Aventuras de Hans Staden (6ª edição)/Capítulo 17

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XVII

O CARIJÓ DOENTE


HAVIA na taba um prisioneiro carijó que houvera sido escravo dos portugueses e fôra apanhado pelos tupinambás numa das expedições contra S. Vicente. Esse carijó detestava Hans Staden e vivia dizendo que fôra ele quem matara o pai de Nhae-pepô com um tiro.

Era falso. O carijó estava ali na taba já tres anos e Hans só tinha um ano de estada no Brasil: não podia o indio, portanto, tê-lo conhecido na Bertioga, como afirmava.

Um dia, em que esse escravo caiu muito doente, Ipirú-guassú, seu dono, chamou Hans para curá-lo.

Hans examinou-o e disse :

— “Está doente e vai morrer porque me quis fazer mal. Não tem cura”

Em vista disso Ipirá resolveu dar o carijó ao seú amigo Abaté [1], para que o matasse e ganhasse um nome.

Varios indios que se achavam à volta do doente foram da mesma opinião.

— “Sim, ele “quer” morrer; é melhor matá-lo já”.

Hans horrorizou-se com a idéia e disse :

— “Não! Não o matem, que ele ainda poderá sarar”.

De nada valeram as suas palavras; os indios levaram-no dali a braços, porque o doente não dava mais acordo de si.

Abaté recebeu o presente, agradeceu-o e foi para dentro buscar a iverapema. Trouxe-a, ergueu-a no ar e desferiu tamanho golpe no cranio do carijó que os miolos espirraram longe.

Iam comê-lo. Hans interveio para aconselhar que não o fizessem; o carijó estava doente e sua carne poderia envenená-los.

Os indios vacilaram um instante. Estava tão feia a cara do carijó, alem do mais cego de um olho, que se sentiram repugnados.

Nisto surge de uma das cabanas um indio mais desabusado; manda que as mulheres façam fogo ao pé do cadaver e decepa-lhe a cabeça, arrojando-a para longe.

Suprimida a parte do corpo que horrorizava pelo aspecto, desapareceu a repugnancia dos indios, os quais tomaram o cadaver, chamuscaram-no ao fogo, esfolaram-no, dividiram-no em postas e distribuiram-nas entre os circunstantes. Logo depois em cada cabana começou a chiar ao espeto um naco de carijó...


— Páre, vóvó ! exclamou Narizinho; páre que estou sentindo uma bola no estomago...

— De fato, minha filha, o quadro é horroroso. No entanto fazemos nós hoje coisa muito parecida com ós cadaveres dos bois e dos porcos... Afastado o aspecto moral, não vejo diferença entre o cadaver de um carijó e o cadaver de um boi.

— Basta, vóvó ! disse Pedrinho. De hoje em diante não comerei mais carne.

— Nem de galinha? interpelou a menina.

Pedrinho, que gostava muito de frango assado, vacilou,

— De galinha não digo; mas de boi ou de porco, nunca mais !...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Homem notavel, chefe.