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Candido de Figueiredo 1913/Volume 1/Conversação preliminar/I

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I

Razão da obra



A história dos diccionários da língua portuguesa, de par com alguns deploráveis documentos de insciência, de leviandade e de mera exploração mercantil, offerece á nossa admiração perduráveis monumentos de muito saber, de laboriosas e inestimáveis investigações, de honestíssimo e profícuo trabalho.

Está certamente na consciência de todos o altíssimo serviço, prestado ás letras nacionaes por Bluteau, que, lutando com a carência de trabalhos similares na sua pátria adoptiva, inaugurou brilhantemente a lexicographia portuguesa; por Moraes e Silva, cuja obra foi, relativamente aos fins do século XVIII, invejável título de glória; pelos obscuros e illustradíssimos autores do primeiro e único volume do Diccionário da Academia Real das Sciências, esmagados ante-sazão pela enormidade e pêso daquelle meritório emprehendimento; e ainda em tempos mais próximos de nós, pela clara e sisuda intelligência, que se reconhece na organização do Diccionário Contemporâneo.

Não menciono mais, porque só adduzo exemplos.

Infelizmente, todos que sabem lêr terão certamente observado que, sendo cada diccionário geralmente vazado nos moldes dos diccionários que o precederam, succedeu que a língua andou e os diccionários pararam.

E pararam, sem que ao menos tivessem conglobado em vocabulário a maior parte dos thesoiros, disseminados nos nobiliários, nos cancioneiros, nas chrónicas quinhentistas, em Gil Vicente, em Bernardim Ribeiro, em Vieira, em Filinto...

Pararam, e a esphera da linguagem foi-se ampliando successivamente, não só por effeito de numerosas derivações internas, senão também, e principalmente, pela formação e diffusão da moderna technologia scientífica, artística e industrial, pela permutação internacional de muitas fórmulas, pela febre do neologismo, e pela necessidade de dar nome a coisas e factos que nossos avós desconheceram.

Ora, desde que eu senti em mim o mofino sestro de cultor das letras, preoccupou-me e dissaboreou-me sempre a falta de um vocabulário, que me dirigisse no estudo dos mestres da língua, desde Fernão Lopes até Camillo; na applicação de milhares de lusitanismos, conservados amoravelmente pelo povo de todas as nossas províncias, mas desconhecidos dos diccionaristas; na avaliação da nossa riquíssima technologia rural, da technologia artística e scientífica; no conhecimento da fauna e da flora do nosso ultramar e até do nosso próprio continente.

Abria os diccionários menos imperfeitos ou de melhor nomeada, — O Contemporâneo, por exemplo, — e nem ao menos alli se me deparavam vocábulos de uso corrente e vulgaríssimo, como paulada, bruxedo, deferimento, saliência, caudelaria, palheiro, plagiar, plangente, granjear, prefaciar, desvirar, saguão, agrupamento, propositado, promptificar-se, reconsiderar, reproductor, ruço, têxtil, empanturrar, guerrilheiro, etc., etc.

De centenares de vocábulos, com que Vieira, Filinto e Camillo enriqueceram a sua língua, raramente se me deparava um sequer nos léxicos portugueses!

Da antiga e moderna technologia das artes e sciências rara notícia me davam os lexicógraphos nacionaes.

Da linguagem popular, privativa desta ou daquella província, tratára um ou outro literato, um ou outro folclorista; os diccionaristas, êsses não desceram da esphera da linguagem erudita, restringida, ainda assim, á quinta parte da linguagem dos eruditos.

Isto, quanto á pobreza de vocabulário. Quanto a erros de doutrina, aliás communs aos melhores diccionários, não me podiam êlles surprehender, visto como um diccionário, não obstante a maior autoridade e competência do seu autor, é o trabalho literário mais susceptível de imperfeições, e ocioso será o justificar esta these.

Por isso, embora o respeitável Moraes e outros distintos lexicógraphos errem ao definir licranço, pesebre, teiró, croca, pieira, calambrá, rocló, lacrau, baceira, cerva, maniqueira, corça, torneja, gallacrista, etc.; embora registem palavras que nunca existiram, como igarvana, garna, fomo, fangapena, marapinina, frondíbalo, etc.; embora mandem lêr adípe, (que é ádipe), alcácel, (que é alcacél), caguí, (que é çagüí, ou sagüí), mucuna, (que é mucuná), gombo, (que é gombô), etc.; embora perpetrem manifesto arbítrio e notáveis irregularidades em prosódia, tornando ora paroxýtonas, ora proparoxýtonas, palavras de formação similar, como hydrocéle, epiplócela, etc., etc., não era por esse lado que mais facilmente se justificaria o accréscimo de mais um diccionário a tantissimos que enxameiam o escasso mercado nacional; mas, sim, pela assombrosa deficiência de vocábulos ou artigos, imprescindíveis em qualquer inventário da língua nacional.

E, a êste propósito, não será ocioso memorar que muitos diccionaristas conheceram e usaram, no decurso das suas obras, expressões que não registaram no competente lugar do vocabulário, ou porque, redigindo um artigo, não souberam recordar-se dos termos que usaram noutro, ou porque, distribuida a obra por collaboradores diversos, o autor dos artigos relativos á letra A, por exemplo, não conhecia os termos de que se serviria o autor dos artigos da letra Z.

E assim é que, na grande obra de Frei Domingos Vieira, — e só me refiro aos artigos de uma letra, — debalde procuraremos pelagiano, perómelos, phene, patigabiraba, picaveco, plumbear, panarei, etc., etc. E, contudo, o autor ou os seus ampliadores conheceram e empregaram aquelles termos, ao definir marmanjo, albatroz, batrachio, benzina, côco, azerar, calhamaço, etc. No bom Diccionário Contemporâneo, inutilmente procuraremos os vocábulos assexuado, arachnidas, herva, carácias, chenopódias, spermatozoides, camomilla, gorilla, gálleas, parrochiano e parróchia, trachinídeos, decapódeos, escomberoides, avessar, termillionésimo, azaro, lóio, etc.; e contudo o autor ou os autores da obra serviram-se delles, com fundamento ou sem êlle, ao definir abelha, ácaro, alquequenje, ambeta, anserina, antherídea, anthêmis, anthropomorphos, aparinas, aparrochiar-se, aranha, astacites, atum, avessado, avo, azeredo, azulóio, etc., — e só me refiro a vocábulos da letra A.

Em taes casos, é a falta de méthodo, e sobretudo o facto ou a necessidade de muitos collaboradores da mesma obra, o que determina sensíveis lacunas, sem desabono da competência e saber de quem dirige a obra.

E todavia taes casos, embora dignos de nota, não accusam, como é de vêr, as principaes deficiências dos nossos mais estimados diccionários: as deficiências capitaes referem-se á linguagem popular, á linguagem culta, antiga e moderna, á technologia scientífica, etc., e foi especialmente neste campo que eu, durante vinte e dois annos, despendi larga parte dos meus cuidados e trabalho.