Carta de guia de casados/As ministras
LII
Dão muitas destas senhoras mulheres de ministros, com grande risco de seus maridos, e casas, em quererem ser elas ministras também como êles. A três pontos se reduzem êstes inconvenientes : Interceder pelos que pretendem, negociar com os despachados, revelar segredos aos negociantes.
Não sei qual é pior. Afirmo que tudo é péssimo para a opinião dos ministros, cujas mulheres se deixam levar do aplauso, interêsse, e ambição. Tenho em meu poder a cópia duma carta de Carlos V para D. Filipe seu filho, quando em uma de suas jornadas o deixava governando, e instruía dos sujeitos que lhe dava por ministros ; e chegando a um, de quem não tinha tôda a satisfação, diz estas palavras : Fulano era el mejor de todos, si fuera eunuco ; porque la mujer deshace en aquel hombre las mejores partes que he visto.
Nas mulheres de ministros de justiça é mais perigoso êste costume. Mas porque os de estado são pessoas maiores, quando neles se acha êste defeito, é mais notável ; ou quiçá que o não é tanto nos primeiros, por ser mais ordinário. Ao que aludia um cortesão, que, pegando-se o fogo em casa de um ministro de justiça pouco escrupuloso, ia dizendo pelo caminho: Acudamos, senhores, à nossa fazenda, que se nos queima.
Queixava-se um requerente a outro de que um seu juiz, sendo pobre, gastava como rico: e nomeando suas ostentações, rematava com dizer: ¿ Pois isto, senhor, de que sai ? E outro lhe respondia: Do que entra. Tornava o queixoso, e dizia: Senhor, não fizeram isso seus passados ; e outro respondia : Não, senhor, mas fazem-no nossos presentes.
Costumam as mulheres de alguns ministros, pela própria razão que se houveram de abster, e ajudar com grande tento a levar aquela carga a seus maridos, ocasionar-lhes seu precipício, carregando-os de novo com suas desordens, e vindo depois com êles a terra.
Deve o marido começar por si mesmo no cuidado que é bem que tenha de sua conservação. E pois é certo que ao próprio sangue, em que nossa vida consiste, lançamos das veias, se se corrompe, porque não apodreça o outro que nos fica, quanto mais se deve sangrar a ambição, ou interêsse, se na mulher fôr conhecido, que em breve tempo ameaça corrupção à saúde do corpo, e da família: morte da casa, do ofício, e da conveniência ?
Confesso que fôra lícito à senhora mandar sua encomenda, fazer ao marido esta, e aquela lembrança por um, ou por outro pretendente, e ainda favorecer a algum que o merecesse, dando-lhe uns longes de seu negócio, com que lhe pudesse dar remédio. Mas como estas cousas sejam de seu natural perigosas, poucas vezes acontece que nelas se obre sòmente o lícito. Contentára-me com que a pena do desconcêrto se ficára com o autor dêle ; mas não é assim ; antes, da inconsideração da mulber é o marido sempre (sem ser o fiador) o principal pagador.
Havia em Castela um ministro dos que vou dizendo ; era pouco limpo, ainda que mui asseado ; mercadejava a mulher, e ganhava sempre ; êle dizia, quando lhe gabavam suas alfaias: Muchas gracias à la industria de dona Clara. E o certo era, que a indústria era clara com que D. Clara se aproveitava de sua indústria.
Passando ás Índias um mercador, lhe foi dada certa encomenda da mulher de um ministro ; e acertou o pobre de se perder, e perdê-la, com todo seu cabedal. Tornou a Espanha, e à côrte ; e não lhe sendo recebida em desconto a perdição, houve tal violencia no caso, que lhe fizeram pagar aquela encomenda com ganhos, e cabedais, como que não pudesse ser perdida como as outras. Voltou a Sevilha, e topando a outro mercador seu amigo, lhe perguntou aonde ia, e havendo-lhe dito que à igreja maior, a segurar com Deus, e com os homens de negócio, certa grande partida de fazenda que esperava de fóra, então lhe disse o queixoso: Andad, señor, y no hagais tal ; mejor es encomendarla a mi señora D. fulana, que toda la saca a puerto de salvacion.
Mas porque toquei arriba àcêrca dos segredos que as mulheres costumam revelar dos ofícios de seus maridos ; a propósito virá agora tratar desta matéria, assaz essencial para o descanso do matrimónio.