Saltar para o conteúdo

Cartas de Inglaterra (Eça de Queirós)/XII

Wikisource, a biblioteca livre

XII

Uma partida feita ao «Times»


É ao mesmo tempo lamentavel e piccaresco o caso succedido ao Times. Este nobre in-folio diario, que inspira orgulho a todo o inglez sinceramente patriota, e que aos olhos respeitosos do estrangeiro apparece como uma das mais fortes columnas da sociedade ingleza, como a propria consciencia da Inglaterra posta em lettra redonda; este augusto periodico que nunca, desde a sua fundação, citou o nome d’um collega, nem jámais se abaixou a uma controversia, pelas mesmas razões de inflexivel etiqueta que vedariam a Luis XIV argumentar com Colbert; esta austera gazeta que preferiria despedaçar as suas magnificas machinas a consentir que ellas imprimissem um bon-mot, uma pilheria, uma linda bagatella ou uma jovial anecdota; este papel tão pudico que evita o nome de Zola, como uma indecencia — o Times, emfim, o venerando Times, foi ultimamente victima de uma d’essas partidas, como nós dizemos, facecias em acção, como dizem os Americanos, que são ao mesmo tempo nefandas e patuscas, que nos abrazam a face de indignação e nos arrancam aos labios um sorriso, que nos fazem vituperar publicamente o farçante e saborear secretamente a farça, como se vissemos um rabo de papel pregado ao manto d’el-rei, ou sobre os cabellos em caracoes da imagem do Senhor dos Passos — um chapéu alto.

Todas as pessoas que teem folheado esses vastos lençóes de materia impressa que constituem um numero do Times, sabem que a quinta pagina é ordinariamente destinada á publicação dos discursos pronunciados por homens eminentes da politica, da litteratura, da sciencia, da arte, em meetings, comicios, banquetes, inaugurações, conversazioni, em todos esses ajuntamentos de ladies and gentlemen onde a Inglaterra dá vazão ao seu tumultuoso fluxo labial!... O Times é famoso por estas reproducções. Não são resumos, nem extractos: são as arengas, palavra a palavra, especialmente tachygraphadas para o Times por um pessoal experimentado, com as interrupções correctamente transladadas, os murmurios religiosamente marcados, sem que lhes falte um meus senhores!, sem que ficasse perdido um oh! ou um ah! e revistas, esmiuçadas, zeladas como se tivessem cahido dos labios de Socrates ou de Christo prégando outro Evangelho.

Este simples serviço custa por anno ao Times milhares de libras — mas dá-lhe a vantagem de ser elle a acta official do verbo publico da Inglaterra. Todos os jornaes da Europa assim o reconhecem: quando se discute um discurso do Sr. Gladstone, uma conferencia do professor Huxley ou uma predica do arcebispo de Canterbury, tem-se presente, como texto sagrado, o texto do Times. Um orador póde negar a incorrecção de um adjectivo, a violencia de uma apostrophe, quando a apostrophe ou o adjectivo tenham apparecido nos resumos rapidos de outro jornal: nunca, quando hajam apparecido nas columnas infalliveis do Times. Sabe-se a despeza, o desvelo, a minuciosidade, empregada para obter a exactidão — e essa exactidão nunca é contestada.

Quando o Sr. Gladstone, na campanha eleitoral da Escocia, soltou essa famosa invectiva contra o imperio dos Hapsburgos, — o protesto cortez do embaixador d’Austria era fundado em citações do Times. Um orador que, querendo deixar um monumento solido da sua arte, publique os seus discursos em volumes — collige-os do texto seguro do Times. O Times tem aqui o valor d’uma reproducção photographica. Insisto n’isto, para tornar mais vivo o horror da facecia.

Ha semanas Sir William Harcourt, o ministro do interior, fez um discurso em Manchester, discurso consideravel, muito annunciado, muito esperado, tocando todas as questões que inquietam agora a Inglaterra, a anarchia da Irlanda, o tratado de commercio com a França, a intervenção no Egypto, a criação do Governo Municipal de Londres, outras coisas graves ainda.

Esta arenga, tachygraphada pelo pessoal do Times em Manchester, telegraphada para os escriptorios do Times em Londres, foi composta, lida pelos revisores, revista pelo secretario de Sir William Harcourt, verificada, comprovada, relida ainda, e, emfim definitivamente installada na sua pagina... E aqui se colloca a facecia.

Mas é necessario primeiro, para maior indignação e maior goso, conhecer Sir William Harcourt. De todos os membros do ministerio Gladstone, Sir William é o mais austero. Já a sua apparencia intimida: grosso, membrudo, de hombros compactos, com a face imperiosa, pallida, rapada, Sir William tem as linhas solemnes e marmoreas do busto de um Cesar.

E dentro d’esta fórma romana habita um espirito rigido de doutrinario: liberal (em comparação com o marquez de Salisbury, que é quadradamente feudal), Sir William representa no Governo a tradicção, a formula whig. É o contrapeso conservador d’este ministerio radical: está alli como um bloco de granito constitucional para impedir que os outros ministros, Chamberlain, Sir Charles Dilke, os discipulos de Stuart Mill, se adiantem muito pela grande estrada da Revolução: e tem por isso essa ampla solemnidade de maneiras, essa cadencia pomposa de expressão, de quem se honra em guardar as coisas supremas — a corôa, a egreja, a aristocracia territorial, os privilegios, a integridade do imperio... É um solemne. Mesmo abotoado n’um paletot, parece embrulhado n’uma toga. É moroso, massudo, incapaz de sorrir, tem essa especie de magestade official que faz lembrar ao mesmo tempo Guizot e um elephante.

E quando a gente o contempla no parlamento, grave, rispido, vestido de negro — não o póde conceber nas attitudes triviaes da vida, fumando um cigarro n’um sophá, com uma perna por cima da outra, muito menos de joelhos, com uma linda mão de mulher entre as suas, murmurando coisas ternas e tontas...

E é isto que torna atroz e deliciosa a facecia... O discurso solemne d’este solemne estadista estava, pois, paginado, pronto para passar ás machinas, quando aproveitando um momento em que a policia interior dos escriptorios do Times casualmente afrouxára de vigilancia, alguem, um monstro, um scelerado, subtilmente, pé ante pé, foi ao discurso, arrancou-lhe dez ou doze linhas, e substitue-as por outras, compostas de ante-mão, perfida e habilmente compostas! E que linhas! meu Deus! como posso eu, conservando-me casto, explical-as aos leitores da Gazeta de Noticias?

 

Essas linhas intercaladas no severo discurso do severo ministro eram (tremo de dizel-o) eram linhas eroticas! Era um grito convulsivo de desordenada lubricidade; era o ruido d’uma besta agitada por todas as furias de Venus; era como esse rouco e secco bramar dos veados, nos bosques, sob a calma do estio; era a balbuciação ebria dos Faunos da fabula, do deus Priappo, dos Satyros caprinos que vagueavam pelos pendores sagrados do monte Olympo, ululando, trincando a brancura dos lyrios, violando o coração das rosas, arremessando-se com pulos ferozes de bodes ao entreverem, entre as ramagens dos olmos, as claras nymphas das aguas... Era tudo isto, e era ainda mais.

E, para requinte de facecia, isto não destoava, não chocava, apparecendo bruscamente e sem ligação, como um monturo immundo entre roseas flôres de rhetorica. Não: tinha sido encaixado com uma habilidade diabolica. Sir William Harcourt estava accusando os conservadores de affectarem uma patriotica melancolia em presença dos suppostos perigos, que sob o regimen liberal correm os grandes principios da ordem monarchica, a integridade mesma da Inglaterra. E aqui perguntava-lhes, naturalmente n’um natural movimento de oratoria: «Porque são esses gemidos? Porque é essa exageração de tristeza publica? Decerto a questão da Irlanda e a do Egypto são graves: mas o governo de Sua Magestade sabe que as soluções proveitosas e gloriosas não tardarão... Nós estamos tranquillos. Eu, por mim, sinto-me na disposição de quem, depois de cumprir um dever official, tem para o recompensar o sorriso sereno e approvador da consciencia, etc., etc.»

E justamente aqui as linhas perversas entravam naturalmente traçadas, desenvolvendo mais esta affirmação de contentamento intimo, mostrando a exuberancia de espirito d’um ministro galhofeiro, que, em presença do glorioso estado da cousa publica, admitte que o regosijo da nação tome a fórma excentrica mas justificavel, de uma tremenda bambochata, de um regabofe de estalar tudo... Sir William prosseguia (comprehendem bem que eu dou só expressões aproximativas e atenuadas; traduzir á lettra o que appareceu publicado no Times seria arruinar para sempre os creditos da Gazeta de Noticias) Sir William prosseguia: «Eu, por mim, estou contente. Acho-me até capaz de uma bella folia! Porque não nos daremos com effeito a uma rica patuscada, com vinhaça e mulherinhas? Oh, as mulherinhas! Senhoras que me escutaes, arremessae chapéus e vestidos, e toca a pandegar e a bater um rico batuque!... Evohé! Viva o deboche! Olé, champanhe! Abracemo-nos, deliremos!...» Isto é só para dar ideia: o que se lia no Times tinha outra crueza d’expressão, outro arranque d’orgia!...

Imaginem o effeito ao outro dia, quando milhares de numeros do Times, contendo esta abominação, penetraram n’esses recatados interiores inglezes, onde (segundo aqui dizem) habita o typo superior da familia christã. O Times, o mais caro dos jornaes, é a folha querida da aristocracia, da alta burguezia, da grande finança. Não se comprehende um gentleman inglez, do padrão classico, sem ter logo pela manhã percorrido conscienciosamente o seu Times: é como o coração mesmo da Inglaterra, que elle sente um momento entre as mãos e onde verifica cada dia, com orgulho, um accrescimo de força, uma pulsação maior de vitalidade. Ordinariamente é ao almoço que se lê o Times: e n’essa manhã, vendo-se na quarta pagina, em lettras grossas, O DISCURSO DESIRWILLIAM HARCOURT EMMANCHESTER, corria-se naturalmente a elle com curiosidade, já pelo interesse nacional, já pela sympathia que inspira Sir William, o seu nome historico, a solida pureza dos seus principios, a sua alta posição...

Imaginem-se então as scenas! Aqui é uma velha e devota duqueza, cheia de enthusiasmo pelas questões sociaes, que se aconchega na sua rica poltrona de tapeçaria, para melhor saborear a nobre oratoria de Sir William — e que de repente estaca, encara o Times, limpa as lunetas, imaginando ter lido mal, torna a percorrer o periodo, passa a mão tremula pela face, procura anciosamente o seu frasco de saes, volta ainda a verificar se a não enleia uma allucinação, e, arremessando emfim para longe a gazeta immunda, sae da sala a passos offendidos, pensando comsigo que são esses os resultado de um seculo de democracia, de materialismo e de libertinagem!

Além é um casal de noivos, que, aninhados no mesmo sophá ao pé do fogão, com os braços entrelaçados, precorrem o Times, menos para saber da questão no Egypto, do que para ler o compte-rendu de outros casamentos elegantes ou as noticias de Paris, onde tencionam ir findar a sua lua de mel; mas encontram o discurso de Sir William, dão-lhe um olhar distrahido, quando de repente lhes salta d’entre as linhas o jorro immundo das apostrophes eroticas!

N’outra casa é uma fresca e loura creaturinha de desoito primaveras, puro lyrio domestico, que faz a leitura do Times a um velho tio general, tolhido de gotta, reliquia veneranda das guerras peninsulares; o velho escuta, pouco attento á politica do dia que detesta, mas muito ao encanto d’aquella voz d’oiro ao seu lado; de repente, porém, o pobre anjo gagueja, pára, faz-se da côr d’uma rosa, treme, a sua vergonha é tal que lhe saltam as lagrimas dos olhos, e foge, deixando o immundo Times nas mãos do general assombrado: — ou então, caso peior, a doce rapariga, na sua candura de flôr d’estufa, não comprehende, imagina que aquillo é politica, continua a ler com a sua voz d’oiro, — e o veneravel tio ouve de repente sahir dos labios de botão de rosa, feitos só para murmurar o que ha de mais casto na musica de Weber, um enxurro torpe de babugens lubricas.

É medonho! E uma feição curiosa do incidente é que este negro attentado só foi descoberto nos escriptorios do Times ás onze horas da manhã: isto é, quando o jornal já estava distribuido em Londres, levado pelos trens de madrugada para toda a provincia, e pela mala de Dover para toda a Europa! A administração do Times telegraphou logo a todos os seus agentes no mundo, para suspender a distribuição e comprar por todo o preço os torpes numeros já espalhados.

Só estes telegrammas custaram perto de dois contos de reis. Mas o melhor é que apenas se soube a historia da catastrophe, e que o Times comprava por todo o preço o numero maldito — esse numero tornou-se logo um valor, um papel de credito, base de especulação, com cotações no mercado, eguaes, se não superiores, aos fundos de muita nação civilisada. Eu sei d’um restaurante que toma regularmente quatro numeros do Times — e que vendeu os seus exemplares immundos a duas libras cada um.

Realizaram-se, porém, ganhos maiores. O Times não regateia, paga. E até hoje diz-se que em comprar essa fatal edição tem gasto já perto de quarenta contos.

O autor da facecia ainda se não descobriu. É sem duvida, um monstro, e seriamente merece a tremenda sentença com que decerto os tribunaes inglezes o demoliriam, se elle apparecesse. Mas, por outro lado, considerando que quarenta contos são apenas um somma minima para a fortuna do Times, e que esta gazeta austera leva o seu pedantismo e a sua empolada pruderie a sustar, como obscena, a menção sequer dos livros de Zola e de outros realistas, — eu não posso deixar de pensar, com laivos de regosijo, que a Providencia tem armas obliquas e terriveis!

Nunca, decerto, desde a invenção da imprensa, aconteceu um jornal publicar, na sua melhor pagina, em letras salientes, doze linhas immundas de desbragada obscenidade; e ser o Times, o primeiro que o fez, o Times, o mais pesado, mais moroso, mais solemne, mais pedagogico, mais reverente de todos os jornaes que têm existido desde a invenção da imprensa — é, digam o que disserem, divertido.

E, terminando, peço ás almas caritativas e justas uma bôa risada á custa do Times.