Aventuras de Hans Staden (6ª edição)/Capítulo 4
IV
A SEGUNDA VIAGEM
O NOSSO Hans Staden foi para Sevilha e lá encontrou uma frota de tres navios comandados por D. Diogo de Senabria, que fôra nomeado pelo rei da Espanha governador do Rio da Prata. Hans engajou-se a bordo de um dos navios e partiu em 1549, no quarto dia depois da Pascoa.
Logo no começo tiveram ventos contrarios, sendo os navios obrigados a procurar abrigo no porto de Lisboa. Quando o vento virou de feição partiram de novo e velejaram para as Canarias, deitando ancora na ilha da Palma. Ali tomaram provisões e combinaram reunir-se no grau 28 a Sul do equinocio, caso durante a travessia alguma tempestade os dispersasse. A nau que lá chegasse primeiro interromperia a sua derrota e esperaria as demais.
— Derrota? exclamou Pedrinho.
— Sim, derrota, afirmou dona Benta. Derrota não é só o que você sabe; é tambem o rumo, a direção que um navio leva quando singra os mares.
Feita a combinação, partiram e velejaram até Cabo Verde,,já na Africa, onde quasi foram ao fundo. Depois, sempre com maus ventos, tocaram algumas vezes nas costas africanas e alcançaram a ilha de São Tomé, pertencente ao rei de Portugal. Em seguida velejaram de novo, não tardando que uma furiosa tempestade dispersasse a pequena esquadra.
— Que azar! exclamou Pedrinho. Era preciso muita coragem para ser navegante naqueles tempos.
— Pura verdade, meu filho. A navegação a vela foi uma epopéia.
— Que é epopéia, vóvó? perguntou a menina.
— Eu sei ! exclamou o menino. Epopéia é, por exemplo, "Os Lusiadas", de Camões, não é, vóvó ?
— Não é, meu filho. Dar exemplo não é definir. Epopéia quer dizer poema em que o poeta canta uma grande empresa heroica, uma alta façanha. "Os Lusiadas” são uma epopéia; mas a epopéia não é, por exemplo, "Os Lusiadas"...
— Mas então, vóvó, disse Narizinho, navegação é epopéia? é algum poema?
— Sim. E' um poema não escrito, porque está acima das forças de um só poeta cantar a série infinita de dramas, heroismos, abnegações e sacrificios que enchem os anais da navegação.
— Entendi, vóvó, disse Pedrinho; pode continuar.
Dona Benta prosseguiu :
— A tempestade dispersou as tres naus, sendo a em que ia nosso Hans arrojada para a zona das calmarias.
Tres meses ficou parada em pleno oceano !
O vento só reapareceu em setembro, e só então pôde ela prosseguir na sua... na sua que, Pedrinho ?
— Derrota ! respondeu de pronto o menino.
— Isso mesmo, disse a vóvó. Vejo que a lição não foi perdida. E prosseguiu sem incidentes na sua derrota até que um dia, a 18 de novembro, o piloto verificou a altura do sol e viu que estavam a 28 graus de latitude.
— Como é que se verifica a altura do sol? perguntou Pedrinho.
— Com um instrumento chamado sextante, que nos permite calcular a longitude e a latitude, de modo a sabermos em que ponto do globo nos achamos.
— Fiquei na mesma, disse Narizinho; mas continue, vóvó.
— Pois é isso, minha filha, eles verificaram que o navio estava no ponto marcado para a reunião e trataram de procurar, na terra mais proxima, abrigo seguro onde pudessem aguardar a chegada dos companheiros. Velejaram então para Oeste, sem sair do grau 28, até que avistaram terra. Como, porém, não houvesse a bordo nenhum piloto conhecedor da zona, e como não é de bom conselho entrar em porto desconhecido, o navio ficou a cruzar em frente da costa.
— Cruzar ? !... repetiu Pedrinho.
— Sim, meu filho. Quer dizer, em nautica, bordejar, ir e vir, não se afastar muito de um certo ponto.
Mas estava o navio a bordejar em frente da terra desconhecida, quando rompe fortissima tempestade. O perigo torna-se enorme. Perto como se achava da costa, podia o vento arrojar o navio de encontro ás pedras e fazê-lo em cavacos.
O capitão cuidou logo de precaver-se contra esse possivel desastre. Mandou encher varios barris com polvora, armas e mais objetos, calafetá-los cuidadosamente e amarrá-los uns nos outros.
— Para que, vóvó ?
— Muito simples. Em caso de desastre o mar levaria á praia, com os destroços do barco, aquela penca de barris, onde os naufragos encontrariam o que ha de mais precioso para quem se vê arrojado pelo destino ao seio de uma terra selvagem: armas de fogo e polvora.
A tempestade cresceu de vulto; o barco não pôde resistir e foi arrastado a um ponto da costa cheio de recifes submersos. Não vendo salvação, o comandante mandou aproar para terra. Essa manobra viria favorecer o impulso dos ventos e permitir que a nau encalhasse. Iam-se os aneis mas ficavam os dedos.
Assim foi feito. O barco voou para a costa como um corpo que caisse em direção horizontal. Quando, porém, se aproximava dos arrecifes, apareceu ao lado um porto, a tempo ainda de permitir a manobra do leme. Em virtude disso, em vez de ir para cima das pedras, o barco foi ancorar numa angra abrigada e segura.
— Que sorte! exclamou Narizinho.
— Foi sorte, não ha duvida, e é facil imaginar a alegria desses homens, salvos no momento em que o desastre parecia inevitavel. Lançada a ancora, agradeceram a Deus o precioso socorro que lhes enviara. Em seguida trataram de descansar e enxugar as roupas encharcadas.
Isso foi pelas duas horas da tarde.
Não demorou muito surgiu uma canoa de indios com mostras de lhes quererem falar.
Os espanhois responderam que se aproximassem.
A canoa encostou ao barco, havendo falatorio de baixo para cima e de cima para baixo, sem que, entretanto, ninguem se entendesse. Para não desconsolar os indios, os espanhois os presentearam com machados e facas, coisa que muito os alegrou.
A' noite apareceu outra canoa de indios, desta vez com dois portugueses dentro. Estes homens mostraram-se muito admirados de ver o navio naquele porto. Era uma angra de dificilima entrada, sobretudo em dia de temporal.
Os espanhois narraram as suas tribulações e a maneira milagrosa pela qual vieram ter á angra no instante preciso em que esperavam a morte.
Chamava-se aquele lugar Superagui [1] e ficava distante dezoito leguas de S. Vicente e oito de Santa Catarina, para onde os espanhois pretendiam seguir.
Nesse ponto Narizinho interrompeu a narrativa, exclamando:
— Pare, vóvó. Preciso ir ver o que o Rabicó anda fazendo lá no pomar.
E saíu a correr.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
- ↑ Nome de uma lingua de terra ao norte de Paranaguá.