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Candido de Figueiredo 1913/Volume 1/Conversação preliminar/VI

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VI

A accentuação gráphica


Muitos diccionários portugueses e estrangeiros representam a pronúncia das palavras, escrevendo-as sonicamente; em português, immaculado é representado por i-ma-ku-lá-du; em francês, marginaire por mar-gi-nêr; em inglês, directory por 1221de-re-k'tu-re

O systema é admissível e talvez profícuo nas línguas em que se escreve de uma fórma e se lê de outra; no português, parece-me improfícuo e incoherente, se não absurdo. Parte-se ingenuamente do princípio de que o leitor de diccionários não conhece o valor da sýllaba ca, e representa-se cama por esta fórma ka-ma; ora, quem ignora o valor da sýllaba ca, com mais razão devia ignorar o valor da sýllaba ka; mas, se quiser saber lêr kali, acha apenas ká-li, sem que o diccionário lhe diga como se pronuncía a primeira daquellas duas sýllabas.

Se a questão capital é a vogal tónica, dispensemos o inútil e incoherente formulário sónico, e sirvamo-nos dos conhecidos accentos gráphicos, que são prata de casa e bôa de lei, se bem que reduzida e modesta, como de casa que não é rica.

Depois, um português, que consulta o diccionário da sua língua não precisa que lhe ensinem como se pronuncía bello, grande, casa, abril, andar, vestir, campo, etc., etc. A difficuldade reduz-se apenas á correcta pronúncia das palavras agudas e esdrúxulas, (manganés, pállido...), e ainda das graves, em que a vogal tónica tem modulação excepcional, (cêdo, perdigôto...), como das palavras homógraphas, em que a pronúncia diverge, (séde e sêde, rôla e róla, tópo e tôpo, bêsta e bésta...) Para êstes casos, o accento agúdo e circunflexo, e para alguns outros o accento grave e o trema, são elementos bastantes para um regular systema prosódico. Assim o entenderam, e assim o praticaram judiciosamente, os nossos velhos lexicógraphos.

Não me refiro por ora á vantagem ou necessidade da accentuação gráphica na escrita corrente de qualquer obra. Refiro-me exclusivamente ao léxico, em que há necessidade e obrigação de indicar a prosódia.

Como é sabido, e desde longa data, o accento agudo tem servido especialmente para mostrar que uma vogal tem modulação aberta, (avó, rapé, sinhá, séco, bésta...), como o accento circunflexo para mostrar que uma vogal tem modulação fechada, (avô, português, bêsta, sêco...) Para as vogaes surdas e para outros valores do e, não temos, e aínda mal, sinaes diacríticos, bastando-nos todavia a indicação de que o A, o E e o O em sýllabas finaes, desacompanhados de accentos gráphicos, têm modulação surda, e o E antevocálico e não tónico, como em grupos ditongaes, tem o valor de i, como em ideal.

Entre quantos, em Portugal, se occupam hoje da sciência da linguagem, difficilmente se encontrará quem não advogue, para qualquer trabalho escrito, a necessidade de accentuação gráphica dos proparoxýtonos ou palavras esdrúxulas: pállido, tépido, hýbrido, autómato, hippódromo, túmulo...

A divergência está apenas em que alguns eruditos, que eu respeito e estimo, só admittem o accento agudo como sinal de vogal tónica.

E assim, aínda que a vogal tónica tenha modulação fechada, como em esplendido, languido, hellespontico, infancia, êlles accentuam infáncia, hellespóntico, lánguido, espléndido. E contudo aquellas vogaes tónicas têm modulação fechada, e para esta modulação criou-se o accento circunflexo.

Quando digo que a vogal tónica de explêndido, cândido, etc., tem modulação fechada, não ignoro que tal vogal é aberta entre o povo do Minho e em parte da região do Doiro; mas êsse restricto patoá não invalida o que possa dizer-se da orthoépia geral do país. Nem o cáurdo (caldo) e o sourdado (soldado) do povo minhoto; nem o vinégre (vinagre) do baixo Alentejo, nem a epidêmia (epidemía) e o lête (leite) do Algarve, nem o espeilho ou espâlho (espêlho) de Lisbôa e Aveiro, nem o lisboêta riu Tejo (rio Tejo), etc., poderão nunca influir na representação da pronúncia geral do país.

Ora, a questão prosódica não está simplesmente em distinguir-se a vogal tónica; está também em distinguir-se a modulação das vogaes O, E e A; e, se o accento circunflexo fecha a modulação, tenho difficuldade em admittir accento agudo sôbre uma vogal de modulação fechada, como nos exemplos citados.

Bem sei que, por qualquer lado que se procure resolver a questão, a solução nunca será isenta de dúvidas, conhecida a pobreza dos nossos sinaes diacriticos; mas afigura-se-me que, accentuando circunflexamente lânguido, explêndido, etc.; e, sabendo-se que as vogaes O, E, A, quando nasaes, têm sempre modulação fechada, póde concluir-se que o accento circunflexo se empregou, não para indicar a modulação, mas, sim, a vogal tónica.

Eu sei também que na escrita castelhana o accento agudo designa a vogal tónica, e talvez êsse facto influísse na prática de alguns meus illustres conterrâneos. Pondere-se, porém, que a accentuação gráphica estrangeira tem escassa analogia com a nossa; e por isso o espanhol escreve marqués, porque o e é a vogal tónica; e os que entre nós escrevem espléndido não se dedignam de escrever marquês, porque o accento agudo, neste caso, desfiguraria o valor da vogal. Desfigurá-lo-ia aqui, como o desfigura em espléndido.

Tenho porém á mão um argumento, que talvez faça hesitar os mais convictos defensores do accento agudo em qualquer vogal tónica, aberta ou fechada, de palavras proparoxýtonas.

Occorrem-me pelo menos duas palavras, que podem abalar taes convicções: neveda e levedo.

São palavras esdrúxulas, como se sabe. Ora, segundo a theoria dos que só querem accento agudo para a vogal tónica da palavra proparoxýtona, deveriam accentuar-se néveda e lévedo; mas, depois de tal accentuação, toda a gente que não conhecesse taes palavras, lê-las-ia erradamente, porque iria lêr né-ve-da, lé-ve-do, quando afinal essas palavras nunca se pronunciaram nem se pronunciam senão nê-ve-da, lê-ve-do, e assim mesmo as accentuou o bom Roquete, no seu Diccion. Port. Franc.. Creio que tinha muita razão o Roquete, que, apesar de tudo, ainda hoje merece lêr-se. E, se êlle tinha razão, tenho-a eu também.

O que deixo dito de nêveda e lêvedo, é applicável a bêbedo, trôpego, nêspera, côdea, côvado, ênclase, êncero, êulopho, êumeno, êumicro, peixôtoa, serôdio, cômoro, devêramos, fêvera, etc.

Fóra da hypóthese dos esdrúxulos de vogal tónica com accentuação fechada, hypóthese em que talvez seja lícita a defesa de duas opiniões distintas, é muito simples a representação prosódica da linguagem portuguesa, sem recorrer a fallíveis e contradictórios expedientes sónicos.

Em regra, nas palavras graves, a vogal tónica é vogal aberta: soldado, donzella, escola... Portanto, accentuam-se as excepções, quando queremos representar o valor das palavras: trombêta, rôla...; ou, se organizamos vocabulário, notamos essas excepções em parênthese, seguidamente ao vocábulo, assim: — Lobo, (), m. — Etc.

É verdade que pâra, câda e sôbre são palavras que se consideram proclíticas, e que, perdendo por tanto o accento próprio, pela sua subordinação a uma palavra immediata, (para nós, cada homem, sobre tudo), não merecem accento gráphico, no conceito de bons mestres; e, tanta consideração estes me merecem, que não devo esquivar-me a significar-lhes o fundamento da minha insignificante divergência.

 

Em primeiro lugar, e sem discutir se pâra deve considerar-se proclítica, porque talvez se possa sustentar que as próclises só se dão nos monosýllabos, (de todos, a história, por Lisbôa), impressiona-me a reflexão de que os leitores, na sua maioria, não são phoneticistas nem se dão ao cuidado de destrinçar próclises e ênclises. De fórma que, devendo o diccionarista representar a modulação excepcional das vogaes tónicas, e não representando o valor da alludida vogal naquellas suppostas proclíticas, o leitor ficaria no direito de lêr pára quando devia lêr pâra, e poderia dizer sóbre quando devia dizer sôbre; e cáda, quando devia dizer câda, etc.; visto que a regra é sêr aberta a vogal tónica da palavra.

Depois, verifica-se um facto, que talvez não seja indifferente á questiúncula: — é que as vogaes e e o das partículas não são fechadas, são surdas, (por Deus; de Roma). Portanto, se sôbre fosse uma proclítica e tivesse de subordinar-se á regra das próclises monosyllábicas, teriamos de lêr subre tudo, o que ninguém acceitaria, é claro.

Mas temos mais. Sôbre nem sempre é palavra dependente de outra. Em náutica designa certas velas: «O vento despedaçou os sôbres». E até em grammática é palavra independente, como quando dizemos: «A palavra sôbre é uma preposição». E isto mesmo se póde dizer de pâra, etc.

E mais ainda: Sem accentuação gráphica, para e sobre podem sêr preposições e podem sêr verbos; mas, independentemente do sentido das respectivas locuções, só o accento gráphico mostrará se são verbos ou preposições.

Quanto ás palavras agudas, toda a gente accentua com razão a vogal tónica, quando não é u ou i, nem anteposta a b, c, d, g, h, l, n, p, r, t, z: manganés, acolá, noitibó.

Como as palavras, em que a vogal da última sýllaba é i ou u, são geralmente agudas, dispensam accentuação gráphica: alli, Paris, Caramuru, alecrim... Portanto, accentuem-se as excepções: tríbu, (que melhor se escreve tribo, sem necessidade de accentuação), Vênus, Sírius, Páris, vírus...

Em regra, as palavras terminadas em r ou l, são agudas: andar, vestir, lupanar, Manuel, funil, batel... Portanto, basta accentuar as excepções: âmbar, açúcar, éther, Aníbal, amável, possível...

Tem proximamente modulação fechada a terminação eis, em geral: reis, seis, achareis, deveis... Portanto, accentúo as excepções: pastéis, coronéis, cascavéis...

Etc.

 

Não farei ponto neste árido assumpto, sem alludir a alguns casos, em que parece sêr regra a modulação fechada da vogal tónica: taes são aquelles, em que a vogal tónica é seguida de m ou n: cama, leme, Roma, arcano, pena, dono... Logo, basta que se accentuem as excepções: carbóne, tómo (verbo), mordómo...

Parece, ás vezes, que o m, embora não immediato á vogal, influe no valor della, de acôrdo com a regra citada: ermo, mormo, termo, enfermo, esmo, colmo, torresmo, resma, sesmo... Donde poderá concluir-se que estas fórmas, para bem se interpretarem, não precisam de accentuação gráphica.

Também a vogal tónica do ditongo eu tem geralmente modulação fechada, dispensando accento: meu, teu, vendeu, judeu... Basta accentuar as excepções: céu, mausoléu, mastaréu...

Por algum tempo hesitei sôbre se o o do ditongo oi é, em regra, aberto ou fechado; mas concluí, sem grande difficuldade, que é fechado: foi, moio, dois, oito, arroio, joio, soito, toiro, loiro, vassoira... Donde se infere a legitimidade e a conveniência de accentuarem as excepções: dezóito, herói, jóia, combóio, clarabóia, lóio...

Algumas vezes o accento agudo dispensa o trema, quando póde recair na vogal tónica; em vez de maïça, maíça; em vez de saïda, saída... Fóra da vogal tónica, o trema não tem substituição: saïmento, intuïção, apaülado...[1]

A pobreza de sinaes diacríticos força-nos, por vezes, a usar accentuação gráphica, que não corresponde precisamente ao valor da vogal accentuada. Assim, nas variantes ideia e idéa, usamos na segunda fórma o accento agudo, não só para indicar a vogal tónica, senão também para mostrar que essa vogal tem modulação que não é fechada nem surda, e que a mesma vogal não faz parte de um semiditongo, como em láctea, áurea, purpúrea...

Em todo caso, o accento agudo de idéa, corréa, moréa..., fórmas aliás, a que eu naturalmente prefiro ideia, correia, moreia..., tem um pouco de convencional, como nos casos seguintes: — Estabelecido, como regra, que são graves ou paroxýtonos os polysýllabos terminados em am ou em, (dizem, valem, fazem, ontem, louvam, devem), natural é que se accentuem graphicamente as excepções, (retém, contém, armazém, Santarém, também, ninguém...) Raros serão os polysýllabos terminados em om, mas, dêsses, não conheço nenhum que não seja oxýtono, dispensando-se por isso a final accentuação gráphica.

No mesmo caso estão os polysýllabos terminados em im e um, que, em português corrente, são sempre oxýtonos: Joaquim, nenhum, fartum, pingalim... Não exigem accento gráphico. As palavras terminadas em en, in, on e un, são avêssas á tradição da língua e, geralmente, só se usam em palavras eruditas ou scientíficas, e nunca são oxýtonas: órion, líchen, certâmen, abdômen... Estas duas últimas fórmas, e suas congêneres, ficarão mais portuguesas, se lhes dispensarmos o n final, como se fez ao nome, ao lume, ao crime...

Visto que em fórmas verbaes de terminação nasal há muitas vezes coincidência phonética de singular e plural, pareceu-me acceitável o uso do circunflexo para distincção do plural, visto que o accento agudo já tinha a funcção de designar o oxýtono. Verbi gratia: «Contem, meus senhores, o dinheiro que êste cofre contém e não se importem do que as gavetas contêm.» Convenção, é claro, mas certamente útil, se não necessária.

Verdade é que alguns escritores e grammáticos distinguem, naquella hypóthese, singular e plural, com a inclusão de um e: «Êlle tem, êlles teem.» Outros, talvez mais acertadamente, nasalam graphicamente o primeiro e daquelle plural, e escrevem t[~e]em, cont[~e]em... Parece-me todavia que a distincção phonética, entre o singular e o plural, não existe na linguagem commum ou vulgar: todo povo, e talvez muitos eruditos, dizem simplesmente: «Êlle tem, êlles têm; êlle contém, êlles contêm.» E, neste caso, a distincção dos números verbaes parece-me vantajosamente indicada com os signaes, que acompanham os exemplos alli consignados.

 

Além da vogal tónica, algumas vezes é mister accentuar a vogal átona, não já servindo-nos do accento agudo, mas do grave. Corado poderia ler-se erradamente cu-ra-do, se não accentuássemos còrado; pegada, (pé-gá-dâ), lêr-se-ia erradamente pegada (com pe surdo), não se pondo accento grave na primeira sýllaba, (pègada). O accento agudo, em tal caso, tornaria tónica a primeira sýllaba, convertendo em esdrúxula uma palavra que é grave.

O accento grave significa, pois, que a respectiva vogal é aberta, mas não tónica.

Na accentuação, porém, das sýllabas átonas, o diccionarista deve manter a mais discreta sobriedade, por motivos de vária índole.

Em primeiro lugar, entre cêrca de quarenta milhões de indivíduos que falam o português, em todas as partes do mundo, há profundas dissidências orthoépicas, que seria ocioso corrigir ou capitular de erróneas. Sobretudo, entre Portugal e o Brasil, as variantes orthoépicas são numerosas e conhecidas. Dentro do próprio Brasil, como já notei, a pronúncia não é uniforme.

Depois, nas palavras compostas, de formação erudita, é assombroso o quadro das irregularidades e divergências prosódicas, como também já notei.

Em taes casos, portanto, o que prevalece é a natural evolução phonética e a soberania do uso, que não o arbítrio ou a opinião do diccionarista.

Limitada, em geral, a representação prosódica do vocabulário á accentuação gráphica da vogal tónica, pareceu-me vantajoso que, na definição ou noção de vocábulo, como em qualquer escrita corrente, se reproduzam os accentos indicados no vocabulário: não é só o leitor de um diccionário que tem direito a saber o valor prosódico de uma palavra; qualquer leitor de prosas ou de versos deve vêr no que lê a indicação clara do valor phonético de cada termo.

É verdade que, em tal matéria, e dada a possibilidade de divergências fundadas ou infundadas, o diccionarista nada impõe: propõe.

Na sua qualidade de proposta, a accentuação gráphica, adoptada pelo autor na generalidade dos seus escritos e apontada no decurso desta obra, pouco terá com a essência do diccionário, — que póde sêr bom ou mau, independentemente daquelle ponto de vista.

O autor propõe; os mais entendidos e o público dispõem.[2]

Notas

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  1. A última reforma orthográphica, approvada officialmente, preceituou, por maioria de votos da Commissão reformadora, que em vez de trema, se use acento grave. É respeitável o preceito, mas achará difficuldades, que o trema não encontra.

    (Nota desta nova edição).
  2. De acordo com a última reforma orthográphica, a que também está ligada a minha responsabilidade, simplifiquei um pouco, nesta nova edição, a accentuação gráphica, fóra dos casos em que ella é da maior vantagem, como nos vocábulos esdrúxulos, nos termos homógraphos mas não homophónicos, (sêde e séde, vária e varía), etc.
    E assim também, como seja regra que é fechada a vogal tónica da desinência oso, formoso, idoso, etc., julguei aqui dispensável a accentuação gráphica e até a indicação parenthética do valor da vogal tónica. Como é regra sêr aberta a vogal tónica da desinência osa, (formosa, rosa, etc.) acentuo as excepções: espôsa, etc.
    Da mesma fórma, sendo geralmente fechadas as vogaes tónicas das desinências or e er, (senhor, compor, doutor, comer, dizer, perder), acentuo graphicamente as excepções: majór, melhór, colhér, malmequér...

    (Nota desta nova edição).