Aventuras de Hans Staden (6ª edição)/Capítulo 6
VI
O NAUFRAGIO
NO outro dia, á tarde, sob a copa da jaboticabeira carregada de jaboticabas "pintando", dona Benta retomou o fio da narrativa:
— Os marinheiros jantaram fidalgamente aves e ovos, preparados de todo o jeito. Mas a vida do mar não dá repouso. O ceu enegreceu ao sul e o vento ganhou corpo. O ponto onde a nau fundeara não oferecia abrigo; qualquer vento teria força para arremessá-la de encontro ás pedras.
Para prevenir essa hipotese, o capitão tratou de alcançar naquele dia mesmo o porto de Cananéia [1].
Era tarde. A escuridão que envolvia a terra impediu-o de atinar com a entrada desse porto, e como ficar bordejando rente á costa fosse perigoso, o navio fez-se ao largo.
— Então vóvó, em mar alto não ha perigo? perguntou o menino.
— Em mar alto não existem recifes á flor dagua, de modo que o navio se deixa livremente arrastar pelos ventos e pelas correntes marinhas. O grande inimigo dos barcos é a pedra, sobretudo a pedra invisivel, que não emerge á flor dagua.
— Emerge ou imerge, vóvó?
— São coisas diferentes. Imergir é afundar, mergulhar; emergir é o contrario, desmergulhar.
Mas, como ia dizendo, o navio fez-se ao largo e durante a noite foi arrastado para tão longe que ao romper da manhã já não se avistava terra.
Foi preciso que velejassem um bom espaço de tempo para terem de novo costa á vista.
Romão, o homem que conhecia S. Vicente, indicou certo ponto como sendo o porto procurado.

O navio rumou para lá; mas inutilmente, porque sobreveio forte cerração e a costa desapareceu dentro da neblina.
Tiveram que esperar. Quando a bruma se desfez, Romão declarou que o porto ficava bem defronte, bastando, para atingi-lo, dobrar o rochedo; assim foi feito, mas não encontraram porto nenhum, de modo que a situação se tornou desastrosa. A tempestade desencadeou-se, não havia remedio senão lançar o navio sobre a terra, para encalhá-lo antes que as ondas o desfizessem nas pedras.
Momento tragico ! Vagalhões furiosos despedaçavam-se de encontro ás rochas, rugindo e estrondeando, como se fossem monstruosos gigantes a escabujar em horrendos ataques epilepticos.
Por cima dele os ventos, tomados de verdadeiro acesso de loucura, uivavam, aos corcovos e rodopios.
Imaginem agora vocês a situação do pobre navio metido entre esses dois furores. Casca de noz, cheia de formiguinhas transidas de medo e agarradas ás cordas por instinto de conservação, ora as vagas o erguiam em seu dorso, como o vento ergue a pluma, ora o despenhavam em abismos mais negros que a noite.
Subito, um baque — e o navio do capitão espanhol desfez-se como bolha de sabão ao dar na ponta dum alfinete...
— Bravos, vovó! A senhora está épica! disse Pedrinho.
Dona Benta riu-se e continuou:
— Os naufragos lançaram-se ao mar, uns a nado, outros unidos como ostras aos destroços da embarcação — e ganharam a terra. Estavam salvos!...
Nesses transes horriveis salvar a vida é tudo, de modo que caíram de joelhos para render graças á misericordia divina.
E ali ficaram, naquela praia deserta de um país desconhecido, em penuria extrema, enregelados pelo vento e empapados d'agua como esponjas na chuva.
Havia entre eles um francês que, ao sentir-se entanguir, deu de correr ao longo da praia, afim de esquentar o corpo. Correu, correu por longo tempo. Subito avistou ao longe umas casas. Dirigindo-se para lá teve a sorte de ver que por acaso déra num estabelecimento português, chamado Itanhaen, a varias milhas de S. Vicente.
Contou aos moradores a desgraça que os acolhera e o frio e a fome que na praia deserta estavam padecendo os seus companheiros.
Os de Itanhaen imediatamente foram ter com os naufragos e os trouxeram para suas casas, onde lhes forneceram roupas e alimentos.
Nessa aldeia permaneceram uns dias, ganhando alento e refazendo as forças; depois seguiram para S. Vicente, onde foi possivel ao capitão espanhol fretar o novo barco que os levou ao Rio da Prata.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


- ↑ Derivao de canindé, araza.