Calvario de Mulher/Desarmonia e ruina
A discórdia é um elemento de desmoralização. Desvanecida a paz no lar, ennegrece o ambiente. Pesa sobre o espirito uma depressão confrangedora.
Um ar de penitenciaria perpassa no recinto que devia ser o ameno e grato refugio da vida.
A alegria fenece. Deteriora-se a saúde. Sobrevem o desalento, a nostalgia, a nevrose. 0 espectro da doença instala-se com o seu cortejo fatal que arraza bens morais e materiais. E n'um latejar opressivo de inquietações, precipitam-se as doenças da vontade. O caracter perde a frescura e a resistência.
E' uma nuvem de presagios mortais a obscurecer a vida.
Tudo se recente d'esse tempestuoso desencadear de mistificações.
Nascem filhitos fraquinhos, naturezas de vibração. São o que os fizeram ser, os pobresitos.
E agravando um mal com outro mal educam-se castigando-as, n'uma criminosa inconsciência duplamente culpada porque irrita a sensibilidade de naturezas doentes, deteriorando vidas a que se deu tão imperfeita vida. ¡Que tragedias de desgraça, de debilidade fisica e moral preparam os pais que se mostram ignorantes do encargo que pesa sobre a sua consciência prejudicando o futuro dos filhos por uma educação imprópria, e por um exemplo de discórdia, de cóleras, de injustiça, de rigor e indelicadeza, que mais tarde eles aplicarão á vida familiar!...
¿De que serve dar ilustração scientifica que habilite a exercer cargos públicos, se é da organização regular da família, dos exemplos de cordura, de rectidão e delicadeza, que tem de partir o fio da harmonia, da serenidade e do equilíbrio de caracter e de ideias, que contribuirão para o conjunto social? A desarmonia do lar provocada por um irritante erotismo de amor proprio cáustico e desmoralizante, é um veneno mortal que degenera em ruina e desgraça.
Foi o que sucedeu no caso que venho descrevendo e que se repete quasi geralmente na organização da família. Transformou-se n'um pesadelo de tortura, a vida da mulher que encontrára no casamento todos os motivos de aniquilamento fisico e moral. A sua vida era um exilio de desconforto. Tentára refazer-se d'esse deseonforto fazendo do lar a sua religião.
Mas todas as portas da vida lhe estavam vedadas pelo empecilho de uma obstinada contradição, que ia de encontro a todas as sensatas e graciosas inovações de ordem e primor domestico.
Tornára-se irrespiravel o ambiente domestico. E n'uma necessidade irreprimi- vel de desafogo, a vitima começou de explorar fóra de casa impressões que lhe retemperassem o organismo abalado, e abstraissem de uma realidade sufocante. Procurava debalde distracções que n'um meio acanhado não podiam ser senão pueris, banais. Modas, passeios, ou passatempos vulgares. ¿Sentia-se bem n'essa vida? Não, por certo. Estava fóra da sua atmosfera, do seu ideal, das suas inclinações. Aturdia-se, nada mais. Sentia latejar dentro do espirito um fluxo impetuoso de ideias largas, de aspirações imensas e belas que asfixiavam en- clausuradas no presidio de uma atmosfera hostil. Fóra dos elementos que com- petem a cada natureza, não é possivel encontrar-se a satisfação da vida.
Todo o sêr tem direito á felicidade que lhe pertence dentro da sua vocação. Do contrario a existencia perde todo o seu encanto e significação. Na mesma ordem de coisas temos o direito ás condições relativas á felicidade e incluidas todas as que concorrem para o seu harmonioso desenvolvimento e sem as quais a vida é uma penalidade de forçado esgotando-se em morbidas e dolorosas nostalgias. E desde que essas condições estão ligadas ás leis naturais, são inviolaveis, intangiveis.
Quando a natureza distingue com dons criadores organismos excepcionais, é para que esses dons se desenvolvam nobremente, utilmente, aumentando e enriquecendo o patrimonio da civilização no culto do Belo e do Bem.
Além do direito pessoal, acresce ainda um dever de humanidade que nos impõe aperfeiçoarmos a nossa vida, as nossas faculdades, em favor da humanidade. A ideia d'essa obrigação deve permanecer anexa á nossa consciencia e portanto á nossa vida. Porque a verdadeira interpretação d'essa vida e do seu fim superior, nos revela que ela deve ser um valor cultivado e aperfeiçoado, uma contribuição de prosperidade social.
Compete-nos portanto exercer sobre nós a sugestão d'esse aperfeiçoamento que nos eleve gradualmente a um quilate de superioridade moral. Porque viver é mais alguma coisa do que unovermo-nos como um bloco de materia egoista, retraída no exclusivismo do nosso eu, alheia a toda a realização da felicidade comum. A vida recai em missão inferior exercida em sentido vago, abstracto. Na obscuridade em que permanecem os entendimentos, ela faz das criaturas manequins que se movem em direcções confusas, n'um maquinal sonambolismo que lhes põe nas mãos as armas da infelicidade que ha de um dia ferí-las.
Tudo pois o que corre editos fóra das leis que constituem felicidade, relativa ás inclinações, coloca as criaturas em condição de sofrimento e humilhação. Rebaixa-as á condição de escravas, sem a dignidade pessoal, que é uma contingencia de firmeza e de confiança em nós proprios, e uma rehabilitação do nosso sêr moral.
D'aqui se conclue a urgencia de equilibrar os direitos dos dois sexos para encaminhar a libertação e a educação de ambos, sem a qual não é possivel existir felicidade pessoal ou geral.