Brasileiras celebres (1862)/V: Poesia e amor

Wikisource, a biblioteca livre
A CONJURAÇÃO MINEIRA — OS POETAS DE VILA RICA — DONA MARIA DOROTÉIA OU A MARÍLIA DE DIRCEU — DONA BÁRBARA HELIODORA

Vila Rica! Que de reminiscências recorda este nome! Fundada por aventureiros paulistas, que foram em seus auríferos ribeirões apagar a sede ardente das riquezas, que os devorava, tornou-se depois a arena da cruzada dos paulistas contra os emboabas, o que lhe deu tal importância, que lhe valeu o ser elevada à categoria de vila, com o título de Vila Rica, em memória da abundância de ouro que se extraía das suas minas. E um século decorrera, e já Vila Rica havia perdido toda a sua importância, e com esta o seu próprio nome, para reivindicar o seu nome primitivo, menos fastoso, apesar do título de cidade imperial, com que buscaram enobrecê-la; no meio, porém, da sua progressiva decadência, conservou aquele aspecto fisionômico que apresentara no desgraçado ano de 1789, quando a perseguição contra os inconfidentes cobriu de luto as principais famílias do país, arrancou um brado de indignação, e veio, depois de suas cenas de sangue e deportações, ostentar-se num monumento execrável, em que a tirania procurara realçar a lembrança de suas duras lições.

Vila Rica foi por muito tempo a cidade favorita dos poetas; e a poesia a tinha tornado célebre por mais de um título; Cláudio Manuel da Costa, a quem cabe o nome de Metastásio brasileiro, cantara a sua fundação; Silva Alvarenga, Alvarenga Peixoto, Vidal Barbosa, Santa Rita Durão, José Basílio da Gama, e seu irmão Antônio Caetano lhe pagaram o tributo a seu talento; e Tomas Antônio Gonzaga, que eternizou a história dos seus amores em suas liras, primando na suavidade das suas rimas, que depois foram publicadas com o título de Marília de Dirceu, e delineara em seus versos, com a arcádia dessas cenas campestres, de que se fez pastor, para poder falar uma linguagem menos ostensiva e mais própria da sua modéstia, tomando para si o nome pastoril de Dirceu, e dando à sua amante, a mulher que devia ser sua esposa, o de Marília, com que a imortalizou.

Entre esses montes cobertos de pinheirais, cortados por auríferos ribeirões, atravessados por algumas pontes, tão finalmente descritos pelo ameno poeta, via-se uma casa situada fora das ruas, fechando pela parte superior do terreno um pequeno campo coberto de miúda grama.

Na manhã do dia 10 de fevereiro de 1853 a velha porta da rústica choupana rangeu seus enferrujados gonzos, para deixar passar um féretro, que foi levado por poucas pessoas, todas oficiosas ou domésticas, á antiga capela de um dos fundadores de Vila Rica, o famigerado taubateno Antônio Dias.

A campa dos mortos levava os seus lúgubres e compassados sons aos extremos da cidade, e o modesto cortejo se aproximava; os sacerdotes se adiantam, tomam o féretro, e o colocam sobre a eça; abrem-no, e dentro estava o cadáver de uma mulher, trajando vestes nupciais, e coroada com as flores da virgindade.

Era dona Maria Joaquina Dorotéia de Seixas,1 conhecida por Marília de Dirceu, ou a noiva do poeta.

“A rival da mãe de amor na beleza”, diz uma testemunha ocular, “a deidade mortal, que inspirara ao desditoso Gonzaga tantas liras imortais, a formosura peregrina, que lhe despertara o gênio pelos estímulos do amor, vinha agora povoar a morada dos mortos, habitar no asilo das lágrimas, cair na mudez do sepulcro, sumir-se enfim para sempre, no seio da eternidade.

A mão da morte precipitou-a nesse abismo infinito, indefinido, e toda a ilusão deste mundo se dissipou ao aspecto da realidade do outro mundo; e enquanto seu corpo era tão singelamente conduzido ao jazigo dos mortos, seu espírito angélico voava ligeiro a unir-se, nas regiões celestes, à alma generosa de seu cantor e amante.”

Tomás Antônio Gonzaga, ouvidor de Vila Rica, onde se apaixonara pela mulher, que tão bela se lhe apresentara, estava despachado desembargador da relação da Bahia, e demorava-se ainda, tratando da sua união conjugal com aquela, que era o único assunto das suas tão decantadas liras, quando de repente se viu envolvido com muitos dos seus companheiros e colegas, nas complicações políticas, a que se deu o título de Inconfidência; arrancado de sua casa, foi carregado de ferros, e assim entrou pela cidade do Rio de Janeiro, onde foi sepultado numa das masmorras da ilha das Cobras.

Ali, sem papel nem tinta, aproveitava-se dos poucos recursos, que imaginava, para escrever seus versos. Servia-lhe de pena o pedúnculo de uma laranja, que lhe davam para sustento, de tinta o fumo da candeia, que o alumiava; e de papel a enegrecida parede do seu cárcere. Ali ouviu ele ler a pena, a que o condenara a sentença da alçada criada para esse fim, degradando-o perpetuamente para as pedras de Angoche, e que foi depois comutada em dez anos de degredo para Moçambique. A 22 de maio de 1792, o navio Princesa de Portugal o conduzia para o lugar do seu exílio; ali no céu de bronze, um sol abrasador, o clima pestífero, que Deus destinara aos tigres e leões, a saudade das terras brasileiras, a lembrança dos seus parentes, tantas recordações enfim, lhe foram pouco a pouco gastando a existência. De quando em quando se exaltava, animava-se, dominado por uma febre intensa, que lhe queimava o cérebro, e caía outra vez num abandono estúpido. Ai, desgraçado, estava louco!...

E assim viveu até o ano de 1809.

Pôde dona Maria Joaquina Dorotéia de Seixas sobreviver-lhe por tanto tempo, esquecida do mundo, e tão-somente alimentada de saudades; mas a vida, que ao cabo tornou-se-lhe octogenária, assaz concorreu para que se visse cercada de admiração; traíram-na a publicação daquelas tão lidas e delicadas liras, de que foi tão condigno assunto. Proclamada bela e formosa, cantado por um poeta, que se tornara eminentemente célebre pelo infortúnio do seu exílio, ela viu todos esses louvores, que quase sempre têm um não-sei-quê de exagerados, derramados às mãos cheias pelo seu tão afamado livro, traduzido nas principais línguas deste século, ganhou assim fama não vulgar pelos dotes, que lhe dera o Céu, e pela paixão, que soube inspirar ao mais terno dos poetas de nossa língua. Tornou-se portanto o alvo da geral curiosidade; nacionais e estrangeiros, que chegavam às montanhas de Ouro Preto, que viam ainda os lugares descritos nas imortais liras do novo Petrarca, ficavam como que possuídos do mesmo desejo, que era ver a mulher, que por sua beleza viera acidentalmente figurar em uma das nossas malogradas revoluções. Mas a modesta filha das montanhas de Ouro Preto se afligia, e corava ainda mesmo nos seus últimos anos, quando lhe falavam nesse livro, quando lhe lembravam o nome do seu autor, ou lhe repetiam aqueles versos, que sem dúvida sabia ela melhor do que ninguém; negava-se a apresentar-se, escondia-se, furtava-se ás vistas curiosas, que a buscavam ver e admirar, e apenas aparecia na cidade, para cumprir um dever religioso; era então, que podia ser vista, dirigindo-se á capela de S. Francisco, a ouvir missa.

“Vimo-la um dia”, diz um escritor nacional, “pela última vez, um ano antes da sua morte; vimo-la, e admiramos ainda nessa senhora, através das rugas, que lhe encrespavam o semblante, aquela regularidade de feições, mas apenas, com um tipo osteotóico de beleza.

“A calosa mão da idade lhe roçava o rosto, seus negros olhos perderam o esmalte da juventude, que os fizeram tão brilhantes como poderosos; suas faces, outrora tão mimosas, murcharam como a flor da papoula, e a rosada cútis, que as acetinava, perdeu-se com as vivas cores tão celebradas nas harmônicas liras do seu amante.”

Ainda estamos bem longe dessa época de entusiasmo e de reminiscências gloriosas. Em qualquer outro país, que não o nosso, já os restos mortais de Gonzaga estariam cuidadosamente recolhidos; seriam depositados em um túmulo e descansariam junto das cinzas de sua noiva. Então a mão do escultor gravaria sobre o mármore não aqueles tão conhecidos versos, que ele compôs para seu epitáfio:

Quem quiser ser feliz em seus amores,
Siga os exemplos, que nos deram estes.

O que seria ainda uma ironia da sorte, que tão avessa lhes foi, mas simplesmente aqueles dois nomes tão sabidos: Dirceu e Marília.

“Ela nasceu”, diz o escritor já aqui por vezes citado, “para ser amada e foi adorada; sua beleza; seus encantos; seus atrativos, foram decantados pelo mesmo melodioso poeta, que imortalizou seu nome. Perdeu sua beleza, seus encantos, seus atrativos, mas não perdeu seu nome; jaz hoje entre os mortos, mas sua formosura será sempre celebrada com essa mágoa doce, suave, e terna, que em corações sensíveis soube infundir o seu apaixonado cantor.”


✻ ✻ ✻

A rica capitania de Minas Gerais achava-se sob a pressão do terror e das perseguições. Ah! que calamidade! Dir-se-ia que o anjo da agonia tinha estendido as asas enlutadas sobre Vila Rica, e que o hino da consternação ecoava de todos os lábios.

Por toda a parte a justiça seqüestrava. Não exigia tão-somente o ouro, as jóias, os trastes, os escravos e os animais domésticos; seqüestrava também a roupa do corpo, roubava também o teto, o lar e o pão, e a família isolada, malquista, aí ficava nua à face do céu, aí vivia sem habitação, aí morria sem alimento!

O medo precedia os infelizes atirados como náufragos da tempestade política a praias inóspitas. Eram os lázaros da inconfidência, cujo contato se temia como se tisnasse a mais pura e cândida reputação. Ante eles se fechavam todas as portas, porque a piedade e a compaixão eram símbolos de cumplicidade no dicionário do governo colonial.

Ainda a sentença não havia impresso o ferrete da infâmia sobre os descendentes dos mártires da independência brasileira e já sobre eles pesava a mão negra e mirrada do destino acerbo que os aguardava!

Descendente das mais notáveis família da capitania de São Paulo, distinguia-se também dona Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira pela sua formosura e pelas suas prendas, e esses dotes, que lhe deram a natureza e a educação, atraíram a atenção, mereceram a simpatia, cativaram o amor do coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto.

Era ele poeta como Tomás Antônio Gonzaga e como o cantor da beleza de Vila Rica, celebrou a beleza da vila de São João d'Rei. Dotada de imaginação brilhante, sentindo o estro borbulhar-lhe no cérebro, a jovem donzela retribuía por afeição e folgava com poder pagar-lhe igualmente versos por versos, e o comércio das musas santificou e engrandeceu aquele amor em que mutuamente se abrasaram.

Bacharel formado em cânones na universidade de Coimbra e despachado ouvidor da comarca do Rio das Mortes, depois de ter servido de juiz de fora de Cintra em Portugal, Inácio José de Alvarenga,2 abandonou a carreira que abraçara com tantos sacrifícios, que tão longas viagens, e tão aturados estudos lhe havia custado; esqueceu-se para sempre do seu ninho natal, esse majestoso Rio de Janeiro com seu céu esplêndido, com sua magnífica baía, suas soberbas montanhas, suas belas florestas, e estabeleceu-se no país cofre dos diamantes e de gemas de ouro.

Não era a sede desses tesouros mas o amor pelas grandes empresas quem o chamava às novas lidas que seguia. Bem depressa se viu senhor das ricas fazendas dos Pinheiros na freguesia de São Antônio do Vale da Piedade e do engenho da Paraupeba de Vila Rica e das terras e águas minerais de Boavista, de Santa Rufina, de Espigões, de São Gonçalo Velho, de Manuel José de Castro, do Campo de Fogo, dos Espigões do Aterrado, do Ourofala, de Santa Luzia, e ainda outras, onde trabalhavam perto de duzentos escravos. E o poeta favorecido da fortuna ofereceu a sua mão, deu o seu nome à jovem que não possuía senão seus dotes naturais.3

Naquelas lidas, naqueles enganos da alma, passaram os dias felizes, e o céu legitimou o consórcio destas duas almas com três filhos e uma filha, sendo que esta, que os precedeu, era a mais querida de seus pais, passava como um anjo da felicidade doméstica, representava a alegria e o riso de toda a casa.

O coronel Inácio José de Alvarenga, alma afinada pela lira da poesia, jamais deixou de cultivar o talento com que Deus o distinguira, porém sua esposa no meio de seus deveres caseiros, de sua missão de mãe, esqueceu-se dos versos e voltou-se de todo o coração à educação de sua filha Maria Ifigênia, tão formosa aos doze anos que lhe deram o nome de princesa do Brasil e essa antonomásia tornou-se popular.

Apesar da falta de recursos que havia no lugar para uma educação acima da medíocre, D. Bárbara Heliodora empregou todos os meios a seu alcance e a peso de ouro logrou que viessem se estabelecer na sua vila, junto do seu domicílio, os melhores professores que existiam na capitania, e enquanto os filhos varões se entregavam aos brincos infantis, aos jogos pueris, pois eram ainda de tenra idade,4 a formosa menina estudava e se aperfeiçoava não só na sua língua como estrangeiras e ainda nas belas-artes: a dança, a música, o desenho ilustravam-lhe o espírito e lhe serviam de agradável entretenimento. À maneira, porém, que a distinta e virtuosa mãe redobrava de esforços e se extremava pela educação de sua filha, crescia-lhe a amor maternal, excedia-se em afeição, exagerava seus os carinhos. Já não a amava; adorava-a e exigia dos mestres não só toda a paciência como deferência para com aquela que, dizia ela, devia ser tratada como princesa.

Eram críticos os tempos. Sob a máscara da amizade penetrava a espionagem em todas as casas, ouvia todas as palestras, e depois delatava tudo com a mira nas recompensas políticas. Havia o coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto tomado ativa parte na conjuração mineira: a denúncia o envolvera na lista dos implicados, e o despotismo colonial viu nele um dos chefes mais ardentes da causa nacional, e interpretou no entusiasmo pelas cousas da pátria, que nota-se nas suas poesias, a prova cabal de sua cumplicidade. Foi arrancado do seio de sua família, preso e conduzido ao Rio de Janeiro, onde o lançaram nas masmorras asquerosas e imundas da fortaleza da ilha das Cobras.

Uma portaria expedida pelo governador visconde de Barbacena em 9 de setembro de 1789 mandou seqüestrar-lhe todos os bens, para o fisco e câmara real. No dia 13 de outubro de 1789 achava-se D. Bárbara Heliodora na sua casa do arraial de São Gonçalo, na freguesia de São Antônio do Vale da Piedade, termo da Vila de S. João d'el-Rei, abraçada com seus filhos, misturando suas lágrimas com os ais das tristes criancinhas, que em vão chamavam o desditoso pai, quando viu entrar o desembargador Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, ouvidorgeral e corregedor da comarca do Rio das Mortes, com o escrivão de seu cargo, e o meirinho-mor, e exigir dela o juramento para que declarasse os bens que houvesse do seu casal, sob pena de perjúrio e das que incorrem os que subnegam bens a inventário, e para logo procedeu o seqüestro e real apreensão.

Toda aquela grande fortuna acumulada com o trabalho suado de tantos anos e que ainda não estava consolidada, pois haviam dívidas a solver, foi fazer parte do acervo amontoado pelo fisco na penhora dos bens dos implicados.

Dona Bárbara Heliodora submeteu-se ao despotismo colonial. Entregou todos os bens de sua suntuosa casa, sua pesada baixela de prata, as jóias que recebera de seus pais, e de seu marido, e até uma caixinha de rapé que tinha o seu retrato circulado de pedras preciosas.

Dous dias depois requeria ela que achava-se casada com a carta de metade, que de seu matrimônio existiam filhos e que sendo na forma das leis do Reino em todo e qualquer caso livre a meia ação da mulher, se procedesse antes do seqüestro o inventário e partilha para se saber o que pertencia da meia ação a cada um, e na parte que tocasse a seu marido se procedesse o seqüestro, ficando a parte dela livre e desembaraçada.

O seu requerimento foi atendido; procedeu-se na forma da lei, e assim pôde ela amparar a miséria de seus filhos e preparar-se um futuro menos acerbo.

Não foi, porém, bastante para a tranqüilidade de sua alma. A justiça, que via fugir metade da mais importante parte do seqüestro, achou na declaração dos vassalos fiéis o meio de envolver a ilustre mineira com os implicados, e seu nome veio a figurar nas duas famosas devassas que se procederam por esse tempo. Viu-se na antonomásia de Princesa do Brasil, pela qual era conhecida a jovem Maria Ifigênia, um crime de lesa-majestade, uma idéia de independência nacional; e o próprio professor de música de sua filha, José Manuel Xavier, foi por duas vezes chamado a depor em juízo; porém nada disse que a comprometesse, e o depoimento de outra testemunha caiu não só por falta de provas como por nimiamente insignificante.5

Aqui da sua prisão da ilha das Cobras, levava o coronel os olhos saudosíssimos pelas serranias da magnífica baía que o vira nascer; já penhascos horríveis e incultas brenhas cansavam-lhe a vista, que em vão procurava pelo ninho de sua desditosa prole; soltava então um brado de agonia e atirava-se sobre a barra dura que lhe servia de leito, e chorava. Pouco a pouco se resignava e a poesia do amor e da saudade vinha enfim com as suas asas de ouro afagá-lo, limpar-lhe o pranto e traduzir-lhe os gemidos em harmonias eróticas. Se a imagem da sua esposa lhe estava sempre presente como uma viva lembrança, aí também para seu martírio via nos braços maternos aquela filha, aquele anjo que aos doze anos era todo o seu encanto, toda a sua alegria e orgulho.

São dele estes belos versos, infelizmente tão pouco conhecidos:

Bárbara bela,
Do norte estrela,
Que o meu destino
Sabes guiar;
De ti ausente
Triste somente
As horas passo
A suspirar.

Por entre as penhas
De incultas brenhas
Cansa-me a vista
De te buscar,
Porém não vejo
Mais que o desejo
Sem esperança
De te encontrar.

Eu bem queria
A noite e o dia
Sempre contigo
Poder passar,
Mas orgulhosa
Sorte invejosa
Desta fortuna
Me quer privar

Tu entre os braços
Ternos abraços

Da filha amada
Podes gozar;
Priva-me a estrela
De ti e dela;
Busca dois modos
De me matar!

Por três anos existiu dona Bárbara Heliodora sobressaltada, aguardando a nova sentença de seu marido. Preparava-se para recolher o último suspiro do mártir da liberdade, condenado pela sentença de 19 de abril de 1792, quando felizmente a clemência da rainha dona Maria I veio em seu auxílio e no auxílio de tantas famílias desgraçadas. O patíbulo contou uma vítima de menos, mas o exílio recebeu um proscrito de mais. Lá no presídio de Ambaca, nesses sertões adustos de Angola, de olhos voltados para a pátria, finou-se de saudade aquele coração que tão nobremente palpitara pelo seu país balbuciando o versículo de Virgílio:

Libertas que sera tamen!

A poesia que servira de suave e ligeiro passatempo a dona Bárbara Heliodora nos dias de sua infância; que emprestara uma linguagem divina à inocente expressão dos afetos nos felizes dias de seus amores; — a poesia que ficara esquecida durante as lidas domésticas da mulher-mãe, cuja felicidade cifrava-se unicamente no bemestar de seus filhos, na contemplação de sua inocência, no ver de seu brincos e folguedos, na educação de suas inclinações, no cultivo de seu espírito, — a poesia veio de novo acordar-lhe na alma os acordes harmoniosos de sua lira, entornar-lhe nas chagas do coração lanhado e comprimido o bálsamo da consolação e da esperança, mitigar-lhe o ardor doce e amargo da saudade, e traduzir seus gemidos, verter seus suspiros em versos sentidos, que se lhe desprendiam dos lábios com o ecento pungente da melancolia.

Aquela tremenda provança, que mais tarde tornou Sílvio Pelico infiel à política e desdenhoso de suas seduções, como o grande amante ressentido da ofensa de sua amada, trouxe-lhe com a desgraça a experiência, cujos frutos são sempre amargos; daí esses conselhos nestas elegantes sextilhas, com uma graça, com uma naturalidade difíceis de se imitarem, num estilo familiar, repletas de anexins, que estão nos mostrando o tipo dos delatores que tão sangüenta peripécia prepararam a esse drama chamado Conjuração Mineira:

Meninos, eu vou ditar
As regras de bem-viver;
Não basta somente ler,
É preciso ponderar,
Que a lição não faz saber,
Quem faz sábios é o pensar.


Neste tormentoso mar
De ondas de contradições
Ninguém soletre feições,
Que sempre se há de enganar
De caras a corações
Há muitas léguas que andar.

Aplicai a conversar
Todos os cinco sentidos,
Que as paredes têm ouvidos
E também podem falar;
Há bichinhos escondidos
Que só vivem de escutar.

Quem quer males evitar
Evite-lhe a ocasião,
Que os males por si virão
Sem ninguém os procurar;
Antes que ronque o trovão
Manda a prudência ferrar.

Sempre vos deveis guiar
Pelos antigos conselhos,
Que dizem que ratos velhos
Não há modo de os caçar;
Não batais ferros vermelhos,
Deixai um pouco esfriar.

Se vos mandarem chamar
Para ver uma função,6
Respondei sempre que não,
Que tendes em que cuidar:
Assim que entende o rifão:
Quem está bem, deixe-se estar.


Deveis vos acautelar
Em jogos de pau e topo,
Prontos em passar o copo
Das argolinhas do azar:
Tais as fábulas de Esopo
Que vós deveis estudar.

Quem fala escreve no ar,
Sem pôr vírgulas nem pontos,
E pode quem conta os contos
Mil pontos acrescentar
Fica um rebanho de tontos
Sem nenhum adivinhar.

Até aqui pode bastar,
Mais havia que dizer,
Mas eu tenho que fazer,
Não me posso demorar,
E quem sabe discorrer
Pode o resto adivinhar.

Pela sentença de 2 de maio de 1792, que condenou o coronel Inácio José de Alvarenga a degredo, foram seus filhos e netos declarados infames. Essa sentença desumana, que tanto retalhou o coração de dona Bárbara Heliodora, claudicou depois com a proclamação da independência nacional. Um de seus filhos, João Evangelista de Alvarenga, exerceu depois o magistério público como professor de latim na vila da Campanha da Princesa;7 mas aquela linda menina tão amada, aquela bela e formosa Maria Ifigênia, aí mísera e mesquinha sucumbiu vítima da infâmia que os implacáveis juízes de seu pai lhe cuspiram na face em nome da lei! Finou-se de pudor como o lírio manchado por impura mão!

Dona Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira viveu como seu marido com a poesia nos lábios e a dor no coração. Acabaram, ele minado pela nostalgia e ela pela saudade.

Viam-na às vezes com os cabelos soltos, esparsos, desgrenhados; com os vestidos dilacerados, e rotos; com o olhar brilhante mas espavorido, e falava eloqüentemente; a sua razão em delírio exaltava-se; ouviam-na então pronunciar com animação os nomes queridos de seu esposo e de sua adorada filha, e depois derramar torrente de lágrimas...

E assim morreu!

Notas

1 Nasceu em 8 de novembro de 1767, na capitla de Vila Rica. Era filha legítima de Baltasar Joad Mayrink e dona Maria Dorotéia Joaquina de Seixas.

Serviram-lhe de padrinhos na pia batismal o vigário Antônio Correia Mayrink e o alferes Teotônio José de Morais com procuração de dona Maria do Rosário, residente nesta corte.

Faleceu na cidade de Ouro Preto, em 9 de fevereiro de 1853; contava então 86 anos. Assim, em 1789, quando Gonzaga se dispunha a casar-se com ela, tinha dona Maria Seixas 22 anos, e Gonzaga mais do dobro dessa idade.

Devo estas importantes noticias às pesquisas do Ilmo. Sr. Rodrigo José Ferreira de Bretas, digno sócio correspondente do Instituto Histórico na província de Minas Gerais.

Receba ele aqui ainda uma vez os meus respeitosos agradecimentos.

2 Inácio José de Alvarenga nunca foi tratado de seus contemporâneos por Alvarenga Peixoto. Parece que hoje o chamamos assim para diferenciá-lo de Silva Alvarenga (Manuel Inácio e de Alvarenga) (Lucas José de).

3 Dos documentos oficiais que tenho à vista, colhe-se que seus pais eram pobres. No apenso nº 34 a devassa de Minas Gerais, que tem por título: “Estado das famílias dos réus seqüestrados”, lê-se a fl.3:

“Esta dona Bárbara não espera haver nada de seus pais ainda vivos, porque estes não têm que lhe deixar, e é o seu patrimônio a meação da casa de seu marido, a qual consiste em 6,789 r. 825, valor de outros tantos bens como os descritos na primeira certidão do número 2º desde fl. 1 até fl. 3 v., em 35,273 r. 300, a metade da importância dos que na mesma certidão decorrem desde fl. 6 v. até fl. 9.

“Há de ter também metade da fazenda da Paraupeba, de cujo valor haverá noticia na ouvidoria de Vila Rica, em cujo distrito é situada.

“São, porém, tantas as dividas deste casal, que duvida bem que se reduzido ele a dinheiro, ainda pela melhor estimação, baste para pagamento daquelas em que não há dívidas. S. João d'el-Rei, 2 de março de 1791.” —

Luís Antônio Branco Bernardes de Carvalho. No verso da mesma folha se declara o seguinte:

“A fazenda da Paraupeba indicada nesta informação, ainda que pareça ter sido comprada para Inácio José de Alvarenga Peixoto, contudo ela se acha rematada em nome de seu sogro José da Silveira e Sousa, que pela mesma está responsável à real fazenda.”

No traslado do seqüestro nº 10 consta que dona Barbara Heliodora apresentara as jóias que lhe foram dadas por seu pai, mas vê-se pela sua descrição que não constituíram mimo de notável riqueza.

No entanto os biógrafos de Inácio José de Alvarenga dizem que ele tivera por dote ricas fazenda e lavras.

4 Em 2 de março de 1791 José Eleutério tinha quatro anos de idade; João Damasceno (que depois se chamou João Evangelista de Alvarenga) três, Tristão dois, Maria Ifigênia doze. Estado das famílias dos réus, já citado.

5 José Joaquim de Oliveira, homem solteiro de 32 anos de idade, natural da vila de Aldeia-galega (a pátria dos celebres paios que tanto deu que fazer à diplomacia) e que vivia de sua agência, depôs em 25 de junho e 1 de agosto de 1789 nas duas devassas do Rio de Janeiro e Minas Gerais que ouvira contar que dona Bárbara Heliodora dizia que sua filha devia ser tratada como princesa do Brasil, e era tão soberba que ajuntava que se o país viesse a ser governado por nacionais sem sujeição a Europa, só a sua filha, pela sua antiguidade e nobreza, pertencia o governo, por ser de uma das mais antigas e primeiras famílias paulistanas. A testemunha juntou que não dera peso a nada disto, mas que depois das prisões dos conjurados viu todo o alcance dessas expressões. Devassa do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, fl. 69 v. em ambas.

6 Alude aqui sem dúvida àquele bilhete escrito num quarto de papel almaço pelo vigário Carlos Correia de Toledo na casa do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, apenso depois à devassa de Minas Gerais, que diz assim: “Alvarenga. Estamos juntos e venha Vm. já, etc. — Amigo Toledo” O coronel Inácio José de Alvarenga teve a indiscrição de guardar tal bilhete.

7 Consta dos requerimentos apresentados na Secretaria do Império em que pedia uma pensão como juros do valor dos seqüestros que sofrera seu pai, o qual, diz ele, foi degradado por amor do Brasil, perdendo sua mãe o juízo. Este infeliz acabou também como sua mãe, completamente louco, nesta corte, pelos anos 184?