Calvario de Mulher/Conclusões

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Conclusões

Dentro d'este Calvario de Mulher está bem demonstrado o prejuizo que, quer na familia, quer na sociedade, afecta os interesses gerais imobilizando atributos de actividade, gasta em consumições e dificuldades. A aspiração de paz, de alegria, de conforto, de uma vida util e espiritual, foi substituida dentro do lar pelo descontentamento que é agente de imoralidade e contradição do Belo e do Justo. D'ai a discordia que recaíu em doença, em desfalque economico, no desmembramento da familia que é prejuizo moral, que é desordem, anormalidade, na vida particular com reflexo na vida social. Sobretudo porque as mulheres infelicitadas e cativas, são outras tantas moleculas de dôr e degenerescencia que se reproduzem no corrompido organismo social.

E toda esta torrente de males, caudal impetuoso de morbidos efeitos, obstruindo o caminho da felicidade, provém de uma causa bem mesquinha. Cifra-se n'uma corrente de amor proprio, de vaidade, brotando de uma fonte de egoismo. Quando me refiro ao homem, não condeno n'ele o indivividuo, mas unicamente o preconceito.

A' vezes ouço os Pais censurarem as culpas dos filhos e doe-me o coração. Porque essas culpas transmitidas pelo nascimento, pela educação, pelas influencias a que os expõem não são d'eles, como não são dos pais. Não proveem de uma ancestralidade pessoal, é da ancestralidade conjunto, é do obscurantismo, é da genese, é dos mil factores que só podem engendrar imperfeição e ignorancia. Por isso, homem e mulher devem combater ambos esse mal. Com mais razão a mulher, visto que é ela a vitima principal. Mas sempre com justiça, com brandura e razão que gere harmonia em vez de aumentar maior rivalidade e intransigencia.

Apontando portanto ao sexo masculino a inconveniencia de uma arcaica dominação de absolutismo, eu confirmo que o peor elemento da discordia domestica é esse erotismo dominador que vive arreigado ao seu animo e é causa de males irremediaveis. Esse defeito sobreleva um constante desejo de rebaixar, de deprimir para se crear em scetro de soberania.

Faz-se consistir uma especie de feli- - cidade inferior e desumana, em desconsiderar siderar o fraco á custa da humilhação que oprime. Cultiva-se uma felicidade imperfeita na infelicidade dos outros. E adquirido esse habito, ele cega por tal fórma que é quasi sempre cruel, injusto, tirano. E' uma doença que abre feridas por onde o seu halito passa. D'ela sangram martirios e ficam rastros de dór que se convertem em revolta. E' uma renuncia á felicidade, é a morte dentro da vida. E essa razão tão infima e tão grande, faz com que o homem desdenhe a voz da companheira dentro do lar.

E' por isso que a sufoca rudemente, é por isso que repudia o seu conselho e põe muralhas de obstinação entre os seus actos mais sensatos e as suas ideias mais justas, de antemão rebaixadas pelo prurido das opiniões anticipadas. Julgam guiar o barco da felicidade dentro d'essa aspera intransigencia. E afinal é por suas proprias mãos que ele encalha e se despedaça entre os rochedos do seu proprio egoismo, ou do egoismo de pre-historica tradição.

Todavia o homem tem de reconhecer em si os estragos d'esse terrivel microbio, e desinfectar o caracter do seu ruim efeito vacinando-se com mais sãos principios de rectidão, de cordura e equidade.



Vejamos agora que soma de conclusões dá ás considerações expostas um coeficiente de razão.

Em primeiro lugar fixemos as origens da felicidade, que, embora em interpretações diversas e complexamente variaveis e relativas, giram em torno de tres pontos principais: riqueza, gloria e amor.

A objectiva da felicidade é variavel consoante a psique do individuo e as condições de seu meio ambiente.

A ancia de felicidade está na ordem da conservação da especie. Mas ha sempre relatividade entre a natureza e as tendencias de cada sêr e o objecto preferido da sua aspiração.

Seja, porém, como fôr, a verdade é que a humanidade, embora por fórmas diversas, corre á porfia para o alvo em que julga auferir a felicidade.

Uns mais moderados, apaticos ou abstractos. Outros insaciados, ambiciosos, emotivos e intensos; afinal todos desejam o seu quinhão de felicidade segundo o barometro do temperamento, da educação e do meio. O emigrante que abandona a enxada, a aldeia e a familia para ir explorar a fortuna em terras inospitas, procura-a avidamente. Mas sente-se feliz com um pequeno peculio. O alto banqueiro carece de explorar o jogo financeiro de milhões para se satisfazer. O camponez restringe o seu sonho de gloria ao fato domingueiro que o tornará mais guapo e invejado. O homem de Estado ou o argentario só se contenta com o dominio de uma larga esfera para deslumbrar, para governar. A verdade é que a ancia de ser feliz pela gloria, pela riqueza ou pelo amor, é uma parte inerente á natureza humana, tanto maior quanto ela é anormal, impressionista e sujeita á tentação e ás ambições.

D'ai deriva um mundo de paixões que contaminam as criaturas, disfarçadas em fórmas que iludem a propria pessoa. A ambição, a vaidade, o egoismo e a inveja associam-se e produzem funestos estragos. Latentes ou visiveis, ¿que encadeamento de males precipitam? São feitas d'essas venenosas particulas as paixões que precipitam as guerras, as rixas politicas e a desarmonia do lar. E' a am- bição de dominar que perturba a paz domestica ou a vida publica dos Povos. E' a vaidade que gera a inveja e pretende despertar inveja para fruir uma degenerada satisfação. E é o egoismo que martiriza milhares de criaturas e perde os destinos de um Povo.

Dentro da familia, sobretudo, a tradição absurda do Patriarcado, dá ao homem uma enraizada e rispida feição de dominio e prepotencia. No fanatismo ancestral de soberania, quasi perde a noção da justiça. Cultiva então uma gloria degenerada que vem a converter-se em derrota.

O amor proprio atinge o grau do erotismo. Imagina, atacado d'essa aguda nevrose, realizar uma satisfação pessoal que mantenha o ego em supremacia. A divisa é L'État c'est moi. E então vaidade e egoismo produzem um funesto coeficiente de intolerancia que se transforma em doença cronica.

Exercer pressão a torto e a direito, eis o seu lema. Concentrar na sua todas as vontades estranhas. Vêr-se só a si e eivar-se do habito de tiranizar sistematicamente, sem dar por isso, sem distinguir as efeitos, contanto que o dominio se exerça e vença quer nas grandes quer nas pequenas coisas. D'aí o ponto de partida de inumeraveis injustiças contra aqueles que se manteem em situação mais fraca. E' d'aí o efeito de acerbos pesares e prejuizos graves. Em torno d'esse poder egoista, tudo é perturbação, sofrimento, esterilidade, aridez, desconsolo, confrangimento. Sucede isto em muitos lares.

Conheço bastantes casos que me dão direito a julgar pela ordem que constitue a prova na maioria. Só no largo circulo das minhas relações conheço centos. Este criterio é um erro. Afinal o efeito recai em prejuizo comum. E o chefe de um lar é então como um marinheiro a quem está confiado o jogo de um navio e o faz naufragar por errar a manobra do maquinismo que desconhece.

Para evitar esse desastre bastaria o estudo da engrenagem que restabeleceria a segurança. Assim é com a engrenahem da harmonia domestica, perturbada pelo mau humor. O doente de egoismo é sempre um irritado. Tudo o inquieta e exalta. Quando não tem motivos, inventa-os. O seu estado natural é o atrito. O seu cruel e maquinal contentamento, é descontentar, deprimir, amesquinhar, para se elevar a si. Mas afinal cultiva a irritação em si e nos que o rodeiam . Deteriora o seu organismo moral e fisico e o de todos os que ataca e perturba. Derrama a bilis em si e nos outros. Aparecem doenças de que se desconhece a origem e não são mais que causas d'essa causa.

E' assim que o preconceito regularmente põe em uso a arbitraria força firmada na falsa lei dos sexos.

Bem sei que ha excepções em que os papeis se invertem, ou em que a harmonia é a lei conjugal. Mas são poucas. E quando a mulher é despotica póde bem ser que haja herdado o caracter paterno e recebido o influxo do exemplo e da má educação.

E é uma doença que se cria e se reproduz nas gerações. A mulher é a vitima principal. E os filhos herdarão a nevrose por ambos os lados. E' preciso que a cura d'este mal terrivel modifique o seu nefasto resultado. Crear no cultivo d'essa doença gerações doentes, é semear a imoralidade. O individuo são, oferece um potencial de resistencia para as lutas morais e materiais da vida privada ou publica. Esta condição é uma dependencia da felicidade. Um sêr forte e equilibrado por natureza e educação, dispõe de serenidade e bom humor. Espalha em volta de si bem estar e alegria. Realiza uma vida normal, que impregna os caracteres de suavidade e lhes oferece sensações agradaveis. Naturezas e orgãos enfermos são refractarios á serenidade, á bondade e ao prazer. São abortações, são degenerados que só recolhem da vida sensações murchas, estereis, sem colorido, sem calor ou perfume, para as projectarem em sofrimento proprio e alheio. São as larvas de pessimismo e de mau humor. Emquanto que as naturezas vigorosas são as seivas do optimismo, da alegria e da felicidade.

D'esta imperfeita e reduzida tecnica. de pensamentos, irradia um Universo de verdades, desconhecidas e esquecidas, que se ligam ao problema da harmonia social e ao exito da vida. Deve esta questão magna prender a atenção de todos os educadores. Que as mães sobretudo previnam os seus desastrados efeitos, eliminando a inveja e o egoismo da alma das criancinhas.

 

Ponhâmos agora em foco as probabilidades de harmonia e felicidade que, bem dirigidas, podiam realizar um exito relativo na vida dos dous protogonistas d'este livro, que são a realidade de muitas realidades fatais.

O homem dispunha de faculdades de inteligencia, de actividade e emoção. Mas todas elas incompletas e mal dirigidas. A' inteligencia faltava a subtileza, a intuição inspiradora, a elevação que se convertesse em força superior, creadora, para realizar o conforto material e espiritual.

A' actividade faltava a perspicacia, a rapidez de visão, o senso organizador e administrativo para que ao labor correspondesse o exito. Produzia, é certo. Mas, o contraste d'esse esforço, destruía o mesmo esforço.

A' emoção faltava o cultivo. Existia latente. Manifestava-se em contrastes singulares. A leitura de um episodio narrado n'um jornal, em frases emocionantes, que relatasse um martirologio de mulher semelhante ao que a doença do egoismo-habito provocava, teria humedecido os olhos de piedade. Mas esse martirologio que ali perto se diluía em lagrimas, talvez causasse sómente maior e mais dolorosa irritação. Porque essas lagrimas representavam a muda censura ao amor proprio cronico que se sustenta d'uma cegueira de razão, obstinada, desesperadora.

Este detalhe prova a existencia da dualidade que faz da mesma criatura sêres diferentes. Assim a natureza e o habito, quer dizer a verdade e o preconceito, chocavam-se creando a diversidade de psiques de que resultavam duas fórmas de ser diferentes, sendo uma proveniente da educação e do habito, outra das condições naturais.

Acentuemos agora os prejuizos e as consequencias d'esse facto. Eram opostas estas naturezas. ¿Mas existia inferioridade do lado da mulher? Não.

A logica, que demonstra o superior entendimento das coisas, não pode colocar em plano inferior manifestações de alma e de espirito cuja existencia se confirmou e ampliou quando liberta da cadeia angustiosa da repressão conjugal.

¿Porventura a rudeza, os habitos vulgares, a estreiteza de ideias e principios intolerantes, assim como a má orientação administrativa, são manifestações que teem direito a suplantar tendencias delicadas e faculdades de penetração intuitiva e organizadora que devem ter lugar e consideração dentro das combinações harmonicas da vida conjugal ?

Aqui temos bem nitidamente definida a arbitrariedade absurda, desumana, que faz pender a balança de todos os direitos em favor do homem com prejuizo de ambos, deslocando o fiel da justiça e da razão.

Tremendissimo erro o de tal legislação. E previdentissimo destino aquele que requeimou de dores uma existencia. de mulher-escrava, para que do fogo que lhe carbonizou a felicidade brotasse a chama purificadora da verdade!

 

Ora se essa mulher se houvesse submetido até ao fim da existencia á sujeição mortal de todo o seu sêr, ¿que resultaria d'esse sacrificio? ¿Obediencia ao preconceito? ¿O cumprimento de um dever? ¿Mas qual é a significação do dever quando se é vitima dos que o homem não sou- be cumprir?

Depois, esterilizar uma existencia em nome de uma falsa noção da verdade e da vida e mantê-la amarrada sem proveito a outra existencia, é afinal um delito, porquanto se impõe ao espirito sacrificado trabalhar pelos que sofrem igual, sorte, restabelecendo a verdade nos direitos dos dous sexos.

 

Foi o desconhecimento d'essa verdade que manteve n'uma sujeição forçada a consciência d'esta mulher. Não tinha elementos para reagir. Mas adoecia. Era uma deprimida. Perdêra a confiança em si. Convencêra-se de que realmente eram em si defeitos as manifestações que um dia se haviam de revelar qualidades. Assim por exemplo, dotada por hereditariedade de faculdades intelectuais, sentia a necessidade de as expandir, porque para isso as dá a natureza. Reprimiam-lh'as com o fatidico argumento de que a mulher só é destinada ás panelas. E como esse argumento encontrava correspondencia no meio atrazado em que a luz é escassa, a pobre nostalgica retraía-se, receava o ridiculo do seu valor convertido em defeito. Fui cumplice da sua propria escravidão e de uma fraude social. Porque essas faculdades, desenvolvidas a tempo e a horas, teriam melhorado o cambio das ideias do progresso. Aquilo que só á custa de um esforço exaustivo em vigilias de estudo, sem preparação, e com embaraços tremendos realizou em alguns anos apenas de exercicio, te-lo-ia conseguido gradualmente, serenamente, enriquecendo-se de tesouros de erudição, aperfeiçoando-se na tecnica artistica para poder oferecer á civilização as locubrações de espirito que predispõem o progresso em molduras de arte superior. E tudo isto a mulher póde fazer sem deixar de ser uma boa dona de casa. A questão é ser educada na ordem, no metodo, no culto da familia e das ideias de humanidade que devem fazer parte de todas as existencias superiores e bem orientadas.

Ora esta organização feminina estava naturalmente indicada a completar o homem. Pela perspicacia observadora subtilizaria a sua capacidade pensante menos desenvolvida, on antes menos arguta, e preveniria muitos prejuizos visionados. Pelos dons de sensibilidade e ternura retemperar-lhe-ia a irascibilidade doentia de caracter, a indisciplina de impulsos. Pela tendencia inicial e organizadora, auxiliaria o progresso das condições materiais, e pelo senso estetico aristocratizaria os habitos, e enfloraria de graça o recinto domestico. Mas a resistencia do amor proprio era impenetravel, invencivel.

A ruina moral e material acentuava-se. A mulher teria de assistir impassivel ao derruir de todas as probabilidades de paz, de equilibrio moral e economico.

¡E sentir que se submergem todas as garantias sem poder salvá-las! ¡E definhar-se a saude na preocupação fixa e caustica do desastre inevitave!l ¡E observar a cegueira que se deixa explorar para não ceder e que será ruina sem poder valer-se-lhe! ¡E ter a previsão de um futuro de sombras, e nada, nada poder conseguir para evitá-las!

¿Ha lá nada mais desumano, mais revoltante do que essa lei juridica que permite ao homem mau administrador, independente, caprichoso—submergir, evaporar os meios de fortuna que são de ambos desde que se uniram, despresando conselhos, advertencias, solicitações e direitos da mulher quando a consumação dos factos prova a sua razão e quando o irremediavel é uma tremenda lição?

¿Com que direito se apossa um sêr da vida de outro sêr, para mutilar os seus direitos, deteriorar as seivas vitais da personalidade e todas as promessas de bens materiais que o destino auspiciára?

¿E ha-de submeter-se, e ha-de calarse, e ha-de capitular n'uma passividade de sêr irracional como as miseraveis mulheres que em antigos e incultos povos orientais comiam os restos da refeição que o marido atirava á sua miseravel e infima escravatura ?

¿E ha uma lei para realizar esse assassinato de direitos, esse estrangulamento de vidas, esse envenenamento de almas, esse aniquilamento de sêres, em nome de uma legislação que é um crime, uma burla, um atentado contra todos os principios de justiça, humanidade e libertação?



Detalhando pormenores minuciosos que convem fixar para justificar a conclusão final, vejâmos ainda o que foi esta mulher sob a pressão conjugal.

Como a não deixaram revelar-se, foi um sêr artificial. Os seus actos foram subordinados a influencias mediocres e sujeitos á força, ao mesmo tempo superior e inferior, que os suplantava. ¿Que resultou? ¿Revolta, indignação, sofri- mento, esterilidade de acção, azedumes de caracter? Sem duvida. Forçada a retraír-se através de aspectos falsos, a passividade cedeu lugar á indignação.

Mais ainda. ¿Chegou essa criatura a lançar mão do disfarce e até da mentira para evitar choques que a atormentavam? Talvez. Menciono um exemplo d'esse delito. Esta mulher era obrigada a frequentar relações de argentarios, gente vulgar e soberba que encara a pessoa pelo trajo que ostenta. No acto da apresentação impunha-se que ela correspondesse ás formulas d'esse meio ostensivo, sustentando o aparato exigido.

No acto da reclamação que suplicava a esmola do atavio indispensavel e conforme á posição e ás condições, o conflito era certo, humilhante, implacavel, doloroso. O mesmo sucedia nas combinações do ménage. ¿Que resultava d'aí? Para evitar pugnas, recorrer aos meios astuciosos que evitem inquietação e humilhações embora repugnem aos caracteres talhados para outra norma de natural rectidão. Póde-se d'aqui concluir a psicologia da mentira que se atribue á mulher e avaliá-la na mesma ordem de origens que vai das pequenas ás grandes coisas, obrigando-a a disfarces e retraímentos.

Fóra do lar, a mulher que fôra n'ele uma figura desvalorizada e fraca, manifestou-se sob outro aspecto. Quebrada a algema do presidio, revelou-se. Venceu dificuldades assombrosas, trabalhou, produziu, provou senso organizador, qualidades de iniciativa. Só, e a despeito de mil peias que a falsa situação lhe creava e do choque eminente entre a razão dos seus direitos e a negação da sociedade, creou considerações, elevou-se, cultivou um terreno aspero onde lançou a semente de ideias e iniciativas que indicavam senso, organizador e clareza de raciocinio. Não frutificavam? Não era sua a culpa. Pertencia sempre ao encadeado dos erros sociais. Primeiro, ao entrar por uma porta tão falsa no proscenio da vida social, a mulher que cometer o crime de se libertar, leva aos pés uma nova grilheta. As opiniões já de antemão lhe são desfavora veis. A desconfiança, a insuficiencia de garantias morais e materiais dependentes do meio falso e a impreparação do senso ético, em relação à mulher, são outras tantas improbabilidades de ganhar terreno em que ela possa produzir e revelar-se.

Na mesma continuidade de efeitos vai ficando esterilizada a verdadeira psique feminina. E, sofismada, menosprezada, estagnada a obra que deveria realizar em campo apropriado. Por fim, se a mulher se revolta e exal- ta pelo desdem votado aos seus esforços, dá-se-lhe ainda a classificação de toqué.



Entrando agora ligeiramente nos dominios da fisiologia, quero provar quanto, sob esse ponto de vista, a fisiologia da mulher é acidental. No regimen da penitenciaria moral, o sêr fisiologico da mulher em questão sofreu perturbações terriveis. Aos vinte e cinco anos representava cincoenta. Era uma ruina completa. Arrastava uma vida de decadencia fisica em consultorios medicos e casas de sande. O sen espirito era um cortejo funebre de presagios e de ideias tetricas. Morria de desfalecimento e tristeza.

Afinal despedaçou as grilhetas. ¿Outras a manietaram? Embora. Eram menos dolorosas. Partiam de estranhos. E as outras eram dos sens. Depois, n'essa nova vida de sacrificio, ao menos tinha uma compensação. Cumpria uma devoção de humanidade. Era util, se não de utilidade reconhecida ao presente, de proveito certo no futuro. E' essa a divisa que ennobrece os sinceros evangelistas.

Quando se cria uma vida elevada e util, é-se sempre resignada. E essa vida superior que lhe foi negada no lar, creou-a na religião altruista. Cultivou n'ela a paz de espirito, a serenidade, o resurgimento fisiologico. A despeito de vigilias, inquietações, desconforto, excessos exaustivos de trabalho, irregularidades de alimentação que anteriormente não suportaria, aguentou-se, e resistiu, e ressuscitou.

O alimento espiritual dava-lhe renovamento de seivas que triunfavam da fa- diga, da idade, reconstituindo-lhe um aspecto que reparava os estragos da doen- ça e reconstituia a normalidade da expressão perturbada.

E ao recordar-se das longas e penosas peregrinações pelos institutos medicos, ela pensava que a multidão de mulheres que por lá encontrára, eram outras tantas doentes de alma, entoxicadas de perturbações morais que degeneram em mor- bidas e pungentes afecções fisicas e patologicas. E concluia que a fisiologia da mulher é, como a sua psicologia, um acidente que já vem de longe, sofrendo deformação pela repressão, e sujeita a adulterações e deduções injustas. Portanto, uma e outra não podem classificar-se senão em relação ás condições especiais e acidentais.

Este facto é bem claro no caso presente. Só creando a justiça dentro da liberdade, a mulher se revelará. A liberdade é o dogma da civilização. A civilização impõe as democracias. E não ha democracia sem que a mulher se liberte ocupando n'ela o seu verdadeiro lugar. A liberdade de direitos cabe dentro de todos os deveres. Mas esses deveres teem de ser relativos e reciprocos entre o homem, a mulher e a sociedade.

Dentro dos tres elementos da felicidade ― gloria, riqueza, e amor, ¿que condições reuniu esta mulher?

No campo da riqueza, nenhumas. As que lhe vieram do casamento, o casamento lh'as roubou. Tinha atributos, que, bem dirigidos, representavam proveito material, e constituiriam a independencia moral, que é uma contingencia de dignidade propria.

Mutilaram-lh'os as convenções. O facto representa desfalque ás garantias individuais e sociais. E portanto é desumano, injusto, retarda os movimentos do progresso.

No campo da gloria foi igualmente vitimada. Tinha todas as probabilidades de a obter, se lhe não fosse retardada pelo atrazo social, a entrada na esfera da arte, do humanitarismo onde a gloria do espirito e da consciencia é fonte de sensações inefaveis que dão á vida uma fragancia vivificadora e estimulante.

Na esfera do amor repetiu-se o mesmo desfalque. O amor é nas raças sentimentais uma necessidade absoluta. Está longe de ser aquela manifestação superior de naturezas educadas que se atráem por comunhão de ideias e sentimentos nobres realizando a fusão espiritual e corporal. Mas a alma da mulher, que é feita de emoção e ternura, carece do amor como a planta do sol. A historia natural é toda ela uma lei do amor. E só quem não sabe observar o vacuo que sente na vida quem por dever de convenção o exclue d'ela, contestará a aridez da existencia que se não embeleza da humana e creadora luz do amor.

Os direitos do homem são n'este caso mais uma iniquidade. O homem não prescinde das influencias do amor, em todos os seus aspectos e expressões.

Casto ou impuro, grosseiro ou elevado, só por aberração ou debilidade vive sem o procurar. ¿Julga-o exclusivo seu? Mas a natureza estabeleceu-o igualmente para ambos. E o preconceito que o con- dena, representa uma monstruosa aberração.

Possuia a vitima d'essa mentira as condições que dispõem as correntes de simpatia, nas quais se gera o amor. Re- negava-lh'as, porém, o direito de as es- treitar essa monstruosa força convencional. Era um simbolo. E como tal lhe eram proíbidos os elementos em que a natureza humana faz consistir a felicidade, realizando a expansão simultanea da personalidade espiritual e fisica e a justa aspiração de realizar o exito na vida material.

Muitas opiniões hão-de agitar-se em sentidos opostos para julgar o caso que me serviu de tese. As correntes do catolicismo imporiam resignação passiva e cega obediencia ao dominio conjugal, quer ele represente razão ou arbitrariedade. Da mesma forma os preceitos minoseistas aplaudem a dominação da prepotencia masculina.

Algumas opiniões, ainda semi-progressivas, aconselhariam aquela plasticidade de vontade, que consegue disciplinar as emoções e os sentimentos, adaptando-os com placida serenidade ás condições que deformam a personalidade para se identificarem com a dos outros, embora d'ai re- sulte só esterilidade e decadencia. Todas estas opiniões estão fóra da verdade. Os prejuizos d'essa lei de obediencia são desumanos, são dissolventes, embora não se percebam.

Ela póde pôr-se em vigor. Mas a depressão moral que origina vai-se reproduzindo em gerações sucessivas.

A causa não se vê, porque se não sabe vêr. Mas existe. Vai de geração em geração criando sêres que são abortos, e revoltas que são desgraças.

Mas acima de todas as leis ficticias, além das forças dogmaticas, ha uma força suprema.

¿Natureza, misterio cosmico, providencia, Deus? Emfim, força que manda, combina, dispõe. E na sua dinamica incessante ela impeliu para outro caminho, que não o da sujeição infecunda, a vida que destinára a muito sofrer para muito amar na cristalização da sua revolta. Não revolta de vingança, de rancor, de violencia; mas a revolta que se funde em amor pelos que sofrem, a revolta que é solidariedade, redenção, e só na Verdade póde realizar a harmonia; a sagrada e frutificante revolta que nos abre no regaço da Natureza, da Providencia, o livro d'essa Verdade para a converter em justiça, em luz e amor.