Carta de guia de casados/Sogras, noras, genros e cunhados

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LIV


Sogras, noras, genros, e cunhados


Não é pouco, nem pouco proluxo, o que se tem discursado. Cada ponto quisera já que fôra o último ; mas com licença de v. m. não me haverei de despedir sem falar em sogros, e sogras, noras, e genros, cunhados, e cunhadas.

Êstes soem ser uns mal-estreados parentescos. Certo que já me pus a filosofar comigo sòmente, sôbre a causa desta desavença ; e outra não posso achar, salvo aquela que em outra diferente causa deu o mestre dos políticos, dizendo : Que aos grandes eram agradáveis as obrigações, enquanto as podiam pagar ; mas como cresciam mais, ainda em vez de amor causavam ódio.

Julgo que é tamanha a dívida que se tem aos sogros, e êstes aos genros, uns a outros os cunhados, tanto o amor que se deve a pessoas tam conjuntas, que porque se não pode pagar, se converte em aborrecimento.

Bem o mostra o estilo, que nos ensina, vendo chamar pais aos sogros, filhos aos genros, aos cunhados irmãos. Quanto é aqui, assaz está expressa a obrigação ; mas assaz mais expressa a ingratidão dêstes, e aqueles, pelo que estamos vendo.

Queixava-se uma senhora viúva da grande amizade que tinha um seu filho com certo fidalgo, em que a ela parecia não ganhava êle muito ; de que recebia desgôsto. Entrou-lhe por casa um criado pedindo alviçaras ; e perguntando-lhe de que ? respondeu : De que meu senhor quebrou já com fulano, porque lhe casa com uma filha.

Como me não encarreguei de dar a razão, só procurarei dar o remédio para que nunca tal abuso se pratique.

Diga-me v. m. Se um homem lavrasse com grandes despesas uma quinta, durasse nesta obra muitos anos, gastasse nela seu tempo, e sua fazenda, lhe saísse em tudo perfeita, e logo, ela acabada, se fôsse a casa de v. m. e lhe desse aquela propriedade, lhe vinculasse outras, e de tudo o metesse de posse, ¿ que faria v. m. ? ¿ Que digo eu ? v. m. ? ¿ Que faria a mais ingrata pessoa do mundo, senão venerar, amar, regalar, e servir a aquele homem, confessar-se por seu escravo, por seu devedor, por seu perpétuo amigo ?

Pois que faz menos, ou que não merece mais, aquele que cria por tantos anos a filha, a doutrina, guarda, e aperfeiçôa ; e depois repartindo com ela seus bens, e entregando ametade da sua alma, mete todo êste tesouro na mão a outro homem, a quem porventura antes nada devia ?

Trarei para exemplo de bons sogros o que sucedeu quási entre nós, e quási em nossos tempos. E foi, que havendo um homem rico casado uma sua filha com um fidalgo honrado, e querendo casar outra com outro, em nada maior que o primeiro ; êste segundo não quis fazer o casamento sem que lhe dessem em dote mais dez mil cruzados do que ao outro havia dado; e como o sogro dissesse, que teria grande causa de queixa o primeiro genro, dando êste mais ao segundo, e lhe não valesse esta razão para efectuar o último casamento ; houve enfim de convir nêle, e efectuá-lo com tal galantaria, e primor, que no próprio dia, que assinou as escrituras ao segundo genro, mandou outros dez mil cruzados ao primeiro, dizendo-lhe, que não queria que houvesse alguêm que cuidasse o estimava a êle menos.

Por certo que não vi, nem ouvi cousa mais galante, e honrada. E porque se veja que também há genros que o sabem ser como devem, contarei a v. m. outro caso que bem o prova.

Havia, não há muitos anos, em certo logar uma pessoa riquíssima, com uma só filha herdeira para casar: afeiçoou-se sua mãe a um seu natural de bôa qualidade, mas não muita fazenda ; mandou-lhe dizer que estava tam satisfeita de sua pessoa, que lhe queria dar as melhores duas peças que tinha em sua casa ; quais eram, sua filha por mulher, e com ela tudo quanto tinha. Respondeu-lhe o genro, que não seria razão que a quem tanto lhe queria, e a quem êle devia tanto, despojasse de todos os seus bens em uma só hora ; que a filha receberia por espôsa, com condição que lhe não havia de dar mais da ametade do que lhe prometia.

Bem vejo que êstes exemplos são muito bons para escritos, mas não são tais para praticados ; e disso mesmo é a minha queixa. Enfim eu satisfaço a minha obrigação, mostrando como não é impossível esta devida amizade. Malditos sejam os interesses ! Que êles tem a culpa de que ela não prevaleça ; porque de ordinário acontece que aqueles queixumes de sogros, e genros, tudo funda em — sim me deu, não me deu. Grande descanso viera ao mundo, se todos nos contentáramos com o possível ; mas isto é querer outro mundo.

Tenho por bôa a amizade, e a companhia dos cunhados, quando êles sejam para amigos, e companheiros ; quando o não sejam, nem por isso os excluo do trato, e conversação. Deve-se neste caso fazer distinção dos maus aos ignorantes. Ainda que o cunhado não seja águia, se deve admitir ; e antes a êstes com maior causa, porque os outros se lhes não atrevam. Mas ainda que seja águia aquele que mal procede, se deve desviar com todo o cuidado ; se quer porque não pareça que em suas obras se consente.

Já ouvi murmurar, e não sei certo se murmurarei eu também, de alguns que casando se apartam dos amigos que tinham antes, e de todo se entregam à parentela de suas mulheres. Isto é condenável ; e se vê mais certamente naqueles que a elas cegamente se lhes entregam.

Andava um noivo sempre entre dous cunhados seus, que nem largava, nem o largavam. Passava às vezes por um seu amigo do tempo de solteiro, a quem tratava com estranheza. Êle queixoso lhe disse um dia : Peza-me, senhor fulano, que a senhora D. fulana tenha tam pouca confiança da fé de v. m. que o não deixe andar pela cidade sem familiares.

Também não será razão que nos passe por alto a prática de um acidente, não poucas vezes sucedido entre casados ; como agora digamos uns descontentamentos, ou arrufos, que passam com nome de escândalos entre a mulher, e seus parentes, agora sejam do marido, agora seus próprios.

Tudo isto costuma proceder de leves causas. E como ordináriamente as vinganças das mulheres não são grandes, por isso são mais as queixas, que dão causa a desconfianças, e ruins vontades, com grande cargo do primor, e às vezes da consciência ; porque debaixo de um, eu sou sua amiga, está enroscado um ódio como uma serpente.

Há homens que tem por grande siso o não terem parte nestas contendas. Tal não aprovo, porque, além de que ao marido por sua dignidade toca a justificação das acções de sua mulher, ou a emenda, também lhe pertence a direcção delas ; e mais na sua amizade, ou inimizade : assim como ao rei pertence a guerra, ou paz feita por seu vassalo. Fôra de parecer que nos casos miúdos (que êstes são os mais) um pouco se dissimulára. Porque, senhor N., aí há um desconcertar de braço, ou pé, com que é fôrça acudir ao algebrista, e outro que quanto mais bólem com êle mais o desmancham. É carne quebrada, que ela por si mesmo solda quando lhe parece.

Quando a dúvida passasse muito adiante entre a mulher, e seus parentes, e parentas, e pudesse ser pública, e escandalosa, ou assim o ameaçasse ; obrigado seria o marido a interpôr-se em meio, e acordar tudo.

Isto se faz melhor, tratando-se com o próprio marido da parente (se o tem) ou já ofendida, ou já agressora. E ainda que seja levantando-lhe um par de testemunhos a ambas as agravadas, e dizendo a cada uma que a outra a roga (cousa de que elas muito se satisfazem) é conveniente acomodá-las, e fazê-las amigas.

Mulheres há, e não poucas, que nisto são tenazes, e duríssimas de reduzir de seus pontos, ou caprichos. Sem embargo, razão é que os maridos as encaminhem à razão, e lhes façam certo que elas é bem que sigam o seu parecer dêles ; pois à sua conta dêles está sua honra, e crédito delas.

Quando, feita a diligência prudente, e necessária, não bastasse, tam pouco serei de opinião que um homem esteja mal com sua mulher porque ela não está bem com a outra.