Carta de guia de casados/Viagens
XLIX
Não me posso escusar de dizer duas palavras a uns certos casados, que tôda a sua ânsia, e desejo é andarem sempre ausentes de sua casa, em viagens e jornadas, umas para que êles se convidam, outras de que se não desviam : deixando as mulheres môças, e às vezes bem desamparadas de todo o resguardo que lhes é devido. Êstes costumam dizer, que por buscar pão, e honra se ausentam ; e não poucas vezes vimos que em tais demandas se perde de contado a fazenda, e não poucas vezes se arriscam cousas que valem mais que ela. As mulheres casam para serem casadas. É o contrário não entender cada um sua obrigação.
Falava uma viúva com um homem um dia, que sabia que ela era viúva, e ela dizia-lhe : Senhor, eu nunca casei, vêde vós como posso ser viúva. Replicáva o outro, que sim o era, porque conhecera em tal parte o senhor fulano seu marido ; e ela tornara : Senhor, digo-vo-lo porque eu casei por procuração, e fui casada por carta ; e isto não é ser casada. E era assim, que pelas ausências de seu marido apenas o conhecêra.
Se estamos sós, senhor N., hei-de contar a v. m. uma história de mancebo, que ouvi em Barcelona. Havia ali um fidalgo casado de pouco, cujo nome era Mosen Gralha. Passou o imperador Carlos V para Itália, e o seguiu êste catalão a despeito de sua mulher môça, formosa, e honrada. Engolfou-se o marido em serviços, e esperanças, e não fazia conta de vir tam cedo. Enfadava-se a mulher, e lhe requeria muitas vezes que viesse ; mas desesperada já da vinda, dizem que lhe escreveu em catalão estas palavras : Mosen Gralha, Mosen Gralha, mon amor non manja palha. Tomou o soldado a carta, levou-a ao imperador que lha interpretasse ; o qual conhecendo o que queria dizer (que é fácil de conhecer-se), e fazendo-lhe mercê, gabou a confiança, e discrição da mulher, e mandou para sua casa seu marido.
Mosteiros, recolhimentos, e outros resguardos semelhantes, em que os homens depositam suas mulheres, não deixam de ser arriscados ; e de-certo, quando a ocasião não seja muito urgente, é usar com as mulheres ruim lei, e faltar-lhes com a fé, e companhia devida ; porque se cada uma daquelas quisera ser freira, bem escusara de se casar.
Advirta-se todo o casado, que no ausentar-se por longo tempo de sua casa tenha muito tento ; e seja raro o interêsse porque assim o faça. Disputável foi entre os políticos, se convinham, ou não os capitães casados, ou solteiros. Dissera eu aos reis, se falara com êles, que para as conquistas, e guerras ofensivas que se fazem em províncias distantes, buscassem os solteiros ; porque pela liberdade se arriscam ; e por virem a descansar na pátria, e buscar espôsa, abreviam mais as empresas, e são menos custosos na vida, e na morte a seus senhores. Ao contrário, para dentro de sua província, e na guerra defensiva, prefiram os casados aos solteiros nos postos militares ; porque por defenderem a mulher, filhos, e honra dêles, costumam os homens obrar maiores feitos, que por benefício de sua própria vida.
O mesmo, que aconselhara aos reis para com os vassalos, aconselhara aos vassalos para com os reis. Assim nas eleições, assim nas pretenções.
¿ Passa v. m. por isto ? Que me ia eu agora me tendo em políticas, e cousas de estado sem me sentir ! Lá se avenham os que mandam o mundo. Com licença de v. m. quero fazer minha volta, e vir-me do pégo para a terra.