Branca de Neve (edição de 1877)
Era uma vez uma rainha, que se lastimava por não ter filhos. Um dia d'inverno, emquanto bordava n'um bastidor d'ébano olhando de vez em quando pela janella, para ver cair os flocos de neve no chão, distrahida, picou-se n'um dedo e saiu uma gota de sangue.
— Como eu desejaria ter uma filha, que tivesse uns beiços tão vermelhos como este sangue, uma pelle branca como esta neve, e uns cabellos negros como este ébano.»
Algum tempo depois os seus desejos realisaram-se, e deu á luz uma filha, que tinha uma linda boca vermelha, cabellos negros e o corpo tão branco, que lhe chamavam Branca de Neve. Porém esta feliz mãe não gozou muito tempo da sua felicidade. Morreu, e o rei tornou a casar com uma mulher d'uma grande belleza, e d'um orgulho não menos extraordinario. Era tão formosa que se considerava a mulher mais perfeita do universo. Algumas vezes fechava-se no seu quarto, e collocando-se diante d'um espelho magico dizia-lhe:
— Meu fiel espelho, responde-me: qual é a mulher mais linda que ha no mundo?»
— És tu, respondia o espelho.»
No entanto Branca de Neve crescia, e de dia para dia se tornava mais formosa. Tinha apenas sete annos, e já ninguem a podia ver sem ficar maravilhado. Um dia a orgulhosa rainha, sentando-se diante do seu espelho, disse-lhe:
— Meu fiel espelho, responde-me: qual é a mulher mais linda que ha no mundo?»
— Não és tu, não és tu. Branca de Neve é mais linda.»
A estas palavras a orgulhosa rainha sentiu no coração uma dôr aguda, como uma punhalada, e ao mesmo tempo sentiu um odio mortal pela innocente Branca. Não podia socegar nem de dia, nem de noite. Para satisfazer o seu odio, chamou um creado, e disse-lhe:
— Quero quo Branca desappareça. Conduze-a á floresta, mata-a, e, para me provar que as minhas ordens foram executadas pontualmente, traze-me o coração.»
O creado levou Branca para o fundo da floresta, pegou n'uma faca, e dispunha-se a executar a ordem que recebera. A pobre creança chorava e lamentava-se, e pedia-lhe que a não matasse, porque ella não tinha feito mal a ninguem, e queria viver. O creado, commovido com aquellas lagrimas, não teve coragem, e abandonou-a na floresta, pensando que se as feras a devorassem a culpa não era d'elle, mas sim da rainha. Assim fez, e para mostrar o coração de Branca á rainha, matou um cabrito, e tirou-lhe o coração. A rainha ao ver aquelles despojos sangrentos ficou contentissima, e disse comsigo: Emfim, morreu a minha rival, e nenhuma mulher no mundo é tão bella como eu.
A pobre Branca, abandonada na floresta, não tinha morrido, mas estava cheia de medo. Pela primeira vez na sua vida punha os pés nas pedras, e andava pelo meio do matto que lhe rasgava o vestido, e pela primeira vez tambem via animaes ferozes. Mas as feras não lhe faziam mal algum, o deixavam-n'a andar. No fim do dia tinha atravessado sete montanhas.
Á noite chegou ao pé d'uma casinha muito pequenina. Estava morta de fome e de sede. Entrou na casa, onde tudo estava muito arranjado e muito limpo. Havia uma meza pequena, e sobre a meza, coberta com uma toalha de brancura irreprehensivel, sete pratos pequenos, sete garrafas pequenas, e ao longo da parede sete camas muito pequeninas. Branca comeu um pouco do que estava nos pratos, bebeu uma gota de vinho de cada copo, deitou-se na cama, resou, e adormeceu profundamente.
Momentos depois os donos da casa entraram. Eram sete mineiros pequeninos, cada um com uma lanterna dependurada na cintura. Viram logo que tinham gente em casa. Um d'elles disse:
— Quem comeu o meu pão?»
E os outros successivamente:
— Quem pegou no meu garfo?»
— Quem comeu o meu caldo?»
— Quem bebeu o meu vinho?»
E emfim um d'elles:
— Quem está ahi deitado na minha cama?»
Reuniram-se todos á roda do pequeno leito em que dormia Branca. Á luz das lanternas viram o doce rosto da creança, que dormia tranquillamente, e affastaram-se sem fazer bulha, para a não accordar. Branca no dia seguinte de manhã ficou um pouco assustada, quando viu perto de si aquelles sete anões das montanhas. Mas elles disseram-lhe com brandura, que não tivesse medo, e perguntaram-lhe d'onde vinha, e como se chamava. Branca contou a sua triste historia, e os anões disseram-lhe:
— Queres tu ficar comnosco, para tomar conta da nossa casa?»
— Da melhor vontade, respondeu Branca, completamente socegada.»
Começou logo o seu serviço, e continuou-o regularmente todos os dias. Limpava os moveis, e fazia o jantar. Os anões iam trabalhar para as minas d'ouro e de diamantes, e quando voltavam achavam tudo em ordem.
Durante esse tempo a rainha andava satisfeita, quando pensava que já não tinha que receiar uma rival. Sentou-se outra vez diante do seu espelho, e disse-lhe:
— Meu fiel espelho, não é verdade que eu sou agora a mulher mais linda que ha no mundo?»
E o espelho respondeu:
— Sim, nos teus palacios e nos teus castellos, mas Branca está nas sete montanhas, e Branca é mais linda do que tu.»
Ouvindo esta resposta a orgulhosa rainha, sentiu de novo um golpe cruel, e determinou tornar a fazer desapparecer a innocente Branca. Mas de que modo? Uma manhã partiu desfarçada em vendedeira ambulante, com um cesto cheio d'objectos de phantasia. Foi direita às sete montanhas, e bateu á porta da casinha, gritando: «Quem quer comprar bonitas joias?»
Os anões tinham recommendado a Branca que desconfiasse das caras estranhas, receando os emissarios da rainha, e ella tinha promettido ser prudente. Mas, quando viu as lindas cousas que a vendedeira tinha no cesto, esqueceu-se das suas promessas.
— Veja este rico collar, minha menina, eu mesmo lh'o vou por ao pescoço.»
Branca consentiu, e a rainha estrangulou-a, e foi-se embora. Quando os anões voltaram, viram a infeliz Branca estendida no chão e completamente inanimada. Arrancaram-lhe o collar, e deitaram-lhe nos labios algumas gotas d'um licor amarello. Branca começou a respirar, voltou a si pouco a pouco, e contou aos seus bons amigos o que lhe tinha acontecido.
— Pódes estar certa, disseram-lhe elles, que essa vendedeira não era outra pessoa, senão a tua inimiga, a rainha. Toma cautella, não deixes entrar aqui ninguem, quando não estivermos em casa.»
Ao entrar no seu palacio toda contente, collocou-se a rainha diante do espelho, e disse-lhe:
— Meu fiel espelho: Qual é agora a mulher mais linda que ha no mundo? Responde.
E o espelho respondeu:
— És tu nos teus grandes palacios e nos teus castellos, mas Branca está nas sete montanhas, e Branca é mais linda do que tu.»
A rainha enfureceu-se, e resolveu mais uma vez tentar aniquilar a infeliz Branca. Tornou-se a disfarçar em vendedeira. Chegou ás sete montanhas, e bateu á porta da cabana.
— Quem quer comprar lindas joias? Branca veiu á janella, e respondeu:
— Vá-se embora, aqui não entra ninguem.»
— Tanto peor para si, respondeu a malvada, olhe este pente d'ouro. Já viu outro tão bonito?»
Branca não poude resistir ao desejo de possuir aquella joia. Abriu a porta.
— Oh! minha linda menina, deixe-me pôr-lh'o na cabeça.»
Ao dizer isto enterrou-lhe na cabeça o pente, que estava envenenado, e Branca caiu morta.
Á noite quando regressaram os anões, acharam-n'a pallida e fria. Tiraram-lhe o pente envenenado, reanimaram-n'a com a sua bebida, e tornaram a recommendar-lhe que fosse prudente.
No entanto a cruel rainha voltava contentissima para o seu palacio. Apenas chegou, foi direita ao espelho, e fez-lhe a mesma pergunta, a que o espelho respondeu como antecedentemente.
— Ah! é preciso que ella morra, ainda que para isso eu tenha de me sacrificar.
Vestiu-se de camponeza com um cesto de maçãs. Entre ellas havia uma que estava envenenada d'um lado. Foi, e bateu á porta da cabana.»
— Quem quer comprar fructa, quem quer comprar?»
— Retire-se, disse Branca vendo-a pela janella, não deixo entrar ninguem, nem compro coisa alguma.»
— Está bem, não faltará quem compre estas ricas maçãs. Mas por ser tão bonita, quero dar-lhe uma.»
— Obrigada, não posso acceitar.»
— Imagina que está envenenada. Olhe, eu vou comer um pedaço. Ah! que boa que é! Nunca provei nada assim. Ao pronunciar estas palavras, a traidora mordia no lado da maçã, que não estava envenenado. Branca deixou-se tentar, levou á boca o outro pedaço, e caiu fulminada.
— Ahi tens, para castigo da tua formosura.»
Quando chegou ao palacio a rainha foi direita ao espelho, e perguntou-lhe:
— Meu fiel espelho, quem é agora a mulher mais linda?»
E o espelho respondeu:
— És tu, és tu.»
— Até que emfim!»
Os anões estavam inconsolaveis. Debalde tinham tentado reanimal-a com o licor d'ouro, e com outras bebidas ainda mais fortes. Branca continuava fria e inanimada. Choraram por ella durante tres dias, e os passarinhos da floresta choraram tambem. No entanto as boas avesinhas não podiam acreditar que ella estivesse morta, e vendo o seu rosto tão tranquillo, as suas faces tão frescas, parecia que estava a dormir. Não quizeram enterral-a. Metteram-n'a n'um caixão de cristal, e escreveram em cima. «Aqui jaz a filha d'um rei;» puzeram o caixão n'uma das sete montanhas, e um d'elles devia estar de guarda constantemente. Branca conservou-se assim durante muitos annos, sem que se notasse no seu rosto a mais pequena alteração.
Um dia um formoso rapaz, filho d'um rei, tendo-se perdido ao andar á caça, viu o caixão, e pediu aos anões que lh'o cedessem, fosse por preço que fosse.
— Somos muito ricos, e por nada d'este mundo venderemos este caixão, que é o nosso thesouro.»
— Então dêem-m'o, já não posso viver sem contemplar este rosto de mulher. Guardal-o-hei na melhor salla do meu palacio. Peco-lhes que me façam isto.»
Os anões, commovidos, consentiram. Quatro homens pegaram no caixão para o levarem. Um d'elles tropeçou n'uma raiz, e o caixão soffreu um balanço, que fez cair o bocado da maçã envenenada, que Branca não tinha engulido, e que lhe ficara na boca. Abriu logo os olhos, e resuscitou. O joven principe levou-a para o seu castello, e casou com ella. O casamento fez-se com grande pompa. O principe convidou todos os reis e rainhas dos differentes paizes, e entre ellas a rainha inimiga de Branca. Apenas acabou de vestir um rico vestido, que devia attrair todos os olhares, poz-se diante do espelho, e disse a rainha:
— Meu fiel espelho, qual a mulher mais linda que ha do mundo?»
E o espelho respondeu:
— Branca é mais formosa que tu.
A estas palavras a rainha estremeceu, e teve tal medo que os seus crimes fossem descobertos, que morreu de repente.
Branca viveu muitos annos, adorada de todos, e no seu palacio de princesa não se esqueceu dos anões que tinham sido os seus bemfeitores.