e aos estratagemas que invento!

Com essa e outras conversas, passava-se o tempo. Ouviu-se um estrondo forte: era o trem que começava a passar uma longa ponte

É a ponte da plataforma! — disse Manuel. — Já estamos sobre o mar.

E, dali a poucos minutos, o trem chegava ao termo da viagem. Os dois irmãos e Juvêncio despediram-se de Manuel, e foram procurar a casa do negociante, autor do anúncio.