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Bons Dias! (20-21 de maio de 1888)

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Bons Dias! (20-21 de Maio de 1888)

Algumas pessoas pediram-me a tradução do evangelho que se leu na grande missa campal do dia 17. Estes meus escritos não admitem traduções, menos ainda serviços particulares; são palestras com os leitores e especialmente com os leitores que não têm que fazer. Não obstante, em vista do momento, e por exceção, darei aqui o evangelho, que é assim:

• No princípio era Cotejipe, e Cotejipe estava com a Regente, e Cotejipe era a Regente.

• Nele estava a vida, com ele viviam a Câmara e o Senado.

• Houve então um homem de São Paulo, chamado Antônio Prado, o qual veio por testemunha do que tinha de ser enviado no ano seguinte.

• E disse Antônio Prado: O que há de vir depois de mim é o preferido, porque era antes de mim.

• E, ouvindo isto, saíram alguns sacerdotes e levitas e perguntaram-lhe: Quem és tu?

• És tu, Rio Branco? E ele respondeu: Não o sou. És tu profeta? E ele respondeu: Não. Disseram-lhe então: Quem és tu logo, para que possamos dar resposta aos chefes que nos enviaram?

• Disse-lhes: Eu sou a voz que clama no deserto. Endireitai o caminho do poder, porque aí vem o João Alfredo.

• Estas coisas passaram-se no Senado, da banda de além do Campo da Aclamação, esquina da Rua do Areal.

• No dia seguinte, viu Antônio Prado a João Alfredo, que vinha para ele, depois de guardar o chapéu no cabide dos senadores, e disse: Eis aqui o que há de tirar os escravos do mundo. Este é o mesmo de quem eu disse: Depois de mim virá um homem que me será preferido, porque era antes de mim.

• Passados meses, aconteceu que o espírito da Regente veio pairar sobre a cabeça de João Alfredo, e Cotejipe deixou o poder executivo e o poder executivo passou a João Alfredo.

• E João Alfredo, indo para a Galiléia, que é no caminho de Botafogo, mandou dizer a Antônio Prado, que estava perto da Consolação. Vem, que é sobre ti que edificarei a minha igreja.

• Depois, indo a uma cela de convento, viu lá um homem por nome Ferreira Viana, o qual descansava de uma página de Agostinho, lendo outra de Cícero, e disse-lhe: Deixa esse livro e segue-me, que em breve te farei outro Cícero, não de romanos, mas de uma gente nova; e Ferreira Viana, despindo o hábito e envergando a farda, seguiu a João Alfredo.

• Em caminho achou João Alfredo a Vieira da Silva, e perguntou-lhe: És tu maçom?

• E ele respondeu: Sou, mas posso dizer-te, pelo que tenho visto, que maçom e ministro de ordem terceira é a mesma pessoa. Disse-lhe então João Alfredo: Vem comigo; serás ministro da ordem primeira, e trabalharás pelo Céu.

• Depois, vendo um homem que passava, disse João Alfredo: Vem aqui: não és Rodrigo Silva, que agricultavas a terra no tempo de Cotejipe? E Rodrigo respondeu: Tu o disseste. E tornou João Alfredo: Onde vai agora que parece abandonar-me? Vem comigo, e lavrarás a terra, e tratarás com os gentios, ao mesmo tempo, porque Antônio Prado vai a São Paulo, onde padecerá e donde voltará mais robusto.

• Depois, vendo Tomás Coelho, o homem justo, da tribo de Campos, disse: O Senhor Deus dos Exércitos manda que sejas ministro da Guerra. E descobrindo Costa Pereira: Este é o que esteve comigo em 1871: eu o conheço; vem, serás também meu discípulo.

• Unidos os sete, disse João Alfredo: Sabeis que vim libertar os escravos do mundo, e que esta ação nos há de trazer glória e amargura; estais dispostos a ir comigo?

• E respondendo todos que sim, disse um deles por parábola, que no ponto em que estavam as coisas, melhor era cortar a perna que lavar a úlcera, pois a úlcera ia corrompendo o sangue.

• Mas, ficando João Alfredo pensativo, disseram os outros entre si: Que terá ele?

• Então o mestre, ouvindo a pergunta, disse: Prevejo que há de haver uma consulta de sacerdotes e levitas, para ver se chegam a compor certo ungüento, que os levitas aplicarão na úlcera; mas não temais nada, ele não será aplicado.

• E como perguntassem alguns qual era a composição desse ungüento, o discípulo Viana, mui lido nas escrituras disse:

• Está escrito no livro de Elle Haddebarim, também chamado Deuteronômio, que quando o escravo tiver servido seis anos, no sétimo ano o dono o deixe ir livre, e não com as mãos abanando, senão com um alforje de comida e bebida. Este é de certo o ungüento lembrado, menos talvez o alforje e os seis anos.

• E acudiu João Alfredo: Tu o disseste: três anos bastam aos levitas e sacerdotes, mas a úlcera é que não espera.

• Ora pois vinde e falemos a verdade aos homens.

• E, tendo a Regente abençoado a João e seus discípulos, foram estes para as câmaras, onde apresentaram o projeto de lei, que, depois de algumas palavras duras e outras cálidas de entusiasmo, foi aprovado no meio de flores e aclamações.

• A Regente, que esperava a lei nova, assinou com sua mão delicada e superna.

• E toda a terra onde chegava a palavra da Regente, de João Alfredo e dos seus discípulos, levantou brados de contentamento, e os próprios senhores de escravos a ouviam com obediência.

• Menos no Bacabal, província do Maranhão, onde alguns homens declararam que a lei não valia nada, e, pegando no azorrague, castigaram os seus escravos cujo crime nessa ocasião era unicamente haver sido votada uma lei, de que eles não sabiam nada; e a própria autoridade se ligou com esses homens rebeldes.

• Vendo isto, disse um sisudo de Babilônia, por outro nome Carioca: Ah! Se estivessem no Maranhão alguns ex-escravos daqui, que depois de livres, compraram também escravos, quão menor seria a melancolia desses que são agora duas coisas ao mesmo tempo, ex-escravos e ex-senhores. Bem diz o Eclesiastes: Algumas vezes tem o homem domínio sobre outro homem para desgraça sua. O melhor de tudo, acrescento eu, é possuir-se a gente a si mesmo.

BOAS NOITES.

Imprensa Fluminense