Saltar para o conteúdo

Cantos populares do Brasil/Introdução

Wikisource, a biblioteca livre

Um olhar lançado sobre nossa história, não sobre a história escrita por A. ou B., por Varnhagen ou Pereira da Silva, velhos declamadores retóricos, mas a história não escrita, a tradição flutuante e indecisa de nossas origens e ulterior desenvolvimento, um olhar aí lançado irá descobrir, não sem alguma dificuldade, os primeiros lineamentos de nossas lendas e canções populares. Não existem documentos escritos de tais fatos; os documentos são as lendas e canções mesmas, que são agora pela primeira vez fixadas pela escrita. Quais foram os primeiros romances e cantos portugueses transplantados para o Brasil? Quais os primeiros contos da península que passaram às nossas plagas?

Por outro lado, quais os primeiros cantos indígenas e africanos assimilados por nossas populações mestiças; quais os primeiros de origem puramente nacional? Impossível é aqui responder com uma data como fazem os historiadores relativamente à morte ou ao nascimento dos reis.

As tradições populares não se demarcam pelo calendário das folhinhas; a história não sabe do seu dia natalício, sabe apenas das épocas de seu desenvolvimento. O que se pode assegurar é que, no primeiro século da colonização, portugueses, índios e negros, acharam-se em frente uns dos outros, e diante de uma natureza esplêndida, em luta, tendo por armas o obús, a flecha e a enxada, e por lenitivo as saudades da terra natal. O português lutava, vencia e escravizava; o índio defendia-se, era vencido; fugia ou ficava cativo, o africano trabalhava, trabalhava... Todos deviam cantar, porque todos tinham saudades; o português de seus lares, dalém mar, o índio de suas selvas, que ia perdendo, e o negro de suas palhoças, que nunca mais havia de ver.

Cada um devia cantar as canções de seu país.

De todas elas amalgamadas e fundidas em um só molde — a língua portuguesa, a língua do vencedor, é que se formaram nos séculos seguintes os nossos cantos populares.

O europeu foi concorrente mais robusto por sua cultura e o que deixou mais tradições. No século XVI, pois, por uma lei de evolução que dá em resultado antecederem as formas simples às mais compostas, as canções e contos populares das três raças ainda corriam desagregados, diferenciados. Nos séculos seguintes, sobretudo no XVII e XVIII, é que se foram cruzando e aglutinando para integrar-se à parte, produzindo o corpo de tradições do povo brasileiro. Nós ainda hoje assistimos a este processo de integração.

No século XVII o fato já se ia dando e pode ser avaliado pelo estudo de Gregório de Matos. A crítica míope de nossos retóricos, seja dito de passagem, fez deste poeta um renegado corrupto, sem préstimo algum.

Entretanto, Gregório é o documento por onde podemos apreciar as primeiras modificações que a língua portuguesa sofreu na América. A obra de transformações das raças entre nós ainda está mui longe de ser completa e de ter dado todos os seus resultados. Ainda existem os três povos distintos em face um dos outros; ainda existem brancos, índios e negros puros. Só nos séculos que se nos hão de seguir a assimilação se completará.

O que se diz das raças deve-se repetir das crenças e tradições. A extinção do tráfico africano, cortando-nos um grande manancial de misérias, limitou a concorrência preta; a extinção gradual do caboclo vai também concentrando a fonte índia; o branco deve ficar no futuro com a preponderância no número, como já a tem nas idéias.

Lançando uma vista perscrutadora sobre a população brasileira para estudar a sua atualidade, abstração feita de suas origens e à luz de idéias científicas, sem prestar ouvidos às nossas pretensões de grandezas, podemos dividi-la em quatro secções naturais: os habitantes das praias e margens dos grandes rios; os habitantes das matas, os dos sertões, os das cidades.

Os três primeiros grupos são indicados pelas zonas em que se divide o país. As cidades e vilas, conquanto existam igualmente nas três regiões, os seus habitantes têm caráter especial e formam uma categoria à parte.

Aqueles três grupos, que estudaremos mais de perto, constituem um povo mesclado em escala enorme, apresentando mais diversidades de tipos do que as variedades de gatos que habitam nossos telhados, para repetir a frase de Quatrefages.

De não mui grande vivacidade intelectual, tanto que suas indústrias são em estado rudimentar, é um povo sem claro objetivo político, sem consciência social e histórica, falho de ciência e de elevados incentivos, e, ao mesmo tempo, sem mitos e sem heróis. Se não é um povo culto, nem por isso permanece ainda claramente e de todo no período politéico e mitológico das crenças. Está ele exteriormente no período teológico, na fase do monoteísmo; mas ainda com pronunciados resíduos da fase do fetichismo e do politeísmo. Nem é isto um fenômeno estranho. As populações rurais da própria Europa são monotéicas na superfície, ocultando porém profundos sedimentos do fetichismo e do politeísmo.

Os nossos homens das praias e margens dos grandes rios são dados à pesca; raro é o indivíduo entre eles que não tem sua pequena canoa.

Vivem de ordinário em palhoças, ora isoladas, ora formando verdadeiros aldeamentos. São chegados a rixas, amigos da pinga e amantes da viola. Levam às vezes semanas inteiras dançando e cantando em chibas ou sambas. Assim chamam-se umas funções populares em que, ao som da viola, do pandeiro e de improvisos, ama-se, dança-se e bebe-se. Quase todo o praieiro possui o instrumento predileto e canta ao desafio. Se os lavradores vizinhos mandam convidar esta gente para trabalhar nas 'roças, ela não aparece muito facilmente. Se a convida para um chiba, aparecem cinqüenta de pancada.

Tivemos ocasião de verificar o caso em uma fazenda da costa. Havia um hóspede em casa que desejava ver um chiba para estudá-lo; apresentou seu desejo ao dono da fazenda e este mandou chamar comparsas para a função. Já era por tarde quando se deram as providências; antes, porém, de vir a noite mais de cinquenta cavalheiros e damas estavam dançando no salão! Lembramo-nos de um velho que, não podendo mais dançar e tocar, dizia melancolicamente: eu fui aquele que pissuiu sete violas...

Isto é característico. Os habitantes das matas são dados à lavoura e chamados matutos em Pernambuco, tabaréus em Sergipe e Bahia, caipiras em S. Paulo e Minas, e mandiocas em algumas partes do Rio de Janeiro. Também são em geral madraços e elevam todo o seu ideal a possuir um cavalo, um pequira, como chamam. Vivem de ordinário nas terras dos grandes proprietários, que são verdadeiros senhores feudais, a título de agregados.

Os homens dos sertões são criadores. O sertanejo, que não é grande proprietário é, por via de regra, vaqueiro. Este é um tipo brutal, vestido de couro dos pés à cabeça, monteador feroz; sempre cavaleiro exímio.

Os habitantes das três zonas, aqui descritos rapidamente, são supersticiosos. Suas superstições dividimo-las em duas classes: as que têm tomado um caráter mais ou menos acentuado e histórico por vezes, as ordinárias e comuns. As primeiras hão sido certos fenômenos com caráter pseudo-religioso. Entre elas, destaca-se o movimento há já alguns anos produzido por um tal Maurer, no Rio Grande do Sul, e de que os jornais deram conta. Um impostor arvorou-se em profeta e arrebanhou após si grande número de ingênuos e velhacos. Mais temeroso foi o fenômeno da Pedra Bonita ou Reino Encantado em Pernambuco, em 1836. Houve aí cenas horríveis de fanatismo e larga carnificina. Mais recentemente tivemos o ensejo de estudar dois acontecimentos análogos, ainda que mais inocentes. Um passou-se no lugar denominado Carnaíbas, próximo à Vila do Riachão, antiga província de Sergipe. Dois pretos velhos alienados fizeram morada em uma casinhola onde havia uma Santa Cruz. As pessoas que têm viajado pelo interior conhecem estas espécies de nichos esparsos aqui e acolá pelo país e asilando sempre uma cruz. Algumas destas passam por milagrosas e estão ornadas de relíquias e milagres. Pois bem, os dois negros em um teatro destes entraram a fazer sermões e para logo viram grupar-se em torno de si enorme multidão. Estabeleceram o comunismo das mulheres e fizeram prédicas infamantes. Foi mister a intervenção armada da polícia para desmanchar-se o ajuntamento. O último fenômeno da espécie que temos de apresentar teve um teatro ainda mais vasto. Um indivíduo criminoso do Ceará saiu a fazer penitência a seu modo e inaugurou prédicas públicas... No seu percurso veio ter aos sertões da Bahia e fundou uma igreja em Rainha dos Anjos. Chamava-se Antônio e o povo denominava-o o Conselheiro. Passou por Sergipe, onde fez adeptos.

Pedia esmolas e só aceitava o que supunha necessário para a sua subsistência, no que divergia de nossos mendigos vulgares. Não tinha doutrina sua e andava munido de um exemplar das Horas Marianas, donde tirava a ciência! Era um missionário a seu jeito. Com tão poucos recursos fanatizou as populações que visitou, que o tinham por Sant'Antônio Aparecido!

Pregava contra os pentes de chifre e chales de lã, e as mulheres queimavam estes objetos para o satisfazer. A musa popular vibrou a seu respeito e exalou-se em quadras como estas:

"Do céu veio uma luz
Que Jesus Cristo mandou;
Sant'Antonio Aparecido
Dos castigos nos livrou.

Quem ouvir e não aprender,
Quem souber e não ensinar,
No dia de Juízo
A sua alma penará"

As chamadas — Santas-Missões são fenômenos quase análogos. Além destas superstições, em grosso, por assim dizer, existem as ordinárias e vulgares, que são de todos os dias. Escreveríamos um volume inteiro, se fôssemos a descrever as da espécie que temos presenciado. Limitar-nos-emos a poucas. A propósito de moléstias revelam-se algumas muito interessantes. Quase todas as doenças para o povo vêm a ser: a espinhela caída, o flato e o feitiço.

Curam todas com benzeduras ou promessas a santos.

A espinhela caída é um incômodo do estômago ou da parte posterior do esterno, que o povo conhece e descreve. O modo de a curar é sujeitar-se o paciente a que um curandeiro o benza com as seguintes palavras que pudemos obter não sem dificuldade:

"Espinhela caída,
Portas para o mar;
Arcas, espinhelas,
Em teu lugar!...

Assim como Cristo,
Senhor Nosso, andou
Pelo mundo, arcas,
Espinhelas levantou."

Fazem-se cruzes nos pulsos, estômago e costelas. O flato são fenômenos nervosos também curados com rezas. O feitiço é cousa que dizem ser feita por alguém.

Para fazer sair uma espinha da garganta, a reza é esta:

"Homem bom,
Mulher má,
Casa varrida,
Esteira rota;
Senhor São Braz
Disse a seu moço
Que subisse
Ou que descesse
A espinha do pescoço".

Para o soluço deve o paciente munir-se de um copo d' água e perguntar:

Doente: "Que bebo?
Curandeiro: "Água de Cristo,
Que é bom pra isto".

Três vezes se repete a pergunta e outras tantas a resposta.

Para o cobrelo (cobreiro chama-lhe o povo) estabelece-se entre o doente e o benzedor o seguinte diálogo:

"Pedro, que tendes?
— Senhor, cobreiro.
— Pedro, curai.
— Senhor, com que?
— Águas das fontes,
—Ervas dos montes".

Quanto ao mal do baço proveniente de sezões, o povo costuma cortar a dureza. O método consiste em colocar o doente um pé sobre uma folha de bananeira ou sobre o capim pé de galinha e o curandeiro ir com uma faca marcando a configuração do pé, e perguntando : "O que corto?" Ao que responde o doente: "Baço, dureza, obstrução". Isto, três vezes, findo o que o capim, ou o pedaço da folha de bananeira recortada na forma do pé, é cosido em um breve, que é posto ao pescoço do enfermo. Quando a folha secar, desaparecerá a dureza. Também acreditam no mau olhado e quebranto. Certas moléstias da cabeça dizem ser o sol, a lua ou as estrelas que entraram na cabeça do padecente.

O modo de as medicar é: colocar uma toalha dobrada sobre o crânio do indivíduo afetado e sobre a toalha um copo com água emborcado. A reza que acompanha esta operação, que para nós é uma reminiscência da trepanação pré-histórica, segundo a descreve Broca, é a seguinte : "Jesus Cristo nasceu, Jesus Cristo morreu, Jesus Cristo ressuscitou. Se estas três palavras são verdadeiras vos farão sarar desta enfermidade". Segue-se o credo. Repetem-se três vezes a oração e o credo. Depois se oferece. O oferecimento é este: "Ofereço este benzimento à sagrada paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo". Depois repete-se o Bendito e o Em nome do Padre, do Filho' e do Espírito Santo, três vezes.

Para o veneno da cobra existe o fechamento do corpo, que é uma oração que se traz ao pescoço. Também serve para preservar de faca de ponta e de tiro de bala.

Quando cai um argueiro no olho de alguém reza-se:

"Corre, corre, cavaleiro,
Vai na porta de São Pedro
Dizer a Santa Luzia
Que me mande seu lencinho
Para tirar este argueiro"..

Também existem superstições sobre certos animais. A coruja é de mau agouro. A esperança e a lavadeira de bom. Acreditam no lobisomem, na mula sem cabeça e na mãe d'água, animais encantados.

O excremento da vaca é empregado para lavar a roupa e o corpo.

Lembramos este fato por encontrar nele uma reminiscência do culto que se dava à vaca e seu excremento na Pérsia e na Índia.

O do cachorro, chamado jasmim do campo, emprega-se na cura da varíola. E' um outro sintoma do atraso popular.

Quando sobrevêm as terríveis secas, em alguns pontos procuram conjurá-Ias, fazendo procissões e mudando um santo de um lugar para outro.

Também para experimentar se o ano será seco ou chuvoso, costuma-se tirar a prova de Santa Luzia, que consiste em colocar-se um bocado de sal em uma vasilha, na véspera do dia da santa, em lugar enxuto e coberto.

Se o sal amanhecer molhado, choverá, ao contrário não.

Conta-se que no Ceará fizeram esta experiência diante do naturalista George Gardner, mas o sábio, fazendo observações meteorológicas, e chegando a um resultado diferente do atestado pela santa, exclamou em seu português atravessado: "Non, non, Luzi mentiu."

Quando alguém perde um objeto, costuma invocar São Campeiro, personagem que não consta do calendário, e São Longuinho, patriarca das causas perdidas.

A São Campeiro acendem-se velas pelos matos e campos.

Para São Longuinho, quando se encontra o objeto perdido, grita-se: "Achei, São Longuinho!I" Isto três vezes.

Algumas mulheres quando entram nágua para tomar um banho, dizem:

"Nossa Senhora
Lavou seu filho
Pra cheirar;
Eu me lavo
Pra sarar".

Acreditam muito em almas do outro mundo, e quando estão comendo, se lhes acontece cair um bocado no chão, dizem: "qual dos meus estará com fome?"

Vemos aí uma reminiscência do culto dos maiores, descrito por H. Spencer.

Ao deitarem-se algumas dizem:

"S. Pedro disse missa,
Jesus Cristo benzeu o altar,
Assim benzo minha cama
Onde venho me deitar."

No ato de dar uma mulher à luz, quando faltam ainda as secundinas ou companheiras, como chamam, a parteira, ou assistente, faz repetir pela parturiente:

"Minha Santa Margarida,
Não estou prenha, nem parida."

No Ceará ainda se usa, em alguns pontos do centro, uma espécie de velório por morte de crianças, anjinhos, como chamam. Consiste em dar tiros de pistolas e rouqueiras, e cantar rezas e poesias na ocasião de levar para o cemitério o anjinho.

Existe também em algumas províncias a devoção intitulada a lamentação das almas. Em certa noite do ano saem os penitentes, de matracas em punho, a cantar em tom lúgubre composições adequadas. Vão parando de porta em porta sobretudo nas casas de certas velhas a quem querem aterrar.

Nota-se também o costume de vender ou amarrar as sezões, que consistem em benze-las e depois ir o doente a um pé de laranjeira, onde nunca mais deve tornar, dizer:

"Deus te salve, laranjeira,
Que te venho visitar;
Venho te pedir uma folha
Para nunca mais voltar."

O elemento feminino é que predomina em tudo isto.

Deixemos este lado curioso, mas sombrio de nosso povo, que é comum aliás às nações até as mais cultas, e vejamo-Ia expandir-se em suas festas.

É ainda às populações rurais que devemos ir pedir as nossas informações.

Pelo que toca às cidades e grandes vilas, suas populações se dividem em duas classes bem acentuadas. A parte mais ou menos culta, que figura no comércio, nas artes, na política e nas letras, e a parte inculta, a imensa coorte eles capadócios ou cafajestes. E' gente madraça, que, possuindo todos os defeitos dos habitantes do campo, não lhes comparte as virtudes.

As festas populares neste país são de duas espécies: as de igreja popularizadas e as exclusivamente populares. Entre as primeiras destacam-se: a de Nazaré no Pará, das Neves na Paraíba do Norte, do Monte e Saúde em Pernambuco, do Bonfim na Bahia, da Penha no Rio de Janeiro. São festas de oragos, em que o povo toma parte com folganças especiais.

À segunda espécie pertencem as festas gerais do Natal, Ano Bom, Reis, S. João, S. Pedro, Espírito Santo, com seu cortejo de xibas, sambas, reisados, cheganças, etc.

Nestas últimas é que melhor se aprecia em ação a poesia popular.

As festas de Natal, Ano Bom, Reis, chamadas janeiras em Portugal, são as mais alegres e travessas para o nosso povo; são quinze dias de folgares constantes e variados.

No Lagarto, cidade da província de Sergipe, foi que melhor as estudamos. Os brinquedos mais comuns são: o Bumba meu boi, os Marujos, os Mouros, o Cego, etc.

O Bumba meu boi vem a ser um magote de indivíduos acompanhados de grande multidão, que vão dançar nas casas, trazendo consigo a figura de um boi, por baixo da qual oculta-se um rapaz dançador.

Pedem, com cânticos, licença aos donos da casa para dançar. Obtida a licença, apresenta-se o boi e rompe o coro:

"Olha o boi,
Olha o boi que te dá,
Ora entra pra dentro,
Meu boi rnarruá.

Olha o boi,
Olha o boi que te dá,
Ora dá no vaqueiro,
Meu boi marruá.... etc."

O vaqueiro representa sempre a figura de um negro ou de um caboclo, vestido burlescamente, e que é o alvo das chufas e pilhérias populares. A intenção transparente de debicarem mutuamente assim as duas raças inferiores, preta e vermelha, é um fenômeno curioso.

A folgança dos Marujos representa-se com um batalhão de rapazes vestidos à maruja, que conduzem um naviozinho. Cantam versos variados e fazem evoluções múltiplas. Depois de fingir uma luta, vão coser o pano, no fim do que há o episódio do gajeiro, cantando-se os versos da Nau Catarineta de origem portuguesa.

Ainda hoje quem tem o sentimento da poesia popular e compreende o espírito do povo português, como um povo de navegantes, não pode ouvir aquela canção do gajeiro com sua melopéia sentida, sem experimentar alguma cousa de saudoso e de profundo. É' a velha alma lusitana transplantada para este país, que nos agita as fibras do coração. Os versos e a música, que sabemos de cor, nunca os ouvimos sem agradável comoção.

No mesmo espírito é também a folgança dos Mouros, onde há uma luta entre cristãos e turcos, reminiscência histórica das lutas contra os mouros na península hispânica.

O começo é:

"Olhem que grande peleja
Temos nós que pelejar,
Se for o rei da Turquia,
Se não quiser se entregar... etc."
O brinquedo ou auto popular do cego é menos característico.

E' todo de implantação portuguesa. E' a história um conde que se finge cego para raptar uma moçoila.

Esta vai ensinar-lhe o caminho e encontra-se com companheiros do conde; é raptada e diz com melancolia:

"Valha-me Deus
E Santa Maria,
Que eu nunca vi cego
De cavalaria... etc."

Tem um certo frescor juvenil e a música é expressiva.

Em Pernambuco o auto popular do Cavalo-marinho é o mais apreciado. Damo-lo por inteiro no lugar competente. Nele se pode bem estudar a fusão já adiantada em certo ponto dos costumes das três raças que constituem o grosso de nossa população. Também dali transpira certa dureza de costumes, própria dos pernambucanos rústicos, que, com o gosto pela liberdade é uma das heranças que lhes ficaram de seu contacto e lutas com os holandeses

No Lagarto, em Sergipe, no dia de Reis celebra-se a festa de S. Benedito e apreciam-se então ali dois folguedos especiais, o dos Congos, que é próprio dos negros, o das Taiêras, feito pelas mulatas.

Os Congos são uns pretos, vestidos de reis e de príncipes, armados de espadas, e que fazem uma espécie de guarda de honra a três rainhas pretas.

As rainhas vão no centro, acompanhando a procissão de S. Benedito e de Nossa Senhora do Rosário, e são protegidas por sua guarda de honra contra dois ou três do grupo, que forcejam por lhes tirar as coroas. Tem um prêmio aquele que consegue tirar uma coroa, o que é vergonha para a rainha. Os da guarda cantam:

"Fogo de terra,
Fogo de mar,
Que a nossa rainha
Nos há de ajudar, etc."

As Taiêras são mulatas, vestidas de branco e enfeitadas de fitas, que vão na procissão dançando e cantando com expressão especial e cor toda original.

Os versos, onde se conhece a ação burlesca da raça negra, dizem:

"Meu S. Benedito
Não tem mais coroa;
Tem uma toalha
Vinda de Lisboa...
Inderé, ré, ré, ré...
Ai! Jesus de Nazaré! etc."

A música é puramente brasileira. Em Pernambuco, pelo Natal, costumam armar as chamadas Lapinhas. São nichos representando o presepe onde nasceu Jesus.

Há então aí a função das pastorinhas, que são mulatas ou negras, na primeira flor da idade, enfeitadas de capelas e que dançam e cantam, acompanhadas um negralhão vestido burlescamente, a tocar pandeiro.

O começo das trovas diz:

"Vinde, pastorinhas..
Vinde a Belém,
A ver se é nascido
Jesus Nosso bem, etc."

Noutras províncias temos presenciado presepes; mas sem a função das pastorinhas. Para melhor concatenação de idéias, e pela necessidade de só afirmar aquilo que temos visto e estudado de perto, é que vamos referindo as descrições das festas populares às localidades, onde as apreciamos. Temos porém as mais completas provas, no testemunho de pessoas insuspeitas, de que por todas as províncias do Brasil as janeiras foram muito populares e concorridas.

Em Parati, na província do Rio de Janeiro, a festa mais célebre é a do Espírito Santo. Nesta manifesta-se a instituição popular do Imperador da festa. Assim é chamado o festeiro, aquele que faz as despesas da folgança.

No dia da festividade este indivíduo é conduzido de sua casa para a igreja entre duas varas enfeitadas. que são levadas por algumas pessoas gradas.

Há um costume análogo em S. Paulo e Mato Grosso.

Cumpre ponderar que nota-se uma apreciável decadência em todas as folganças e festividades populares. A tradição as dá muito mais frequentes e animadas há trinta ou quarenta anos passados.

Não deixam de ter contribuído para isto, além de outras causas, a moderna intolerância dos vigários e o zelo anti-estético dos delegados de polícia.

Além das duas categorias de festas de que acabamos de falar, há uns brinquedos particulares e, por assim dizer, íntimos do povo. Naquelas ele exibe-se em público, nas praças e ruas e anda meio recatado. Nos sambas, xibas, batuques e candomblés é que o povo excede toda expectativa.

Vamos ver despontar o manancial mais fecundo da poesia popular. A viola e o entusiasmo, o canto e os ardores da paixão, eis a dupla origem da grande torrente.

Chama-se xiba na província do Rio de Janeiro, samba nas do Norte, cateretê na de Minas, fandango nas do Sul uma função popular da predileção dos pardos e mestiços em geral, que consiste em se reunirem damas e cavalheiros em uma sala ou num alpendre para dançar e cantar. Variadas são as tocatas e as danças. Ordinariamente porém consiste o baile rústico em sentarem-se em bancos à roda da sala os convidados, e , ao som das violas e pandeiros, pular um par ao meio do recinto a dançar com animação e requebros singulares o baiano ou outras variações populares.

O baiano é dança e música ao mesmo tempo.

Os figurantes em uma toada certa têm a faculdade do improviso em que fazem maravilhas, e os tocadores de viola vão fazendo o mesmo, variando os tons.

Dados muitos giros na sala, aquele par vai dar uma embigada noutro que se acha sentado e este surge a dançar.

O movimento se anima, e, passados alguns momentos, rompem as cantigas populares e começam os improvisos poéticos.

Aí se exerce uma força verdadeiramente prodigiosa e os cantos inspirados por motivos de ocasião sempre com vivíssima cor local, ou varrem-se para sempre da memória, ou, decorados e transformados, segundo o ensejo, vão passando de boca em boca, e costituindo esta a abundante corrente de cantos líricos que esvoaçam por toda extensão do Brasil.

O baiano é um produto do mestiço; é uma transformação do maracatu africano, das danças selvagens e do fado português.

Nas danças, músicas e poesias populares dão-se também as leis da seleção natural.

Adaptadas a um novo meio, modificam-se produzindo novos rebentos ou novas vidas. O baiano é exemplo.

E' mestiço de origem, prevalecendo ainda nele o elemento africano, que, por mais que o queiramos esconder, predomina ainda em nossas populações, que se podem chamar do terceiro e quarto estado.

Se nas repúblicas espanholas o cruzamento mais vasto foi do europeu com o índio, no Brasil foi do branco com o negro, predominando até agora as formas escuras nas classes desfavorecidas.

Feita a estatística real, e não a presumida, da população brasileira, se há de notar que o número de mestiços excede ao de brancos puros, índios puros e negros puros, e que naqueles a impressão do preto é a mais viva.

O baiano é uma especialidade brasileira; ele e o vatapá e o caruru, também implantações africanas transformadas, são as três maiores originalidades do Brasil.

A modinha é uma implantação da serranilha, como já foi por vezes demonstrado, e é para nós menos original.

Adaptada a este solo, quando foge no verso e música dos modelos convencionais, adquire também um grau pronunciado de originalidade.

Chega a este ponto quando ao elemento português agregam-se os outros, porque o genuíno brasileiro, como já dissemos, o nacional por excelência, não é, como alguns hão afirmado erroneamente, este ou aquele dos concorrentes, mas o resultado de todos, a forma nova produzida pelos três fatores.

Outro ensejo para apreciar-se a evolução da poesia popular é observar o povo no seu trabalho.

Estamos de acordo com Gustavo Freitag, o célebre romancista alemão: "mais do que em suas superstições e festas, que são o seu lado excepcional, devemos estudar o povo no seu trabalho, que é a sua face constante e normal."

Profundas palavras, que, se fossem meditadas por nossos romancistas, não teriam estes povoado o nosso mundo literário de criações e tipos quiméricos, aéreos, nulos...

O povo, em verdade, deve de preferência ser observado na sua laboriosa luta pela vida.

Ele então canta, e o seu cantar é másculo e sadio.

Entre nós temo-lo observado por vezes. Ou nos grandes eitos lavrando a terra, ou deitando matas ao chão, ou nos engenhos no moer das canas e na preparação do açúcar, sempre o trabalhador vai cantando e improvisando. E' o cantar elogio ou cantar ao desafio, expressões de alegria usadas em Pernambuco. Em Sergipe chamam arrazoar ao cantar versos de improviso.

Esta expressão é também significativa. Há ali, como em outras províncias, onde o trabalho é mal organizado, um original costume: um roceiro, que tem um serviço atrasado, roçagem, plantação ou colheita, convida os vizinhos para o ajudarem a levar avante o eito; acedendo estes, forma-se o que chamam no Rio de Janeiro potirão ou potirum. O potirum, expressão africana, dura às vezes dois e três dias. E' um trabalhar livre e galhofeiro ao som de cantigas. Também o fazem para tapagens de casas, e as mulheres o empregam na fiagem do algodão.

Trabalha-se, bebe-se e canta-se. Isto é nas populações agrícolas das matas; nas criadoras dos sertões observam-se os mesmos costumes com as indispensáveis alterações.

Os vaqueiros usam do célebre aboiar, e alguns dos nossos romances e xácaras mais originais, como o Boi Espácio, o Rabicho da Geralda, a Vaca do Burel, têm esta origem.

Os homens da costa e das margens dos grandes rios, e que passam parte da vida em canoas, também são um dos órgãos de nossa poesia popular. No remar vão arrazoando. Tivemos repetidas ocasiões de observar e entrar nestes cantos ao desafio, onde embalde procurávamos acompanhar os bardos incultos. Em prontidão de improviso éramos sempre ultrapassados por eles.

As adivinhações, ditados, folguedos de crianças, e saúdes são outras fórmulas da sabedoria e poesia popular. Os folguedos de criança e saúdes foram por nós descritos em nosso livro Estudos sobre a Poesia Popular Brasileira, para onde enviamos o leitor. Quanto aos ditados e adivinhações daremos aqui alguns espécimens mais vulgares.

Ditados: "Quem nasceu pra dez réis nunca chega a vintém. De hora em hora Deus melhora... Quem tem dó de angu não amarra cachorro... Quem quer pegar galinha não diz chô... Quem planta e cria, tem alegria... Lua nova trovejada trinta dias de molhada... Em abril águas mil... Fazer bem não cates a quem... Onde me conhecem honras me dão, onde não me conhecem me darão, ou não... Os bens do sacristão cantando vêm, chorando vão... Deus quando tarda, vem no caminho... Água mole em pedra dura tanto dá até que fura... Macaco velho não mete a mão em combuca..."

E' evidente a origem portuguesa de alguns e a transformação mestiça de outros.

Adivinhações: assim chamam-sé umas espécies de charadas propostas para se lhes descobrir o sentido. Exemplo:

"Caixinha de bem querer, todos os carapinas não sabem fazer." E' o amendoim, ou mandubim, como chama-o o povo.
"Casa caiada, lagoa d'água." E' um ovo. "Campo branco, sementinhas pretas." E' uma carta.
"Branco e não é papel, verde e não é mar, vermelho e não é sangue, preto e não é carvão." A melancia, ou balancia, como diz a plebe.
"Branquinho, branquinho reviradinho." O beiju ou biju.
"Garças brancas em campos verdes, com o bico nágua morrendo à sede." E' um navio.

Há algumas muito expressivas e engraçadas; outras em estilo picaresco, que o povo muito aprecia.

Nossas populações têm, como é natural, ainda uma larga porta aberta para o maravilhoso. Nos tempos coloniais a Bahia, a antiga capital, a sede de governo, era uma espécie de ponto de aventuras. Ainda hoje para as populações rústicas das províncias circunvizinhas a cidade suprema e a suprema longitude é a Bahia. No brinquedo do anel se diz: "Quando eu fui para a Bahia, a quem deixei meu anel?"

Nas poesias e contos populares fala-se muitas vezes na Bahia. Existem além disso certas localidades a que se prendem lendas próprias. Em todas as províncias repete-se o caso. Em Sergipe as serras da ltabaiana, da Miaba e a Furna de Simão Dias são a sede de riquezas fantásticas.

Na de Itabaiana aparece, às vezes, diz a lenda, um carneirinho de ouro, e na da Miaba um caboclinho de prata. Na Furna de Simão Dias, subterrâneo próximo à vila deste nome, dão-se visagens e encantamentos especiais. No Ceará o Boqueirão das Lavras da Mangabeira e a Serra do Araripe contêm riquezas prodigiosas e legendas análogas. E assim por todo o Brasil.

Por outro lado, ainda o nosso povo tem costumes sanguinários, como todas as gentes educadas sob o regime militar e que começam apenas a suavizar-se. Os assassinatos repetem-se ainda em larga escala.

No tempo da Regência o bacamarte fez proezas em quase todas as províncias, máxime nas de Pernambuco, Ceará, Maranhão, Piauí e Bahia, onde reinavam chefes déspotas, ridícula e ferozmente estúpidos.

Em Sergipe o fato era também uma verdade. Diz uma testemunha ocular: "Então a província, além da bancarrota que haviam feito os cofres públicos, era ainda martirizada pelos assassinatos com tanta imoralidade, que os assassinos cruzavam os povoados, vilas e cidades, decidindo da sorte de seus habitantes, por tal forma, que o povo ironicamente os denominava — chefes de polícia".

Raros eram por toda parte os fazendeiros e senhores de engenho que não tinham os seus guarda-costas e capangas, que serviam para assassinatos e para pleitear eleições.

Os capoeiras, que ainda hoje existem nas maiores cidades, sobretudo na do Rio de Janeiro, consta serem uma espécie de instituição política, sob as ordens de grandes magnatas.

Com eles é que se veda o ingresso dos adversários nos comícios em dias de eleições e obtém-se a vitória das urnas.

São uma troça ambulante dividida em diversas maltas nas diferentes freguesias da capital. Cada malta tem seu chefe, que obedece por sua vez a um chefe geral. Os capoeiras usam de navalhas como armas e sabem um jogo de pulos, pontapés e cabeçadas todo original. Um bom capoeira bate dez homens.

O país, apesar de algumas instituições democráticas, ainda conserva fundas distinções sociais.

No tempo da independência subsistiam e ainda eram convocados os três estados.

Em 1821 em Sergipe o governador da capitania, Cesar Burlamaqui, recebendo uma intimação do governador da Bahia para aclamar ali a constituição, mandou convocar uma reunião do clero, nobreza e povo.

"A nobreza, diz uma testemunha verídica, era representada pela câmara e por todas as pessoas que haviam servido os cargos da governança das vilas e cidades, como fossem juizes, vereadores, oficiais das ordenanças e de segunda linha, e o povo era representado pelos homens bons e abastados que não pertenciam àquela hierarquia."

Não tínhamos, nem temos, como se vê, uma aristocracia histórica e de direitos adquiridos; mas ia ela sendo criada aos poucos e viciadamente.

O clero goza ainda de direitos privilegiados, e o povo propriamente dito, espécie de felás do Egito, é tratado como um animal de carga.

Ainda assim, a despeito de todos os nossos males e defeitos, existe entre nós uma mole imensa de poesias populares. Predominam os cantos líricos, como acontece na Itália moderna.

Apenas mais uma consideração para concluir esta síntese.

As canções líricas que coligimos são anônimas. A par destas existe a poesia bárdica popularizada, máxime política. São canções que têm origem individual, mas de que as massas se apossaram. No número delas contam-se as célebres modinhas, tão apreciadas pelos europeus. Não as coligimos por estarem fora do nosso plano. Alguns portugueses, que de nossa poesia popular só conhecem as rnodinhas, que não são em rigor de origem anônima, dizem que por meio delas este país, quando colônia, chegou a influir na literatura da metrópole.

O fato parece exagerado, porquanto no século passado, época a que se referem os críticos portugueses, ao passo que nossa literatura aproximava-se da natureza com Dirceu, Basílio e Durão e com as modinhas, a literatura da metrópole era toda postiça e contrafeita. Os ouvidos lusitanos foram surdos à lição dada por nossos poetas, verdadeiros precursores do romantismo nas raças neo-latinas, e que eram tidos por bárbaros para aqueles pretendidos civilizados e o nosso influxo benéfico deixou de ser uma realidade. Ao contrário, sofremos nós outros a impressão deletéria das letras portuguesas da época.