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Aventuras de Hans Staden (6ª edição)/Capítulo 8

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VIII

A CAPTURA DE HANS STADEN



HANS tinha consigo no forte um escravo carijó, que caçava para ele e o acompanhava em suas excursões.

Certo dia em que apareceu de visita ao forte um tal Heliodoro Hesse, gerente de um engenho de cana de S. Vicente, Hans, que na vespera mandara o carijó á caça, ficou apreensivo com a sua demora. Já passava de meio-dia e nada do indio aparecer. Como não fosse bom sinal aquilo, Hans se foi a procurá-lo.

Encontrou-o, e já vinham os dois de volta, a conversar, quando de subito uma gritaria irrompeu de dentro da mata e um bando de selvagens surgiu, de flechas apontadas.

— "Valha-me Deus" ! gritou Hans, e caíu ferido numa perna.

Os indios agarraram-no e despiram-no incontinenti. Um tirou-lhe a gravata e pôs-se a dansar de gosto com ela na mão. Outro tirou-lhe a camisa; outro, o chapeu. Enquanto isso dois selvagens disputavam entre si a posse do corpo de Hans. Um berrava que lhe pertencia, porque lhe pusera a mão primeiro; o segundo alegava que não, pois fôra ele quem o derrubara. Como não chegassem a acordo, engalfinharam-se, e começaram a espancar-se mutuamente com os arcos. Vendo aquilo, os outros agarraram o prisioneiro e levaram-no a correr para onde estavam as canoas.

— Tal qual na fabula do burrinho e dos ladrões ! exclamou a menina. Quando dois brigam, lucra um terceiro...

— E' sempre assim na vida, e quanto mais vocês viverem tanto mais se convencerão da sabedoria das velhas fabulas. Mas levaram-no para as canoas e lá viu Hans surgirem novos indios, que vinham a correr, numa grande alegria, mordendo os braços como para indicar que o iam comer.

— Que horror, vóvó! exclamou a menina horripilada. Comer um homem!...

— Pois é, minha filha, davam sinais de que iam comê-lo e com um prazer enorme.

Diante do pobre Hans postou-se um morubixaba, ou cacique, armado de tacape, que contou aos outros como haviam caçado aquele pero.

— ?

— Os indios chamavam pero aos portugueses, talvez porque o chefe dos primeiros aparecidos por cá fosse Pedro, ou Pero Alvares Cabral.

— Depois de bem explicada e comentada a façanha, amarraram as mãos do prisioneiro e o puseram ao fundo de uma das canoas. Trataram em seguida de puxa-las para a agua e safarem-se, receosos de que os do forte já tivessem dado pela coisa e viessem vindo disputar-lhes a presa.

Esses indios não eram todos da mesma taba, de modo que logo surgiu duvida sobre a posse do prisioneiro; por fim um deles propôs que o matassem ali mesmo e cada qual levasse o seu quinhão.

Ouvindo aquilo o pobre Hans começou a encomendar a alma a Deus, certo de que não teria nem mais um minuto de vida. O cacique, porém, decidiu de outra maneira. Havia de levá-lo vivo á taba para que as mulheres o vissem e se divertissem com ele; depois o matariam e — "Kauiuim pipeg!" isto é, muito cauim havia de correr. Prometeu preparar bastante cauim, devendo todos os presentes lá se reunirem para o devorar em sociedade.

Assim combinados, amarraram-lhe ao pescoço quatro cordas, cujas pontas ataram á canoa, e partiram.

— Quer dizer que se não fosse a curiosidade das mulheres o pobre alemão morreria ali mesmo! observou Pedrinho.

— E' verdade. O seu tipo louro, tão diferente do tipo dos portugueses e tão raro naquela terra, fez que o cacique tivesse aquela boa lembrança. Se fosse moreno, estaria perdido...

Ao pé da ilha onde o aprisionaram havia uma ilhota, na qual se aninhavam umas aves aquaticas de penas vermelhas, chamadas guarás. Essas aves nascem pardacentas e vão avermelhando á medida que crescem. Os selvagens tinham em muito apreço as penas do guará, que lhes serviam de enfeites. Aqueles indios haviam vindo justamente com o fim de apanhar guarás. O destino quis que em vez dessa caça de penas vermelhas encontrassem um bipede de cabelos louros, manjar muito mais raro e precioso. Todavia, não desistindo de levar alguns guarás meteram-se pela ilhota atrás deles.

Nisto surgiu na praia um grupo de tupiniquins, com varios portugueses á frente. E' que o escravo carijó, que conseguira fugir quando os indios agarraram o artilheiro, correra ao forte e dera alarme. Vinham agora todos de lá, a ver se livravam o seu chefe.

Como porém, se achassem em terra e os indios apresadores estivessem parte na ilha, parte no mar, nada puderam fazer, além da troca de umas flechas e zarabatanas. O morubixaba, que ia na canoa do prisioneiro com uma espingarda que lhe dera um francês, desamarrou-lhe as mãos e ordenou-lhe que atirasse contra seus amigos.

— E ele atirou? indagou Pedrinho.

— Está claro que sim, meu filho, pois não havia outro remedio. Mas com pontaria muito diferente da de Guilherme Tell...

Depois de breve escaramuça, receosos de que aparecessem canoas tupiniquins, os caçadores de caça humana afundaram os remos n'agua e afastaram-se, levando feridos tres dos seus.

Passando perto do forte onde Hans costumava estar feito um rei no seu trono, puseram-no em pé para que de lá o vissem.

O forte deu dois grandes tiros de peça, que nenhum mal fizeram ás canoas. E lá se foram elas, remadas a toda a força, fugindo das canoas tupiniquins que principiavam a aparecer.

A perseguição durou pouco. Como os tupinambás levassem boa dianteira, breve deixaram a perder de vista os seus perseguidores.

— Coitado do artilheiro! exclamou Narizinho, em cujos olhos brilhou uma lagrima de piedade. Está aí, está no papo dos canibais, como se fosse um leitão...


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.