Carta de guia de casados/Casamento por conveniência

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VI


Casamento por conveniencia


Houve quem duvidasse, se podia ser perfeito a amor entre aqueles que por conveniências, e por concertos se casavam : entendendo que esta perfeição de querer, só se guardava para os que casavam por amores. A que se referia um galante, que convidando-o uma sua parenta para que casasse por concertos, lhe deu por resposta : Senhora, não me obrigo a amar ninguém per fé de escrivão, senão pela minha.

De uma, e de outra cousa não faltam bons, e maus exemplos ; mas eu que sou mais amartelado da razão que do caso, direi com alguma novidade o que se me oferece.

Persuado-me, senhor N., que esta cousa a que o mundo chama amor, não é só uma cousa, porém muitas com um próprio nome. Poderá bem ser que por isto os antigos fingissem haver tantos amores no mundo, a que davam diversos nascimentos ; e também pode ser venha daqui, que ao amor chamemos amores ; pois se êle fôra um só, grande impropriedade fôra esta.

Eu considero dous amores entre a gente. O primeiro é aquele comum afecto com que, sem mais causa que sua própria violência, nos movemos a amar, não sabendo o que, nem o porque amamos. O segundo é aquele, com que prosseguimos em amar o que tratamos, e conhecemos. O primeiro acaba na posse do que se desejou; o segundo começa nela : mas de tal sorte, que nem sempre o primeiro engendra o segundo, nem sempre o segundo procede do primeiro.

Donde infiro, que o amor que se produz do trato, familiaridade, e fé dos casados, para ser seguro, e excelente, em nada depende do outro amor, que se produziu do desejo do apetite, e desordem dos que se amaram antes desconcertadamente ; a que, não sem erro, chamamos amores, que a muitos mais impeceram que aproveitaram.

Parecerá dificultoso o considerar, como à pessoa que não havemos visto poderemos amar com perfeição. Larga é a disputa, e não daqui. Digo eu que façamos, senhor N., neste caso, como os que cortam madeira, e a lançam ao rio, para que sua corrente lha leve (sem algum trabalho) ao pôrto. Êles não sabem por onde vai sua mercadoria, mas basta-lhes saber, que ela chega a salvamento, por outras que já tem chegado, para que a entreguem às águas com muita confiança.

Deixe-se levar a casado do poder daquele virtuoso costume ; não lute, não forceje com a corrente, que quando menos o espere (e sem saber o como aquilo foi) êle se achará amando a salvamento a sua mulher, e sendo dela muito seguramente amado.

Dê-se-lhe a entender a mulher, que a cousa que mais deve querer é a seu marido. Tenha o marido para si, que a cousa que mais deve querer é sua honra, e logo sua mulher.

Diz um antigo ditado : Quem não tem marido não tem amigo. Diz outro : Quem tem mulher tem o que há mister. E na verdade assim é entre os bons casados ; e os rifões, senhor N., sentenças são verdadeiras, que a experiência, suma mestra das artes, pronunciou pelas bôcas do povo.

Mas porque sucede que ser embargo de tôdas as mêzinhas receitadas, quando Deus nos quere castigar com a pena, e injúria de encontrarmos com uma condição avêssa, a mulher luta por sustentar-se em seus desmanchos : discorreremos aqui pelos vários géneros de ruins qualidades, que acontece haver nelas, para que todos se possam aplicar os remédios convenientes ; mas nem por isso se espere que de tôdas se consiga a melhoria.