Casa de Pensão/XIII
A casa de pensão de Mme. Brizard sofreu muito com as variolóides de Amâncio. Desmanavam-se hóspedes que era uma coisa por demais.
O gentleman, o Piloto e a pérola do n.º 9, "o estimável Melinho", desde a fatal noite das cataporas, não davam notícias suas. Fontes e a mulher sumiram-se logo no dia imediato, e, por conseguinte, não metendo o tal médico do n.º 11, que já não aparecia há bastante tempo, apenas seis hóspedes restavam dos quatorze primitivos.
E ainda mesmo destes seis nem todos eram aproveitáveis; porque Paula Mendes e mais a mulher levantariam o vôo, assim que lhes chegasse uma aragenzinha de dinheiro, e o estafermo do n.º 7 também estava a despedir-se por um daqueles dias, não da casa, mas do mundo.
Certos, só Amâncio, o guarda-livros e o esquisitão do Campelo que, fugindo ao pigarro do tísico, mudara-se para o andar de baixo, mal pilhara um cômodo desocupado.
Mme. Brizard estava, pois, inconsolável. — Em sua vida de hospedeira jamais tivera um mês tão ruim!
E azoinada por essas contrariedades e já de natureza um tanto supersticiosa, agora em tudo descobria sinais de mau agouro e motivos para desconfiança. — Pois se até o ilustre Sr. Lambertosa, "o respeitável gentleman, a flor dos homens finos, uma criatura tão cheia de circunspecção", quem o diria?... aproveitar ao ensejo das bexigas para lhe passar a perna!
E o Melinho? "o estimável Melinho! a pérola do n.º 9, o homem das frutas cristalizadas!" também não deixara as suas contas em aberto?...
Só o Piloto, o estúrdio, aquele de quem menos se esperava, aparecera três dias depois da fuga, perguntando, ainda muito escabreado, de quanto era a sua dívida.
— É mesmo caiporismo! gemia a francesa.
O marido, porém, soprava-lhe a coragem: — Ela que não desanimasse por tão pouco! Nem tudo se perdera! Enquanto tivessem o Amâncio não se podiam queixar da sorte; este valia por todos os outros!
Mas o precioso Amâncio não estava também muito satisfeito com a casa, talvez desconfiando que a esta coubesse em parte a responsabilidade daquele maldito reumatismo que ora parecia extinto e ora o obrigava a guarda a cama, tolhido de dores.
À noite, quando lho permitiam as pernas, descia a cavaquear na varanda com os senhorios. Agora os serões tinham um caráter mais íntimo e eram frequentemente animados com a presença de uma família, que voltara às relações de Mme. Brizard depois de seis meses de inimizade.
Tocava-se piano, jogava-se a víspora, quase todos os dias e, às vezes, se dançava.
A casa de pensão nunca ofereceu aos seus hóspedes um aspecto tão divertido; menos para o rabequista, Paula Mendes, que parecia cada vez mais triste e apoquentado da vida. A circunstância de já não comer à mesa de Coqueiro obrigava-o a desperdiçar muito tempo com o restaurante e dificultava-lhe a subsistência da mulher, cujo mau humor ia se azedando ao peso de tanta necessidade e de tanta humilhação. O infeliz marido conseguiu afinal que ela fosse passar alguns meses na companhia dos parentes em Niterói.
Mme. Brizard, ao vê-la partir, receou a premeditação de uma fuga e exigiu logo que Mendes, para garantir a dívida, hipotecasse o piano que tinha no quarto.
O pobre homem consentiu, sem dizer palavra, mas, de envergonhado, deixou de aparecer nos serões da sala de jantar.
E desde então, por alta noite, quando toda a casa era silêncio, Amâncio ouvia no corredor o som de passos trôpegos e um vozear confuso de alguém que monologava.
A casa de pensão, definitivamente, ia se tornando insuportável ao estudante.
Não podia sair à rua; o médico, havia quase um mês, jurara pô-lo pronto em quatro dias, se Amâncio não fizesse alguma extravagância; a conversa de toda a família Coqueiro, à exceção de Amelinha, o enfastiava; a leitura muito pouco o distraía, e, para complemento do enjôo, o maldito tossegoso do n.º 7, o qual por caridade entregara ele ultimamente ao seu médico, parecia morrer de cinco em cinco minutos e não lhe dava um momento de sossego.
Mas a causa principal desse tédio era, sem dúvida, a ausência de Lúcia. Desde que ela se foi, o coração do rapaz turgia de saudade; longe de esquecê-la, cada vez a desejava com mais sofreguidão.
As trevas da ausência faziam-na destacar melhor e mais linda, como um fundo negro a uma estátua de mármore.
Sentiu sobressaltos deliciosos quando recebeu a primeira carta das mãos dela. Era extensa, cheia de imagens poéticas e figuras de grande alcance amoroso; terminava dizendo "que Amâncio, logo que pusesse os pés na rua, a fosse procurar". O endereço vinha à parte, num pedacinho de papel.
— E não poder ir quanto antes!... Que espiga! considerou ele, sinceramente penalizado.
E cresciam-lhe os enjôos.
Só Amélia, com os estiletes da sua perceptibilidade feminina, conseguiu penetrar no âmago daquelas tristezas, mas não se deu por achada e redobrou os desvelos e meiguices para com ele.
Amâncio, por mais de uma vez beijou-lhe as mãos suspirando que ela era o seu bom anjo, a sua consolação única no meio de "tantos dissabores"!
Assim se passaram quinze dias. O apaixonado já a tratava por tu, por você, raras vezes por senhora.
Era a piedosa Amelinha quem lhe arrumava o quarto, quem lhe cuidava da roupa, e já por fim, era até quem lhe levava o cafezinho pela manhã. Mas não entrava, apenas metia o braço pela abertura da porta que ficava sempre encostada, depunha cautelosamente a xícara sobre o soalho, e, se Amâncio ainda dormia, gritava-lhe no seu falsete aprazível:
— Preguiçoso, acorde! são horas!
Depois, apanhava novamente as saias e descia a escada, ligeira e sem rumor.
Outras vezes, ao anoitecer, subia para lhe pedir um livro emprestado, para saber se ele queria o chá no quarto ou se preferia descer à sala de jantar. Sempre havia um pretexto para lá ir e, depois de lá estar, sempre arranjava um motivo de demora. Entretinha-se a ver o que se achava sobre a mesa; examinando tudo; lia a lombada dos livros, e brincava com um esqueleto que jazia pendurado a um canto do quarto.
Amâncio, de uma feita, não pôde deixar de rir, quando a encontrou muito espantada a examinar as gravuras de um tratado fisiológico de Vernier.
Estava, porém, mais e mais convencido de que toda aquela familiaridade e toda aquela confiança da rapariga procediam do modo e das maneiras respeitosas e fraternais com que ele, até ali, a tratara. E então, fazia por domar os seus impulsos luxuriosos, receoso de cair-lhe em desagrado.
Verdade é que, em grande parte, contribuía para esse estranho heroísmo de garanhão, não só a moléstia, como a ilimitada confiança que, muito propositadamente depositavam nele Coqueiro e a mulher.
Se Amélia e Lúcia trocassem os papéis, isto é, se aquela se negasse e esta se oferecesse, é de supor que Amâncio desdenhasse a última e ambicionasse a primeira.
Mas o Sr. João Coqueiro, apesar de tão fino, não calculou que, em naturezas viciadas como a de Amâncio, o mais forte estímulo para o amor é a proibição.
Embalde deixavam o rapaz horas e horas no salão, às voltas com a menina; embalde Mme. Brizard lhe dava a perceber o quanto era ele amado pela cunhada; embalde lhe chamava "coração de gelo"; embalde lhe preparava todos os laços. — Nada produzia o efeito desejado; Amâncio tornava-se cada vez mais respeitoso e mais frio em presença de Amélia.
Era para desesperar!
Uma ocasião, todavia, estava ele no quarto, de costas para a porta e muito entretido a ler defronte do gás, quando Amélia, pé ante pé, entrou sem ser sentida e, encaminhando-se contra o moço, tomou-lhe a cabeça nas mãos e cobriu-lhe o rosto de beijos.
Amâncio quis prendê-la, mas a rapariga não se deixou enlear, e fugiu, como um pássaro assustado.
O rapaz, então, nunca mais receou cair-lhe em desagrado. Mas o demônio do reumatismo lá estava erguido entre ele e a provocadora menina. A despeito do tratamento, as dores recrudesciam-lhe de vez em quando e assanhavam-se-lhe a bílis. Amâncio principiou a emagrecer, tomado de uma estranha prostração, muito assustadora. O médico aconselhou-o logo a que se mudasse para um arrabalde de bons ares, como Santa Teresa, por exemplo, e esta notícia produziu enormes sobressaltos na família dos locandeiros.
Mme. Brizard parecia ter um filho em risco de vida; Coqueiro declarou, cheio de dedicação, que não deixaria o "pobre amigo" ir assim desamparado para uma casa de saúde ou para um hotel; Amelinha choramingava ao lado da cama do enfermo, e, quando se achava a sós com este, beijava-lhe as mãos, afagava-lhe os cabelos e soluçava palavras de ternura.
Nesses dias Amâncio era assunto obrigado das conversas da casa. À mesa e durante os serões não se falava noutra coisa. Lembravam-se todos os expedientes: — uma mudança geral da família; alugar fora uma casinha e levá-lo a passeio até que se restabelecesse; abandonar a casa de pensão ou entregá-la aos cuidados de alguma pessoa de confiança.
Nada, porém, ficava resolvido. A conversa turbinava em volta do mesmo assunto, sem descobrir uma saída.
Nini era a única que parecia não ligar a mínima importância a tudo aquilo; de olhos muito abertos, sonâmbula, ouvia em silêncio as conversas da família, apenas suspirando de espaço a espaço.
Não obstante, já uma noite estava a casa recolhida, quando despertaram alarmados com o baque de um corpo que, entre medonhos gritos, rolava pela escada do segundo andar.
Acudiram todos, num levante.
— Que era?! Que acontecera?
Nini, coberta de sangue, jazia estendida sem sentidos ao sopé da escada. Rolara vinte degraus a partira a cabeça em dois lugares.
Ia fazer uma visita ao seu esquivoso enfermo, mas no patamar da maldita escada perdera o equilíbrio e baqueara desastradamente.
Tomaram-lhe as feridas a pontos falsos, friccionaram-lhe o corpo inteiro com aguardente canforada e deram-lhe a beber cerveja preta.
Supunham, todavia, que amanhecesse morta. Foi o contrário: Nini melhorou muito de seus antigos padecimentos e apresentou uma inesperada lucidez de idéias, como há muito não possuía. — O choque fizera-lhe bem e não menos o sangue que derramou da cabeça, afiançou o médico.
Aquele trambolhão era uma providência!
À noite, conversou-se bastante a esse respeito; vieram as amigas de Mme. Brizard; choveram os comentários sobre Nini; citaram-se as anedotas correlativas ao fato, e Amâncio, que se achava então mais desembaraçado das pernas, entendeu de sua obrigação fazer uma visita à pobre criatura.
Nini estava melhor que nunca: tranquila; havia comido regularmente e mostrava-se até mais satisfeita e mais comunicativa; ao dar, porém, com Amâncio, que entrara no quarto com o seu risinho de boa amizade, abriu de repente a estrebuchar na cama, bramindo impropérios e atassalhando as roupas.
Para sossegar um pouco foi preciso que o rapaz fugisse o mais depressa de sua presença. E, desde então, a desgraçada não o podia ver, que lhe não voltassem logo as insânias e os frenesis.
Estabeleceu-se um cuidado enorme para evitar que os dois se encontrassem. Já não era permitido a Amâncio dar um passo fora do quarto, sem se precaver e indagar se Nini estava por ali por perto.
O médico declarou que um novo encontro exacerbaria os padecimentos da enferma e talvez lhe produzisse a loucura absoluta.
Mme. Brizard pranteava-se toda, quando lhe falavam na filha. — Era uma desgraça, dizia, com os olhos espipados pelo esforço que faziam — era uma grande desgraça! Antes Deus a levasse logo para si, coitada!
Um encontro, que Amâncio não pudera evitar, a despeito de suas precauções, deixou Nini em tal excitação nervosa, que o doutor proibiu que a consentissem fora do quarto. Ficou presa desde esse dia.
Malgrado a felicidade prevista ao lado de Amélia, o provinciano sentia já bastante desejo de se tirar dali. — Assim que estivesse bom!
Campos, em uma visita que lhe fez por essa ocasião, falou muito na generosidade com que se portara a família de Coqueiro durante a moléstia do rapaz. — Que aquilo era uma fortuna que nem todos abichavam! Citou principalmente as canseiras de Amelinha e concluiu declarando que, segundo o seu fraco modo de pensar, Amâncio tinha obrigação de fazer à menina um qualquer presente de valor.
Sim! porque, no fim de contas, era muito difícil encontrar aquilo nas casas de pensão! Outros foram eles, que Amâncio teria de pôr os quartos na rua! — Não. Inquestionavelmente, era preciso dar o presente!
E, depois de se concentrar numa pausa:
— Aí uma jóia de uns cem mil-réis... Que diabo! esse dinheiro não o faria pobre...
Mas o estudante, em voz discreta e abafada, confessou a Campos que a brincadeira não lhe havia saído tão de graça, como parecia à primeira vista: Só o mês passado gastara perto de seiscentos mil-réis, sem contar que Sabino vivia numa dobadoura, de casa para a botica e da botica para casa, e eram remédios para Nini, remédios para o tísico do n.º 7, água de flor de laranja para Mme. Brizard, xaropes para Coqueiro; um inferno!... E toda essa droga caía na sua conta! — E os dinheiros emprestados?... E as fitas, os botões, as linhas, as tiras bordadas, que Amelinha estava sempre a lhe pedir que mandasse buscar nos armarinhos sem nunca dar dinheiro para isso?... Não! Sr. Luís Campos não podia calcular o que havia! — Hoje cinco mil-réis, amanhã vinte! E, no tirar das contas, parecia que tudo isso, em vez de ser descontado, era aumentado nas suas despesas!... Que tal?! — Recebera obséquios, sim senhor! mas também puxara muito pela bolsa!
Campos ignorava aquelas particularidades... mas entendia que Amâncio, nem por isso devia menos obrigações à família de Coqueiro.
E ofereceu a "sua modesta choupana", caso o estudante não quisesse continuar ali.
Amâncio rejeitou, um tanto por se lembrar das esperanças que embalava a respeito de Amélia, um tanto por se não querer sujeitar ao regime do negociante e um tanto por mera cerimônia.
— Enfim, disse o marido de Hortênsia, despedindo-se — acho que o senhor deve fazer o presente e tratar logo de sair daqui; já não digo pela questão da despesa, mas porque lhe convém a saúde. Escolha um arrabalde de bons ares ou então dê um passeio a Petrópolis; o médico afiançou-me que o senhor tem ameaços de febre paludosa, e isso é o diabo na época que atravessamos: a febre amarela grassa por aí que não é brinquedo!
Logo que constaram as novas disposições de Amâncio a respeito de mudança, houve uma grande consternação por toda a casa.
— Deixar-nos? exclamou Mme. Brizard em sobressalto. — Não consentimos! Se para o seu completo restabelecimento é necessário um arrabalde, vamos todos para o arrabalde! Só — isso é que não! Seria até uma falta de humanidade, coitado!
E formou-se um zunzum de opiniões. Cochichava-se pelos cantos, em magotes, discreteando-se projetos em voz de mistério, como se tratasse de um moribundo. Coqueiro andava de um lado para outro, coçando deseperadamente a cabeça, gesticulando, à procura de um meio de conciliar os seus interesses.
Amélia, afinal, subiu ao quarto do doente, e, com uma aflição a quebrar-lhe a voz, toda a tremer, os olhos úmidos, perguntou se ele tencionava deixar a casa.
Amâncio, ignorando o que ia por baixo a seu respeito trejeitou uns momos de indiferença e respondeu: "que não sabia ainda ao certo... havia de ver!... mas que o médico lhe ordenara que fosse"...
Como se só parecesse por aquelas palavras, o pranto da menina irrompeu violentamente.
Ele, meio surpreso, a tomou nos braços, indagando com ternura "o que significava aquilo?"...
Amélia não respondeu logo, mas depois, levantando a cabeça, que lhe havia pousado no colo, exclamou entre soluços angustiados:
— Não! não! não hás de ir! peço-te que não vás!
O provinciano quis saber por quê.
— Eu te amo! disse ela, escondendo de novo o rosto. — Eu te amo e não posso me separar de ti! Vejo a tua indiferença! percebo que me detesta, mas que hei de eu fazer?! Adoro-te, meu amor!
— Ah! se eu não estivesse tão doente!... suspirou Amâncio.