Camões e o Jaú/Cena única

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A cena representa uma casa pobre; ao fundo uma porta, do lado direito uma janela e um braseiro – em distância, do lado esquerdo, uma cama ordinária e uma cadeira; junto ao braseiro uma banca pejada de manuscritos.

São dez horas da manhã.

Ao levantar do pano, ouve-se o ribombar longínquo do canhão. O poeta, deitado, recolhe atento aqueles sons, que pouco a pouco se esvaecem; depois; assenta-se.

CAMÕES E DEPOIS ANTÔNIO.

CAMÕES

Que sons são estes que do Tejo a brisa
Trazer me vem no sussurrar macio?
Julguei ouvir o rufo dos tambores,
Ou o estridor pelo eco repetido
De brônzeas bocas a rugir nas vagas.
(Erguendo-se)
Ribombo do canhão! sinal de glória
Pras sempre fortes vencedoras Quinas
Impávidas hasteadas nas muralhas
Das fortalezas índicas vaidosas,
E tremulando na soidão dos mares,
Que ao jugo lusitano a cerviz curvam!
Trombeta do combate; quando soas,
Bater tu fazes com dobrada força,
Com fogo etéreo coração ardente
Que em peito português livre palpita.
(Com entusiasmo)
Meu Portugal tão belo e tão valente!
Torrão formoso, terra de magia,
Riscos sonhos do poeta, meus amores!
Sim, meus amores, porque os que tive outrora…
Cala-te coração… já não existem!
(Caminhando com custo para a janela)
De primavera, que formoso dia!
Que azul de céu tão sereno!
Como corre o meu Tejo, que cantei saudoso
No exílio amargo tantos anos… tantos!
(Comovido)
Oh, quantas vezes de Macau na gruta
Por ti, por Portugal eu soluçava!
(Retirando-se da janela)
Para que me hei de recordar do exílio?
(Assentando-se da cadeira)
Passado é já. Vejamos o futuro
(Curva a fronte)

ANTÔNIO

(Entrando e aproximando-se de manso – à parte)
Como está pensativo! sempre triste!

CAMÕES

Quem entra do mendigo na choupana?
(Reparando)
É Jaú, meu pobre, meu sincero amigo.

ANTÔNIO

(À parte)
Chamar-me amigo! a mim, ao próprio escravo!
Escravo… que os grilhões contente beija!

CAMÕES

Antônio, para mim não trazes nada?

ANTÔNIO

Foi buscar pão… nem um ceitil me deram!

CAMÕES

Resignação e fé, que Deus é justo.

ANTÔNIO

Resignação, dizeis! Mas ah! que tendes?
Tão pálido vos vejo e tão mudado!
Depois que vos deixei sofrestes muito?

CAMÕES

Meu amigo, sossega, nada tenho.

ANTÔNIO

(À parte)
E tornou-me a chamar o seu amigo!
Igual afeto, quem pagá-lo pode?

CAMÕES

Dizes que tenho a palidez no rosto?
Não repares; a cor fugiu há muito.
Eu sofro, sim, mas quase que o não sinto.
É a vida a soltar o arranco extremo
Já prestes a findar, como no templo
À míngua?óleo, ao despontar da aurora,
A lâmpada que ardeu durante a noite
Pálida brilha, bruxuleia… e morre!

ANTÔNIO

Por Deus vos peço, não faleis em morte.

CAMÕES

Se eu a sinto chegar a passos largos!
Muito não tardará que o corpo inerte
Vá sob a terra descansar pra sempre.
Uma existência cheia de desgostos,
As mais douradas ilusões desfeitas,
Findos os sonhos, a esperança extinta…
Oh! de que vale o prolongar-se a vida?
Sim, brevemente cerrarei os olhos,
Morrerei pobre, velho, desprezado…
Com um amigo só, que és tu, Antônio.

ANTÔNIO

(Caindo-lhe aos pés)
Oh! meu senhor!

CAMÕES

Terei um peito ao menos
Onde então possa reclinar a fronte,
Uma lágrima derramar saudosa,
E dizer expirando o nome dela!
(Erguendo com doçura a cabeça do Jaú)
Antônio, diz-me cá; tu nunca amaste?

ANTÔNIO

(Erguendo-se)
Se tenho um coração!… Eu amo muito
A terra onde nasci, a minha Java:
A meus pais eu amei como bom filho
E a vós, ó meu senhor, hei de amar sempre.

CAMÕES

Na tua vida uma mulher não houve
Que igual afeto te inspirasse ainda?
Por quem sentisses atração imensa?
Em que louco pensasses, sempre, sempre;
Mesmo dormindo, em sonhos bem fagueiros?
Uma mulher, enfim, por quem no peito
Forte paixão te ardesse ou um desejo?
Uma mulher, um anjo, cujo nome
O tivesses nos lábios e na mente;
Escrito o visses na corrente branda
Que sobre seixos se desliza quieta,
Num céu de anil, na flor do prado, em tudo?
Que to dissesse a brisa perfumada
Lasciva perpassando pelas flores,
O murmurar da fonte cristalina,
No firmamento o cintilar dos lumes,
Que o mundo inteiro te falasse dela?
Um anjo, a quem no delirar ardente
Aos pés prostrado – amor! – dissesses terno?

ANTÔNIO

Sim, sim; uma mulher eu amei muito.
Era tão bela! A mesma cor que tenho,
Ela tinha também; era de Java.
A infância ambos passamos sempre juntos
Brincando alegres pelos campos lindos.
Passaram-se os folguedos, e sozinhos
À fresca sombra dos gentis palmares
Que enfeitam a minha ilha tão formosa,
Mil falas de ternura lhe falava,
Mil esp'ranças risonhas eu nutria.
Era muito feliz o pobre escravo!
Depois… tão moça ela ainda finou-se!
O que eu chorei! E a dor pungente e amarga
Até à morte sentirei nesta alma
Que outro amor como aquele tão sincero…
Senhor, o pobre Jaú não terá nunca.

CAMÕES

Pois escuta: eu amava com excesso
Na terra uma mulher muito formosa
Que a sorte cega colocou mui alta.
Mas o pobre Camões não tinha um nome,
Não podia of'recer-lhe a mão de esposo!
Ai, loucos! porventura um sentimento
Quereis moldá-lo a conveniências fúteis?
Quem é que ao coração jamais deu regras?
Sem demora parti, buscando a glória.
Longos anos vaguei saudoso e errante,
Ora embalado pelos bravas ondas
Do oceano em fúria grande, ouvindo os uivos
Da procela a bramir forte e medonha;
Ora chorando os prantos do proscrito
Nos ermos montes de longínquas plagas.
Que saudades que eu tinha desta terra,
Destas veigas risonhas, destas fontes,
Destas flores mimosas, destes ares!
Nunca naquelas regiões tristonhas
O riso do prazer me veio aos lábios.
Em vão eu quis beber uma harmonia,
Uma inspiração celeste, radiante!
Lá não trinava o rouxinol gorjeios
Na balseira virente em noite bela,
Quando a lua prateada se retrata
Sobre as águas do lago sossegado;
Lá não ouvia a gemebunda rola
Gemer saudosa… que entristece tanto!
Lá não sentia a vespertina aragem
Vir bem de manso bafejar-me a lira,
Que nunca mais soltara hino festivo!
Tudo ali respirava só tristeza!
E durante esse anos tão compridos,
Esses anos de ausência e de tormentos,
A imagem de Natércia eu via sempre,
Uma vez que tranqüilo adormecera,
De súbito me ergui todo convulso…
Sonho horrível me havia despertado.
Sonhei-a fria, já sem vida… morta!
Aquele corpo airoso, inanimado!
Aqueles lindos olhos já sem brilho!
Os lábios purpurinos já cerrados,
Que no entr’abrir final balbuciaram
Camões! Camões! ainda com ternura!
Vacilante os cabelos apartava
Com a trêmula mão da fronte em gelo…
Visão não era; realidade pura!
Era morta a mulher que eu tanto amava,
Morta… na flor da vida!… ela era um anjo!…
Desde esse dia então morri pro mundo.
As lágrimas de dor verti-as todas.
Depois… não chorei mais, sofria mudo,
De rojo junto à cruz, contrito orava.
Orava toda a noite só por ela.
A Deus pedia o termo de meus dias,
Que entre os anjos no vê-la queria.
Já que na terra os homens, sem piedade,
Me haviam dela separado sempre.
Mas o eterno não quis. Curvei a fronte.
Quereis que esgote o cálix da amargura?
Submisso e pronto está o servo humilde.
(Apontando para a banca)
Olha, Antônio, dá-me aqueles versos.
(Recebendo-os)
Sim, são estes que falam de Natércia
Com todo o fogo dum amor eterno.
Eis o sinal das lágrimas caídas
Sobre o papel, quando tracei as linhas.
Lágrimas quentes, lágrimas de sangue
Arrancadas por uma dor imensa.
(Beijando-os)
Oh! quero lê-los, lê-los novamente.
Foi este canto lutuoso e triste
Último harpejo que soltei gemendo.
Ai! quando desse dia me recordo,
Involuntário o pranto se desprende.
É uma corda que se vai da lira,
Mais uma fibra que do peito estala,
Mais um gemido que rebenta d’alma,
– Derradeiro estertor do agonizante –
Um gemido que diz: além a – campa!
(Assenta-se e lê)
“Alma minha gentil que te partiste
Tão cedo deste mundo descontente;
Repousa lá no céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.”

ANTÔNIO

(À parte)
Ali naquele leito tão mesquinho
Repousa o maior vate deste mundo!
Pro sepulcro inclinada a fronte nobre
Quase a sumir-se como o sol no ocaso,
Um ai não solta, nem um só que seja!
Calado sofre, sofre, e não murmura!
Só eu e que conheço o que padece:
Com fome há tantas horas, e não tenho
Em casa nada que lhe dê agora!
Se pudesse passar sem mim ao lado…
Se pudesse! inda sou rapaz, sou forte,
De noite e dia trabalhava sempre
E do sempre o lucro era pra ele,
Era só pra Camões. Mas eu não posso,
Não posso abandoná-lo um só momento.
Tão fraco; até lhe custa a dar um passo!
Eu vou de porta em porta, a mão estendo,
Peço pão, não para mim, mas pro poeta…
E só parece que a rochedos falo,
Ninguém atende à súplica do pobre!
De dor eu choro quando peço esmola
E vejo que ma negam tão sem alma.
Filhos de Portugal, ó portugueses!
Viveis entregues aos festins malditos
Sem vos lembrar que na miséria triste
Enfermo geme, moribundo quase,
Um português também, um vate ilustre?
Ah! sois malvados corações de pedra!
Sim, sois malvados! O perdão do poeta,
De certo o tendes, porque é bom, perdoa;
Mas dos séc’los futuros, com justiça,
Anátema tereis e fulminante,
Da infâmia o ferrete desprezível,
E a voz de Deus vos bradará severa:
“Assassinos, assassinaste o vate!”
(Ouvem-se salvas repetidas, ao longe)

CAMÕES

Antônio?

ANTÔNIO

Senhor!

CAMÕES

Saberás dizer-me
Por que em sinal festivo o canhão troa?

ANTÔNIO

É a saudação banal das fortalezas
Ao rei, à esquadra, que transpõem a barra;
E que entregues aos ventos inconstantes
Destemidos se vão plantar ousados
O estandarte da cruz em terras d’África.

CAMÕES

(Erguendo-se, agitado)
Sim, eles vão… mas é buscar a morte.
Quem antevera que dum povo a ruína
Pelo seu próprio rei cavada fosse?
Oh campas nobres, já no pó envoltas,
De Nuno, d’Albuquerque e de Pacheco:
Descerrai-vos, surgi. Que esses gigantes,
Patriotas bravos, semideuses lusos,
Erguendo-se do sono eterno um pouco,
Depressa venham sustentar a pátria
Que ameaça cair, cair pra sempre.
(Caminhando para janela
e falando para fora)
Dom Sebastião, monarca temerário,
Parai! parai! que não ireis, mancebo,
Sepultar nas areias africanas,
De tantos séc’los, num só dia a obra.
Se não ouvis meu brando, por ser fraco,
Oh! escutai, senhor, o pranto amargo
Do pai, da mãe, da esposa e do filhinho
Que vos pedem o filho, o pai, o esposo,
Que sem dó arrancais dos lares pátrios
Pra sepulcro lhes dar em terra estranha.
Mas ah! sois surdo; vossas naus já partem,
O Tejo deixam… no horizonte somem-se…
(Retirando-se da janela e como
que subitamente inspirado)
Que luz celeste me esclarece agora?
Que sombras estas que vagueiam tristes,
Que se deslizam silenciosas, quietas,
Fantasmas negros na mudez da noite?!…
Que campo é esse que se alaga em sangue,
Teatro horrível onde impera a morte?!…
Oh d’Alcácer-Quivir plaga maldita,
Que presencias num só dia a queda
Da nação entre todas a mais nobre!
Ah! vergonha pras armas portuguesas!
No calor da peleja que se trava,
Parte-se a folha da ligeira espada
E o alfanje, como anjo de extermínio,
Prosta exangues, sem dó, esses valentes
Que em cem batalhas não tremeram nunca!
Os soldados de Cristo já recuam
Pelas imigas hostes esmagados,
O régio elmo pelo campo rola…
Calcada está de Portugal a c’roa,
Nosso pendão caiu… quebra-se o cetro…
E Dom Sebastião ousado e jovem
Ei-lo que tomba do ginete altivo
Com vida ainda, pra não mais erguer-se!
Ele, nobre dos nobres lusitanos,
Ao lado do peão lá geme, expira!
– A morte nivelou o trono e a choça!
Mas que ouço?! Estes cânticos selvagens…
Este alarido e gritos de vitória…
De um triunfo infeliz os solta um povo!
As mauras meias-luas já tremulam
Dos cristões sobre as tendas tão vaidosas;
Lá ressoa o clarim cantando um hino
Que contentes os ecos o repetem
Pelo negror das trevas que caminham
A cobrir com o sudário da vergonha
A púrpura real, dum rei o corpo!
Ouve-se ainda um brado… extinto é tudo!
A glória e o nome português morreram!
E este tinir de ferros?! São algemas,
São grilhões que nos vem lançar Castela!!
Termos de suportar estranho jugo...

Sofrer da escravidão a morte lenta…
Um nobre português responde – nunca!

ANTÔNIO

(À parte)
A febre do delírio que o devora!

CAMÕES

Eu à pátria sobreviver! Não quero.
Quem deste Portugal cantou as glórias
Não pode a Portugal na mesma lira
Desferir canto fúnebre saudoso.
Se a pátria é morta, hei de morrer com ela.
Hei de sim, hei de sim, porque nesta alma
Era o afeto maior que ora existia.
Oh! que a mesma mortalha nos envolva;
E o canto d’alma apaixonado e terno,
Em que humilde exaltei a fama tua,
Que as chamas consumam; que hoje mesmo,
De Luís de Camões não tenha o mundo
Nem sequer uma prova de seus dias…
Bem poucos de prazer, de dor bastantes!
Queimem-se todos, queimem-se esses versos,
Desta alma parte, que escrevi mil vezes
Com pranto amargo deslizando em bagas.
Eia, coragem!
(Lança ao fogo alguns manuscritos
e vai buscar os Lusíadas)

ANTÔNIO

Os Lusíadas nunca!
Por quem sois, suspendei! sou que o peço:
Que não se queima assim num só momento
Dum poeta imortal a rica c’roa,
E o mais nobre brasão dum povo inteiro.
Oh!vou salvá-los.
(Corre para Camões)

CAMÕES

(Lançando-os às chamas)
Jaú, nem mais um passo.

ANTÔNIO

(Tirando-os)
Ei-lo, o laurel dum vate!

CAMÕES

Que fizeste?!…

ANTÔNIO

(Erguendo o poema)
Se é verdade que tua pátria é morta,
Este poema lembrará ao mundo
Que houve outrora um Portugal gigante
E – Camões – fora seu cantor sublime.