Auto da Índia
À Farsa seguinte chamam Auto da Índia. Foi fundada sobre que ũa mulher, estando já embarcado pera a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desaviado [1] e que já não ia; e ela, de pesar, está chorando e fala-lhe ũa sua criada. Foi feita em Almada, representada à muito católica Rainha Dona Lianor. Era de 1509 anos. Entram nela estas figuras: Ama (Constança), Moça, Castelhano (Juan de Zamora), Lemos, Marido.
Moça
- Jesu! Jesu! que é ora isso?
- É porque se parte a armada?
Ama
- Olhade a mal estreada[2]!
- Eu hei-de chorar por isso?
Moça
- Por minh' alma que cuidei[3]
- e que sempre imaginei,
- que choráveis por noss' amo.
Ama
- Por qual demo ou por qual gamo[4],
- ali, má hora[5], chorarei?
- Como me leixa saudosa!
- Toda eu fico amargurada!
Moça
- Pois por que estais anojada?
- Dizei-mo, por vida vossa.
Ama
- Leixa-m', ora, eramá,
- que dizem que não vai já.
Moça
- Quem diz esse desconcerto[6]?
Ama
- Dixeram-mo por mui certo
- que é certo que fica cá.
- O Concelos[7] me faz isto.
Moça
- S'eles já estão em Restelo[8],
- como pode vir a pêlo?[9]
- Melhor veja eu Jesu Cristo,
- isso é quem porcos há menos.[10]
Ama
- Certo é que bem pequenos
- são meus desejos que fique.
Moça
- A armada está muito a pique[11].
Ama
- Arreceio al de menos[12].
- Andei na má hora e nela
- a amassar e biscoutar[13],
- pera o o demo levar
- à sua negra canela,
- e agora dizem que não.
- Agasta-se-m'o coração,
- que quero sair de mim.
Moça
- Eu irei saber s'é assim.
Ama
- Hajas a minha benção.
Vai Moça e fica a Ama dizendo:
Ama
- A Santo António rogo eu
- que nunca mo cá depare:
- não sinto quem não s'enfare
- de um Diabo Zebedeu.
:Dormirei, dormirei,
- boas novas acharei.
- São João no ermo estava,
- e a passarinha cantava. [14]
- Deus me cumpra o que sonhei.
- Cantando vem ela e leda[15].
Moça
Ama
- Dou-te ũa touca de seda.
Moça
- Ou, quando ele vier,
- dai-me do que vos trouxer.
Ama
- Ali muitieramá!
- Agora há-de tornar cá?
- Que chegada e que prazer!
Moça (à parte)
- Virtuosa está minha ama!
- Do triste dele hei dó.
Ama
- E que falas tu lá só?
Moça
- Falo cá co’esta cama.
Ama
- E essa cama, bem, que há?
- Mostra-m'essa roca[18] cá:
- siquer fiarei um fio.
- Leixou-me[19] aquele fastio[20]
- sem ceitil[21].
Moça (à parte)
- Ali eramá!
- Todas ficassem assi.
- Leixou-lhe pera três anos
- trigo, azeite, mel e panos.
Ama
- Mau pesar veja eu de ti!
- Tu cuidas que não t'entendo?
Moça
- Que entendeis? ando dizendo
- que quem assi fica sem nada,
- coma vós, que é obrigada...[22]
- Já me vós is entendendo.
Ama
- Ha ah ah ah ah ah!
- Est'era bem graciosa,
- quem se vê moça e fermosa
- esperar pola irá má.
- I se vai ele a pescar
- meia légua polo mar,
- isto bem o sabes tu,
- quanto mais a Calecu[23]:
- quem há tanto d'esperar?
- Melhor, Senhor, sé tu comigo.
- À hora de minha morte,
- qu'eu faça tão peca sorte.
- Guarde-me Deus de tal p'rigo.
- O certo é dar a prazer.
- Pera que é envelhecer
- esperando polo vento?
- Quant'eu por mui nécia sento
- a que o contrário fizer.
- Partem em Maio daqui,
- quando o sangue novo atiça:
- parece-te que é justiça?
- Melhor vivas tu amém,
- e eu contigo também.
- Quem sobe por essa escada?
Castelhano
- Paz sea n' esta posada.
Ama
- Vós sois? Cuidei que era alguém.
Castelhano
- A según esso, soy yo nada.
Ama
- Bem, que vinda foi ora esta?
Castelhano
- Vengo aquí en busca mía,
- que me perdí en aquel día
- que os vi hermosa[24] y honesta
- y nunca más me topé.
- Invisible me torné,
- y de mí crudo[25] enemigo;
- el cielo, empero[26] es testigo[27]
- que de mi parte no sé.
- Y ando un cuerpo sin alma,
- un papel que lleva el viento,
- un pozo de pensamiento,
- una fortuna[28] sin calma.
- Pese al dia en que nascí;
- vos y Dios sois contra mí,
- y nunca topo el diablo.
- Reís de lo que yo hablo?
Ama
- Bem sei eu de que me ri.
Castelhano
- Reívos del mal que padezco,
- reívos de mi desconcierto,
- reívos que tenéis por cierto
- que miraros non merezco.
Ama
- Andar embora[29].
Castelhano
- Oh, mi vida y mi señora,
- luz de todo Portugal,
- tenéis gracia especial
- para linda matadora[30].
- Supe que vuesso marido
- era ido.
Ama
- Ant' ontem se foi.
Castelhano
- Al diablo que lo doy
- el desestrado perdido.
- Qué más India que vos,
- qué más piedras preciosas,
- qué más alindadas cosas,
- qué estardes juntos los dos?
- No fue él Juan de Çamora.
- Que arrastrado[31] muera yo,
- si por cuanto Dios crió
- os dexara media hora.
- Y aunque la mar se humillara
- y la tormenta cessara,
- y el viento me obedcciera
- y el cuarto cielo se abriera,
- un momento no os dexara.
- Mas como evangelio es esto
- que la India hizo Dios,
- solo porque yo con vos
- pudiesse passar aquesto.
- Y solo por dicha[32] mía,
- por gozar esta alegria,
- la hizo Dios descobrir:
- y no ha más que dezir,
- por la sagrada María!
Ama
- Moça, vai àquele cão,
- que anda naquelas tigelas.
Moça
- Mas os gatos andam nelas.
Castelhano
- Cuerpo del cielo con vos!
- Hablo en las tripas de Dios,
- y vos hablaisme en los gatos!
Ama
- Se vós falais desbaratos[33],
- em que falaremos nós?
Castelhano
- No me hagáis derreñegar[34]
- o hazer un desatino.
- Vós pensáis que soy devino?
- Soy hombre y siento el pesar.
- Trayo de dentro un léon,
- metido en el coraçón:
- tiéneme el alma dañada
- de ensangrentar esta espada
- en hombres, que es perdición.
- Ya Dios es importunado
- de las ánimas que le embío;
- y no es en poder mío
- dexar uno acuchilado[35].
- Dexé bivo allá en el puerto
- un hombrazo anto y tuerto
- y después fuilo a encontrar;
- pcnsó que lo iva a matar,
- y de miedo cayó muerto.
Ama
- Vós queríeis ficar cá?
- Agora é cedo ainda;
- tornareis vós outra vinda,
- e tudo se bem fará.
Castelhano
- A qué hora me mandáis?
Ama
- Às nove horas e nô mais.
- E tirai[36] ũa pedrinha,
- pedra muito pequenina,
- à janela dos quintais.
- Entonces vos abrirei
- de muito boa vontade:
- pois sois homem de verdade
- nunca vos falecerei[37].
Castelhano
- Sabéis qué ganáis en esso?
- El mundo todo por vuesso!
- Que aunque tal capa me veis,
- tengo más que pensaréis:
- y no lo toméis[38] em grueso[39].
- Bésoos las manos, Señora,
- voyme con vuessa licencia
- más ufano[40] que Florencia.
Ama
- Ide e vinde muit' embora.
(Sai o Castelhano.)
Moça
- Jesu! Como é rebolão[41]!
- Dai, dai ao demo o ladrão.
Ama
- Muito bem me parece ele.
Moça
Ama
- Já lh'eu tenho prometido.
Moça
- Muito embora, seja assi.
Ama
- Um Lemos andava aqui
- meu namorado perdido.
Moça
Ama
- Mas antes era escudeiro.
Moça
- Seria, mas bem safado;
- não suspirava o coitado
- senão por algum dinheiro.
Ama
- Não é ele homem dessa arte.
Moça
- Pois inda ele não esquece?
- Há muito que não parece.
Ama
- Quant' eu não sei dele parte[46].
Moça
- Como ele souber à fé.
- Que nosso amo aqui não é,
- Lemos vos visitará.
Lemos (chegando)
- Ou da casa!
Ama
- Quem é lá?
Lemos (entrando)
- Subirei?
Ama
- Suba quem é.
Lemos
- Vosso cativo[47], Senhora.
Ama
- Jesu! Tamanha mesura[48]!
- Sou rainha por ventura?
Lemos
- Mas sois minha emperadora.
Ama
- Que foi do vosso passear,
- com luar e sem luar,
- toda a noite nesta rua?
Lemos
- Achei-vos sempre tão crua[49],
- que vos não pude aturar.
- Mas agora como estais?
Ama
- Foi-se à Índia meu marido,
- e depois homem nascido[50]
- não veio onde vós cuidais;
- e por vida de Constança,
- que se não fosse a lembrança...
Moça
- Dizei já essa mentira.
- Que eu vos não consentira
- entrar em tanta privança[51].
Lemos
- Pois agora estais singela,
- que lei me dais vós, Senhora?
Ama
- Digo que venhais embora[52].
Lemos
- Quem tira [53] àquela janela?
Ama
- Meninos que andam brincando,
- e tiram de quando em quando.
Lemos
- Que dizeis, Senhora minha?
Ama
- Metei-vos nessa cozinha,
que me estão ali chamando. Castelhano
- Ábrame, vuessa merced[54],
- que estoy aquí a la verguença!
- Esto úsasse en Siguença[55]:
- pues prometéis, mantened.
Ama (Chegando à janela)
- Calai-vos, muitieramá,
- até que meu irmão se vá!
- Dissimulai por i, entanto.
- Ora vistes o quebranto[56]?
- Andar, muitieramá!
Lemos
- Quem é aquele que falava?
Ama
- O Castelhano vinagreiro.
Lemos
- Que quer?
Ama
- Vem polo dinheiro
- do vinagre que me dava.
- Vós queríeis cá cear
- e eu não tenho que vos dar.
Lemos
- Vá esta moça à Ribeira
- e traga-a cá toda inteira,
- que toda s' há-de gastar
Moça
- Azevias[57] trazerei?
Lemos
- Dá ao demo as azevias:
- não compres, já m' enfastias.
Moça
- O que quiserdes comprarei.
Lemos
Moça
- Cabrito?
Lemos
- Tem mil barejas[61].
Moça
- E ostras trazerei delas?
Lemos
- Se valerem caras, não:
- antes traze mais um pão
- e o vinho das Estrelas[62].
Moça
- Quanto trazerei de vinho?
Lemos
- Três pichéis[63] deste caminho.
Moça
- Dais-me um cinquinho, nô mais?
Lemos
- Toma aí mais dous reais.
- Vai e vem muito improviso[64]
- «Quem vos anojou, meu bem,
- «bem anojado me tem.»
Ama
- Vós cantais em vosso siso[65]?
Lemos
- Deixai-me cantar, senhora.
Ama
- A vizinhança que dirá,
- se meu marido aqui não' stá,
- e vos ouvirem cantar?
- Que rezão lhe posso eu dar,
- que não seja muito má?
- Reniego de Marenilla:
- esto es burla[66], o es burleta[67]?
- Queríeis que me haga trompeta[68],
- qué me oiga toda la villa?
Ama
- Entrai vós, ali, senhor,
- que ouço o corregedor;
- temo tanto esta devassa[69]!
- Entrai vós ness' outra casa
- que sinto grande rumor.
(Chega à janela.)
Castelhano (da rua)
- Pesar ora de San Palo,
- esto es burla o es diablo[72]?
Ama (à janela)
- E eu posso vos mais fazer?
Castelhano (da rua)
- Y aún en esso está ahora
- la vida de Juan de Çamora?
- Son noches de Navidá,
- quiere amanecer ya,
- que no tardará media hora.
Ama (à janela)
- Meu irmão cuidei que se ia.
Castelhano (da rua)
- Ah, señora, y reísvos[73] vós!
- Ábrame, cuerpo de Dios!
Ama (à janela)
- Tornareis cá outro dia.
Castelhano (da rua)
- Assossiega, coraçón,
- adormiéntate, león,
- no eches la casa en tierra
- ni hagas tan cruda guerra,
- que mueras como Sansón.
- Esta burla es de verdad,
- por los ossos de Medea[74],
- si no que arrastrado sea
- mañana por la ciudad;
- por la sangre soverana
- se la batalla troyana,
- y juro a la casa sancta...
Ama (à janela)
- Pera qu' é essa jura tanta?
Castelhano (da rua)
- Y aún vos estáis ufana?
- Quiero destruir el mundo,
- quemar la casa, es la verdad,
- despucs quemar la ciudad;
- señora, en esto me fundo.
- Después, si Dios me dixere,
- cuando allá con él me viere
- que sola por una mujer...
- Bien sabré que responder,
- cuando a esso veniere.
Ama (à janela)
- Isso são rebolarias[75]!
Castelhano (da rua)
- Séame Dios testigo,
- que vos veréis lo que digo,
- antes que passen tres días.
Ama (à janela)
- Má viagem faças tu
- caminho de Calecu,
- praza à Virgem consagrada.
(O Castelhano afasta-se e a Ama fecha a janela) Lemos
- Que é isso?
Ama
- Não é nada.
Lemos
- Assi viva Belzebu.
Ama
- I-vos embora, senhor
- que isto quer amanhecer.
- Tudo está a vosso prazer,
- com muito dobrado amor.
- Oh, que mesuras tamanhas!
Moça (à parte)
- Quantas artes, quantas manhas,
- que sabe fazer minha ama!
- Um na rua, outro na cama!
Ama
- Que falas? Que t' arreganhas?
Moça
- Ando dizendo entre mi
- que agora vai em dous anos
- que eu fui lavar os panos
- além do chão d' Alcami;
- e logo partiu a armada,
- domingo de madrugada.
- Não pode muito tardar
- nova, se há-de tornar
- noss' amo pera a pousada.
Ama
- Asinha.
Moça
- Três anos há
- que partiu Tristão da Cunha.
Ama
- Cant' eu ano e meio punha.
Moça
- Mas três e mais haverá.
Ama
- Vai tu comprar de comer.
- Tens muito pera fazer,
- não tardes.
Moça
- Não, senhora;
- eu virei logo nessora,
- se m' eu lá não detiver.
Ama (só)
- Mas que graça, que seria,
- se este negro meu marido[76],
- tornasse a Lisboa vivo
- pera a minha companhia!
- Mas isto não pode ser,
- que ele havia de morrer
- somente de ver o mar.
- Quero fiar[77] e cantar,
- segura de o nunca ver.
(Diz a Moça regressando da rua:)
Moça
- Ai, senhora! Venho morta!
- Noss' amo é hoje aqui.
Ama
- Má nova venha por ti
- perra, excomungada, torta[78].
Moça
- A Garça, em que ele ia,
- vem com mui grande alegria;
- per Restelo entra agora.
- Por vida minha, senhora,
- que não falo zombaria.
- E vi pessoa que o viu
- gordo, que é pera espantar.
Ama
- Pois, casa, se t' eu caiar[79],
- mate-me quem me partiu!
- Quebra-me aquelas tigelas
- e três ou quatro panelas,
- que não ache em que comer.
- Que chegada e que prazer!
- Fecha-me aquelas janelas[80],
- deita essa carne a esses gatos;
- desfaze toda essa cama[81].
Moça
- De mercês está minha ama;
- desfeitos estão os tratos[82].
Ama
- Porque não matas o fogo?
Moça
- Raivar, qu' este é outro jogo.
Ama
- Perra, cadela, tinhosa,
- que rosmeias[83], aleivosa?
Moça
- Digo que o matarei logo.
Ama
- Não sei pera que é viver.
Marido (da rua)
- Hou-lá.
Ama
- Ali má hora este é.
- Quem é?
Marido
- Homem de pé.
Ama
- Gracioso se quer fazer.
- Subi, subi pera cima.
Moça
- É noss'amo, como rima!
Ama
- Teu amo? Jesu, Jesu,
- Alvíssaras pedirás tu.
Marido (entrando)
- Abraçai-me minha prima[84].
Ama
- Jesu, quão negro e tostado!
- Não vos quero, não vos quero.
Marido
- E eu a vós a si, porque espero
- serdes mulher de recado[85].
Ama
- Moça, tu que estás olhando,
- vai muito asinha saltando,
- faze fogo, vai por vinho
- e a metade dum cabritinho,
- enquanto estamos falando.
(Sai a Moça)
Ama
- Ora como vos foi lá?
Marido
- Muita fortuna[86] passei.
Ama
- E eu, oh quanto chorei,
- quando a armada foi de cá.
- E quando vi desferir[87]
- que começastes de partir,
- Jesu, eu fiquei finada,
- três dias não comi nada,
- a alma se me queria sair.
Marido
- E nós cem léguas daqui
- saltou tanto sudueste,
- sudueste e oés-sudueste
- que nunca tal tromenta vi.
Ama
- Foi isso à quarta-feira,
- aquela logo primeira?
Marido
- Si, e começou n'alvorada.
Ama
- E eu fui-me de madrugada
- a nossa Senhora d'Oliveira[88].
- E com a memória da cruz
- fiz-lhe dizer ũa missa,
- e prometi-vos em camisa[89]
- a Santa Maria da Luz.
- E logo à quinta-feira
- fui ao Spírito Santo
- com outra missa também.
- Chorei tanto que ninguém
- nunca cuidou ver tal pranto.
- Correstes aquela tromenta?
- Andar...[90]
Marido
- Durou três dias.
Ama
- As minhas três romarias
- com outras mais de quarenta.
Marido
- Fomos na volta do mar
- quasi a quartelar[91]:
- a nossa Garça voava
- que o mar se espedaçava.
- Fomos ao rio de Meca[92],
- pelejámos e roubámos
- e mui risco passámos:
- a vela, árvore seca[93].
Ama
Marido
- Assi havia de ser.
Ama
- Juro-vos que de saudade
- tanto de pão não comia
- a triste de mi cada dia
- doente, era ũa piedade.
- Já carne nunca a comi,
- esta camisa[96] que trago
- em vossa dita[97] a vesti
- porque vinha bom mandado[98].
- Onde não há marido
- cuidai que tudo é tristura[99],
- não há prazer nem folgura[100],
- sabei que é viver perdido.
- Alembrava-vos eu lá?
Marido
- E como!
Ama
- Agora, aramá:
- lá há índias mui fermosas,
- lá faríeis vós das vossas
- e a triste de mi cá,
- encerrada nesta casa,
- sem consentir que vezinha
- entrasse por ũa brasa,
- por honestidade minha.
Marido
- Lá vos digo que há fadigas,
- tantas mortes, tantas brigas
- e perigos descompassados[101],
- que assi vimos destroçados
- pelados coma formigas.
Ama
- Porém vindes vós mui rico...
Marido
- Se não fora o capitão,
- eu trouxera, a meu quinhão,
- um milhão vos certifico.
- Calai-vos que vós vereis
- quão louçã[102] haveis de sair.
Ama
- Agora me quero eu rir
- disso que me vós dizeis.
- Pois que vós vivo viestes,
- que quero eu de mais riqueza?
- Louvado seja a grandeza
- de vós, Senhor que mo trouxestes.
- A nau vem bem carregada?
Marido
- vem tão doce embandeirada.
Ama
- Vamo-la, rogo-vo-lo, ver.
Marido
- Far-vos-ei nisso prazer?
Ama
- Si que estou muito enfadada[103].
Vão-se a ver a nau e fenece esta farsa.
Glossário
- ↑ Impedido, que não está aviado, posto a a caminho.
- ↑ Desditosa, infeliz.
- ↑ Imaginei, supus, cogitei.
- ↑ Metáfora para "marido traído".
- ↑ Momento infeliz.
- ↑ Disparate, tolice.
- ↑ Referência a Jorge Concelos, fidalgo que em 1501 era funcionário do rei, encarregado de abastecer e despachar as naus de Lisboa.
- ↑ Ponto do Rio Tejo, em Belém, de onde partiam as naus.
- ↑ Como pode voltar para trás?
- ↑ Referência ao ditado quem "Quem anda aos porcos, tudo lhe ronca".
- ↑ Prestes a zarpar.
- ↑ Receio que algo que falte.
- ↑ Fazer pão torrado cozido duas vezes. O pão era assim processdo para durar mais tempo, em virtude da duração das viagens. Vem dái a palavra biscoito.
- ↑ Cantilena popular da época de Gil Vicente, que exprime a promessa de que se realize um desejo oculto.
- ↑ Contente, alegre.
- ↑ Prêmio ou recompensa que se anuncia que e concede a quem anuncia Boas Novas.
- ↑ De foz em fora: Em alto-mar, fora da barra.
- ↑ Instrumento de fiar, trabalho que ocupava permanentemente as mulhres daquela época. Referência ímplicita a Penélope, mulher de Ulisses, navegador e rei grego que ficou perdido 20 anos no Mar Mediterrâneo. Penélope tecia um tapete de dia e o desfiava à noite. Elas não se casaria de novo enquanto não terminasse o trabalho., ímbolo da mulher fiel que aguarda pacientemente o mario, oposto de Constança.
- ↑ Deixou-me.
- ↑ Tedioso.
- ↑ Moeda portuguesa praticamente sem valor na época.
- ↑ Obrigada a deixar de portar-se corretamente devido à longa ausência do marido.
- ↑ Calicute, cidade ocidental na costa da Índia.
- ↑ Formosa, bela.
- ↑ Cruel.
- ↑ Inteiro.
- ↑ Testemunha.
- ↑ Destino.
- ↑ Continuar a falar.
- ↑ Mulher sedutora, irresístivel.
- ↑ Referência ao arrastamento, uma da formas mais créis de execução.
- ↑ Felicidade.
- ↑ Tolices, disparates.
- ↑ Blasfemar.
- ↑ Apunhalado.
- ↑ Atirar.
- ↑ Faltarei.
- ↑ Penseis.
- ↑ Exagerado.
- ↑ Vaidoso.
- ↑ Fanfarrão.
- ↑ Acrediteis, confieis.
- ↑ Rufião, alcoviteiro, aquele que vive à custas das mulheres.
- ↑ Vadio, desleixado, preguiçoso.
- ↑ Chapéu de abas largas.
- ↑ Notícia
- ↑ Escravo (pelo amor), seduzido, atraído, dominado.
- ↑ Cortesia, reverência.
- ↑ Áspera.
- ↑ Homem nenhum.
- ↑ Intimidade, privacidade.
- ↑ Em boa hora.
- ↑ Atira.
- ↑ Vossa Mercê.
- ↑ Cidade da província de Guadlajra, Espanha.
- ↑ Mau-olhado.
- ↑ Tipo de peie, em geral caro.
- ↑ Uma quarta equivale à quarta parte do arrátel,antiga unidade de medida de peso equivalente a 459g.
- ↑ Quantia ínfima.
- ↑ Mariscos.
- ↑ Moscas-varejeiras.
- ↑ Água das estrelas.
- ↑ Pichel: Antiga vasilha empregada para tirar vinho das pipas ou dos tonéis.
- ↑ Depressa.
- ↑ A Ama pergunta se o Lemos enlouquecera.
- ↑ Zombaria.
- ↑ Diminutivo de burla.
- ↑ Instrumento musical de sopro.
- ↑ Investigação criminal.
- ↑ Baixo.
- ↑ Senhor.
- ↑ Imprecação equivalente a "Com mil diabos!".
- ↑ Saireis.
- ↑ O Castelhano compara Constança a Medéia, símbolo da traição e maldade, que matou seus próprios filhos para vingar-se de Jasão, o homem a quem amava.
- ↑ Gabonices.
- ↑ Constança refere-se ao marido como negro, já que os marinheiros que voltavam das índias vinham excessivamente bronzeado.
- ↑ Confiar.
- ↑ Aleijada.
- ↑ Caiar a casa era sinal de alegria.
- ↑ Constança pretende aparentar uma vida rectada e enclausurada.
- ↑ deita essa carne a esses gatos/desfaze toda essa cama: Com esses versos, a Ama pretende demonstrar privações.
- ↑ Encontros.
- ↑ Rosnais, murmurais.
- ↑ Expressão de carinho.
- ↑ Mulher de recado.
- ↑ A expressão "fortuna do mar" designa um acontecimento imprevisível e/ou inevitável, de que decorre a perda ou o dano do navio, ou de sua carga; risco marítimo.
- ↑ Desfraldar as velas.
- ↑ Capela que se situava na Igreja de São Julião, em Lisboa, destruída pelo terremoto de 1755.
- ↑ Prometer o peso de si mesmo ou de alguém em cera.
- ↑ Prosseguir.
- ↑ Quase a pôr os quartéis, isto é, as peças com que e aumentava a grossura e comprimento dos mastros e vergas. O termo também designa o grau máximo de inclinação permitido à nau. O navio estava quase tomando ou mudando de rumo.
- ↑ Mar Vermelho.
- ↑ Embarcação sem velas, ou com as velas amrradas.
- ↑ Perder o ânimo, a coragem.
- ↑ Devoções, cultos religiosos.
- ↑ Vestimenta feminina de dormir.
- ↑ Vossa sorte; em vossa honra.
- ↑ Boas notícias.
- ↑ Tristeza.
- ↑ Prazer, alegria.
- ↑ Descomunais.
- ↑ Elegante.
- ↑ Com impressão de mal-estar; zangada, aborrecida.