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Casa de Pensão/XVI

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Chegou, finalmente, a véspera do amaldiçoado exame.

Que ansiedade! Que dia de angústias para o pobre Amâncio! E que noite, a sua! — Não descansou um segundo; apenas, já quase ao amanhecer, conseguir passar pelo sono; antes, porém, não dormisse, tais eram os pesadelos e bárbaros sonhos que o perseguiam.

Via-se entalado num enorme rosário de vértebras que se enroscava por ele, como uma cobra de ossos; grandes tíbias dançavam-lhe em derredor, atirando-lhe pancadas nas pernas; as fórmulas mais difíceis da química e da física individualizavam-se para o torturar com a sua presença; os examinadores surgiam-lhe terríveis, ríspidos, armados de palmatória, todos com aquela feia catadura do seu ex-professor de português no Maranhão.

Pelo incoerente prisma do sonho, o concurso acadêmico amesquinhava-se às ridículas proporções do exame de primeiras letras. Era a mesma salinha do mestre-escola, a mesma banca de paparaúba manchada de tinta, o mesmo fanhoso Sotero dos Reis presidindo a mesa. João Coqueiro, Paiva e Simões, vestidos de menino, fitavam o examinando com um petulante riso de escárnio. Amâncio sentia correr-lhe o suor por todo o corpo e agulhas visíveis penetrarem-no até a medula. O professor, transformado em juiz e ostentando as feições do falecido Vasconcelos, inquiria-o com asperezas de senhor; mas as suas perguntas, em vez de concernirem às matérias do ato, só se referiam à Amélia.

— Por que matou você a pobre menina?! bramia o pai cravando-lhe olhares de fogo: — Responda, seu canalha! responda! Ah! Pensa que ainda não sei de que você, para melhor a seduzir, lhe havia prometido casamento e jurado olhar sempre por ela, seu cachorro?!

Coqueiro, lá do canto, sacudia a cabeça afirmativamente e enviava a Amâncio caretas de vingança. Ao lado deste, o cadáver de Amélia fazia-se todo vermelho com o sangue que lhe golpejava de um dos seus seios rasgados de alto a baixo.

O réu queria responder, justificar-se, expor a verdade; eram, porém, baldados os seus esforços: não conseguia articular uma palavra; gelatinava-se-lhe a voz na garganta, empacando-lhe a fala.

— Bem! gritou o velho Vasconcelos à meia dúzia de soldados que escoltavam Amâncio. — Conduzam esse miserável ao cepo e cortem-lhe a cabeça!

O estudante atirou-se de joelhos, com as mãos postas, chorando, suplicando que o não o matassem. Mas os soldados apoderaram-se dele com violência e ataram-lhe os braços. o Juiz, Coqueiro, Simões, Paiva, sumiram de repente, soltando gargalhadas. Amâncio foi conduzido por um corredor muito escuro e apertado; os soldados, quando o viam vacilar, batiam-lhe no ombro com a coronha das espingardas. Chegou a um pátio lajeado e úmido, onde milhares de homens armados formavam alas; no centro, sobre um toro de madeira conspurcada de sangue, reluzia um machado à sua espera; e, de joelhos, abraçado a um crucifixo, um padre velho, de longos cabelos brancos, engrolava latim.

Fizeram silêncio.

No meio das respirações abafadas, só se ouviam os passos trôpegos e o aflitivo resfolegar do condenado que, à ponta da baioneta, subia os degraus do cadafalso.

Veio o carrasco, despiu-lhe a camisa, tosou-lhe os cabelos, e empunhou o ferro.

Amâncio não se resolvia a entregar o pescoço, mas o velho Vasconcelos, que surgira por detrás dele, atirou-lhe um murro à nuca e fê-lo cair de bruços contra o cepo.

Então, para lhe abafar os gemidos, romperam todos os soldados num rufo estridente de tambores.

Amâncio sentiu o aço frio entrar-lhe na carne de toutiço, espipar o sangue, e o corpo, de um salto, arrojar-se às lajes.

Havia saltado, com efeito, mas da cama. E o despertador, que ficara de véspera com toda a corda para as seis da manhã, continuava o rufo penetrante dos tambores.

O estudante abriu os olhos e passou em sobressalto a mão pela testa; os dedos voltaram ensopados de suor.

Com a perceptibilidade das coisas foi aos poucos saindo daquele estado de excitação, mas voltando lentamente à taciturna agonia da véspera.

Vestiu-se quase sem consciência do que fazia: esqueceu-se até de escovar os dentes, porque, mal voltou a si, correu aos livros, sem aliás, conseguir firmar a atenção sobre coisa alguma.

E Amâncio tremia todo só com a idéia de sua inabilidade. À medida que as horas se esgotavam e o momento fatal se lhe antepunha, um langor covarde e mulheril crescia dentro dele, produzindo-lhe arrepios que principiavam na ponta dos pés e iam-se estendendo pela espinha dorsal, até lhe interessar a cabeça, depois de percorrer as regiões abdominais.

Mas embaixo, na varanda, em presença de Amélia e Mme. Brizard, fazia-se forte, a despeito da palidez que lhe alterava as feições. Nem de leve falou nos sonhos dessa noite, e Coqueiro, a título de metê-lo em brios, contou várias anedotas de examinandos ridículos.

Os dois tomaram café e por fim saíram. O trajeto de casa à escola foi um martírio para Amâncio, afigurava-se-lhe, como no sonho, que se dirigia ao patíbulo.

Chegou às dez horas. Alguns companheiros de ato já lá estacionavam em magotes de quatro e cinco pelos corredores ou à porta da secretaria; fumavam-se cigarros consecutivos, discreteavam-se os assuntos da ocasião. Amâncio cumprimentou os conhecidos, parando aqui e ali, falando sobre os pontos do exame; — qual preferia que saísse, em qual se presumia menos fraco e capaz de fazer figura.

Agora sim, estava mais animado; a presença dos colegas o robustecia com um vago espírito de coletividade. Sentia-se mais forte e resoluto ao lado dos companheiros de perigo, como se a vitória dependesse do número de combatentes.

Entretanto, faziam-se horas. Os examinadores estavam já reunidos na sala de exames, em torno da sua mesa forrada de pano verde. Amâncio lobrigava-os pela frincha da porta entreaberta e ouvia-lhes o murmurar descuidoso da conversa, intercalada de risotas e baforadas de charuto.

À vista daqueles homens resfriaram-lhe de novo as mãos e voltaram-lhe os calafrios do terror, algum resto de confiança, que ainda teria em si, evaporou-se de todo.

E, para não sucumbir, procurava acreditar na eficácia dos empenhos que arranjara; seu espírito, como o náufrago que braceja na agonia da morte, já não escolhia os pontos a que se agarrava; tudo servia naqueles apuros, tudo era um pretexto de esperança; mas a consciência da verdadeira situação vinha meter-se de permeio, arrancando, uma por uma, todas as tábuas de salvação.

E Amâncio arquejava, desorientado, perdido.

— Que diabo viera fazer ali?! Para que se apresentara? por que não se guardou para o ano seguinte ou quando menos para março? Antes não tivesse pago a segunda matrícula! Oh! se o arrependimento salvasse!...

E, à proporção que se avizinhava o momento supremo, mais e mais imprudente lhe parecia a sua temeridade.

— Naquela ocasião, pensava ele — bem podia estar na província, à testa dos seus negócios, ao lado de sua querida mãe, passeando, rindo, gozando, como nos outros tempos!... Era rico, era já tão estimado antes da academia, para que então sofrer semelhantes torturas, passar por aqueles maus quartos de hora, que ali estava curtindo?...

E vinham-lhe venetas de fugir, abandonar tudo aquilo, sem dar satisfações a ninguém, correr à casa do Campos, encher-se de dinheiro e arribar para a Europa, para o inferno! contanto que se livrasse da obrigação de expor uma ciência que não tinha, escrever idéias de que não dispunha!

Mas o bedel havia surgido e principiava a "chamada", e, a cada nome, recitado pausadamente, o seu olhar mórbido, de funcionário público no cumprimento de um velho dever enfadonho, consultava a multidão de estudantes, que em sussurros se apinhava pelo esvaziamento das portas, empurrando-se una aos outros, impacientes, curiosos, o pescoço espichado, a boca aberta, o calcanhar suspenso.

— Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos, disse aquele arrastando a voz.

Amâncio sentiu uma pontada no coração e tartamudeou:

— Presente.

Os companheiros, que lhe ficavam por diante, arredaram-se logo, dando-lhe passagem, e ele foi ocupar uma das banquinhas que havia na sala.

A chamada ainda durou algum tempo, porque Amâncio era dos primeiros; afinal, o bedel mastigou o último nome; fechou-se a porta da sala; e um silêncio formalista espalhou-se entre a turma dos estudantes e o grupo dos examinadores.

O presidente da mesa tomou a lista dos examinandos, arranjou os óculos, tossicou e, com um bocejo, chamou pelo que estava em primeiro lugar.

Um rapazote louro, de buço, ergueu-se e foi ter com ele. O presidente, com um segundo bocejo e um gesto de cabeça, ordenou-lhe que tomasse um dos pontos da urna.

Amâncio ofegava. — Ia decretar-se o ponto!

— Qual seria?... E se, por caiporismo, fosse justamente um dos mais crus?

E o sangue trepava-lhe à cabeça, pondo-lhe latejos nas fontes.

O rapazote louro meteu enfim a mão na urna e tirou com as ponta dos dedos trêmulos uma pequena torcida de papel, que passou ao presidente.

Este desenrolou-a e leu: "Hidrogênio".

Amâncio respirou: o ponto não podia ser melhor para ele do que era! talvez fosse até entre todos o menos mal sabido; ainda essa manhã lhe passara uma vista de olhos. Contudo, uma vez imposto o Hidrogênio, quis lhe parecer vagamente que havia outros pontos preferíveis.

Estava, porém, mais tranquilo, que era o principal; já quase nada lhe tremia a mão ao receber das do bedel uma folha de papel almaço, rubricada pelos lentes, das que ia aquele distribuindo por todas as banquinhas dos examinandos.

— Ali, naqueles miseráveis dois vinténs de papel, tinha ele de determinar o seu futuro, a sua posição na sociedade, talvez a própria vida de sua mãe, dizendo o que sabia a respeito do tal Hidrogênio!...

Experimentou a pena, endireitou-se na cadeira, e escreveu, caprichando na letra e procurando obter estilo.

A areia da ampulheta esgotava-se defronte da calva e dos bocejos do senhor presidente. Correu meia hora; Amâncio ergueu-se afinal, entregou a sua prova e saiu da sala, a esfregar, muito preocupado, os dedos da mão direita contra a palma da esquerda.

À porta, mal acendera sofregamente o cigarro, contava já aos amigos o que havia exposto pouco mais ou menos. — Ah! com certeza pilhava uma — nota boa! — Não era por querer falar, mas a sua prova saíra limpa. "Assim não fosse o ponto tão ingrato!..."

E ficaria a prosar sobre o caso, se Coqueiro, aguilhoado pela ausência do almoço, não o arrancasse dali.

A nota foi boa, efetivamente.

Soube-o Amâncio no dia seguinte, logo que correu à secretaria. Não contava, porém, ficar tranquilo, senão depois do resultado de sua prova oral.

Novos sobressaltos foram se agravando durante os dias que era preciso esperar. Voltavam-lhe as aflições; no fim de algum tempo já não podia comer, não podia ligar duas idéias sobre qualquer coisa e não conseguia repousar duas horas seguidas. Ficou ainda mais desnorteado que da primeira vez.

Amelinha, então, o estimulava com as suas garrulices de pomba que já fez ninho. Puxava por ele, tentando arrancá-lo daquele estado, mas não conseguia despertar-lhe um só dos antigos momentos de bom humor, nem lhe merecer uma de suas primitivas carícias.

O rapaz andava tonto, cheio de pressentimentos e de sustos. Tornou-se até supersticioso. — Não podia ver entrar no quarto uma borboleta de cor mais escura; não podia suportar o uivar dos cães, nem queria que a amante prognosticasse "um bom resultado nos exames".

— É melhor não falar!... dizia ele, muito esmalmado.

Mas que prazer o seu voltar pronto da escola! Jamais tivera um contentamento tão agudo. Ria sem motivo, sentia ímpetos de abraçar a toda gente, pulava, cantava, parecia doido.

Soubera do resultado no mesmo dia da prova oral, por intermédio de um dos professores. — Saíra aprovado plenamente.

Vencera!

Colegas o acompanharam até a casa. Lá ia Paiva, sempre com o seu olhinho irrequieto e mexeriqueiro, o seu todo enfrenesiado e farto "desta porcaria de mundo". Lá ia o triste Salustiano Simões, encasmurrado no seu ar incrédulo e bamba, a mascar o cigarro, a aba do chapéu encostada à gola sebosa do fraque.

Abriram-se garrafas de champanha; fizeram-se brindes. João Coqueiro desmanchava-se em sorrisos, como se partilhasse diretamente de todas aquelas manifestações.

Foi muito elogiado o exame de Amâncio, tocaram-se os copos, entre fervorosas palavras de animaçã o: falou-se em "filhos diletos da ciência", em "liberdade", em "geração nova", em "mineiros do progresso".

Todavia, Amâncio em ar feliz e pretensioso, confessava o pouco que estudara e gabava-se de sua fortuna. — Podia dar a palavra de honra em como mal havia tocado nos livros durante o ano. — Coqueiro e a família estavam ali, que dissessem!...

E bazofiava a respeito de sua presença de espírito, particularizando circunstâncias comprobativas de uma sagacidade a toda a prova.

— Cá o menino não se aperta! dizia ele, muito satisfeito consigo.

Expediu-se um telegrama para o Maranhão, dando notícia do grande "acontecimento". Simões e Paiva ficaram para jantar. Já estavam todos à mesa, quando apareceu o copeiro com uma carta que um portuguesito acabava de trazer.

Era de Campos. O bom negociante queria festejar o êxito feliz do jovem acadêmico — com "uma pequena reunião familiar. Pena era que o Dr. Amâncio estivesse de luto".

"Não há festa", explanava a carta, "apenas se reúnem alguns amigos para lhe beber à saúde; e o doutor bem pode trazer em sua companhia mais alguns".

Amâncio declarou logo que não dispensava Simões e Paiva Rocha e exigiu que o Coqueiro levasse consigo a família.

Pois iriam, iriam todos, até César. Mas o festejado teve de franquear o seu guarda-roupa àqueles dois colegas que não queriam apresentar-se mal amanhados em uma casa, onde entravam pela primeira vez.

Coqueiro, em particular, exprobrou-lhe essa franqueza:

— Foge da boêmia!... disse-lhe, no seu diapasão de homem sério. — Foge da boêmia rapaz! Esses tipos não merecem que se lhes faça a menor coisa!... Metem os pés — sempre! Já os conheço; não seria eu quem os convidaria para a casa de ninguém! É gentinha que só está habituada a cafés e botequins, não respeitam família! Para eles as mulheres são todas iguais!...

Amâncio sorriu.

— Ora Deus queria que não tenhamos de nos arrepender!... acrescentou o outro. — E, quanto àquela roupa, podes rezar-lhe por alma... o que ali cai, fica!

O provinciano afastou-se sem responder e lamentando interiormente que, logo nessa tarde, não estivesse em casa o eloquente Dr. Tavares, que seria uma excelente perna dos brindes da sobremesa.

Mandarem-se vir dois carros. Num iria Coqueiro mais a família e no outro Amâncio com os dois amigos.

Partiram às oito horas, alegremente, num alvoroço gárrulo de festa. Mme. Brizard dera toda força à sua elegância: atirou-se ao decote, pôs a pedraria ainda do tempo do primeiro marido, e exibiu aquele rico pescoço, "que ela não trocava pelo de ninguém!"

Amelinha estreou um belo vestido de escumilha azul que lhe dera o amante. No seu colo, cor de camélia fanada, assentavam muito bem as pérolas e os rubis; seus braços, levemente dourados de penugem, sabiam, no meio da confusão caprichosa das rendas valencianas, fazer tilintar com graça os braceletes que se enroscavam nas compridas e transparentes luvas de retrós.

A cunhada, ao vê-la sair do quarto, dissera:

— Não parece uma brasileira!... Tão linda está!



Foram recebidos com transportes de júbilo por toda a família do negociante. Campos entregou a casa ao festejado, " que a este competia, naquela noite, obsequiar às pessoas presentes; fazer as honras da copa e da mesa; promover quadrilhas e prender as moças até pela manhã. Era o dono da festa, que se arranjasse!"

Amâncio tomou posse do cargo, sem caber em si de contente. Muito o sensibilizava tudo aquilo que, de qualquer modo, lhe pudesse afagar o amor-próprio.

E em suas mãos a festa tomou um caráter assustador: o pianista não tinha tempo para fumar um cigarro; os convidados eram constrangidos a beber nos intervalos da dança e a dançar nos intervalos das libações. Paiva Rocha e Salustiano, a despeito de todas as suas garantias de filósofos, intransigentes e péssimos dançadores, tiveram de entrar, por mais de uma vez, nas intermináveis contradanças.

Ao inverso do que pressagiara Coqueiro a respeito destes dois, tanto um como o outro se houveram admiravelmente. Ninguém melhor que eles para respeitar senhoras; um espesso acanhamento os encascava e tolhia, que nem a concha ao molusco. Salustiano, principalmente, estava mais tenro e inofensivo que uma criança; na quadrilha, mal ousava erguer os olhos para a sua dama e, querendo ser muito delicado, apenas lograva, com os exageros da cortesia, trair a sua nenhuma frequência nas salas.

Para os intimidar bastava a cerimoniosa presença de senhoras de boa sociedade. Aqueles dois pândegos, tão céticos em teoria a respeito da mulher, ali, governados pelo meio, eram os homens mais tolerantes deste mundo; seriam capazes de defender a existência de Deus ou do diabo, se elas o entendessem. Fato é que o dono da casa gostou deles em extremo e pediu-lhes que aparecessem aos domingos, uma vez por outra, para jantar.

A festa correu sempre animada até as três horas da manhã, quando Amâncio convidou as senhoras a tomarem lugar à mesa. Ao desrolhar do champanhe ergueu-se este resolutamente e exigiu que o acompanhassem num brinde.

Abstiveram-se da bulha, e o estudante grupou em torno do nome inteiro de Campos todo o velho arsenal de retórica aplicável à situação. Em substância nada afirmou, mas a sua palavra sonora e cheia; as frases gorgolhavam-lhe dos lábios com essa verbosidade oca e retumbante que se observa nos filhos do Norte do Brasil, e que, aliás tem valido a muitos posição eminente na política. Aquela voz, estalada e aberta, ferindo as vogais, tinha um sabor muito picante de ironia, vibrava no ar como uma flecha selvagem e feria os tímpanos como um insulto em verso.

As damas interessaram-se pelo discurso e alguns homens o ouviram sem pestanejar. E todos eram de acordo que Amâncio estava talhado para o Direito e que havia de fazer "uma brilhante figura", quer na advocacia, quer na política, se por acaso abraçasse uma dessas carreiras.

— É rapaz de talento!... diziam já as senhoras cochichando.

— A mim comoveu tanto o demônio do moço, que chorei!... segredou uma quarentona de chinó, que passava entre os conhecidos por mulher de maus bofes.

E principiaram a olhar com certa submissão para o esperançoso Amâncio.

E, com efeito, o seu tipo nervoso e moreno de nortista, o seu modo sem-cerimônia de abrir muito a boca, mostrando num gesto de pasmo a dentadura, o desembaraço de sua gesticulação, sempre que entornava para dentro um pouco mais de vinho, e principalmente o metal daquela voz enfática e encrespada pelo tal sotaque da província; tudo isso, sem dúvida alguma, agravava depois de uma boa ceia, quando cada um não exige de ninguém senão que lhe deixe tomar em paz o seu café e lhe permita acender o seu charuto.

O caso é que Amâncio se converteu num espécie de presidente de mesa. Era a ele que se dirigiam os que propunham novos brindes; era para ele que mais se voltavam durante o discurso, e, tal e qual no jantar de seu pai por ocasião do célebre exame de primeiras letras, ainda era ele o alvo das melhores felicitações; com a diferença de que, neste agora, em vez de consultar de instante a instante o famoso relógio alcançado naquele dia, o que Amâncio consultava eram os olhos de Hortênsia, nele igualmente presos, mas por uma cadeia de outra espécie.

E, ainda como na primeira festa, o estudante abusou um pouco dos licores; mas, agora, em vez de pegar no sono, deu-lhe a bebedeira para se abrir às francas com a dona da casa, logo que a pilhou sozinha no terraço, ao fundo do segundo andar.

Hortênsia não se indignou com isso, mas também não se mostrou satisfeita; não repeliu com energia as palavras do sedutor, mas não se pode dizer que as acolhesse de boa cara; não deu, enfim, os beijos que ele pedia, mas por outro lado não retirou a mão que o rapaz agarrara entre as suas.

— Eu te adoro, meu amor, minha vida! dizia-lhe o velhaco, cheirando-lhe os grossos braços revestidos de filó. — Não te disse há mais tempo por falta de coragem, juro-te, porém, que é verdade! Amo-te, minha Hortênsia, amo-te com todo o entusiasmo, com toda a paixão de que sou capaz.

Ela o ouvia em silêncio, a pensar, os olhos ferrados a um ponto, o ar todo caído e acabrunhado como por uma espécie de desgosto; não se mexia, apenas, quando Amâncio teimava muito em querer beijá-la, desviava o corpo, sem voltar a cabeça.

— Mas, então?... perguntou ele.

— Então, o quê?... fez a outra como que interrompendo um longo pensamento.

— Não aceita o meu amor?...

— Não, decerto, não posso aceitar semelhante coisa!

— Por que, minha santa?...

— Não tenho esse direito; conheço os meus deveres e a minha responsabilidade. O mais que lhe posso dar é uma afeição de irmã, de amiga, uma afeição sagrada e pura!

Amâncio declarou que pensava desse modo justamente, mas agora queria um beijo, um só! o primeiro e último! — Nada mais sagrado e puro do que um beijo!...

— Nunca! disse ela, fugindo com o rosto.

Ele a tomou à força e a senhora ficou ressentida, chegou a ter um gesto de impaciência e teria fugido, se o estudante não a segurasse pela cintura.

— Solte-me!

— Perdoa, perdoa, meu amor! segredava ele, quase ajoelhado. — Bem quisera ser para contigo o mais respeitoso dos homens, mas não me pude conter, não me pude dominar... Perdoa!

— E jura que, de hoje em diante, não cairá noutra?...

— Juro! juro! mas não te revoltes contra mim!...

— E que nunca mais me faltará ao respeito?...

Amâncio fez um gesto afirmativo, no qual seus olhos, agora mais estrábicos sob a influência do vinho e do desejo, luziam suplicantes, como os olhos de um cão que tem fome.

— Pois bem, murmurou ela, meio compadecida. — Vá lá por esta vez! Está perdoado, mais fique prevenido de que, se repetir a graça, não respondo pelas consequências.

Amâncio ia fazer novos protestos, quando sentiu que alguém se aproximava; ergueram-se ambos, instintivamente, e, fugindo ao rumor, seguiram de braço dado para a sala.

Tocava-se uma valsa. Ele, sem consultar Hortênsia, enlaçou-lhe a cintura, e puseram-se os dois a rodar, a rodar, tão certos e tão leves, que prendiam a atenção de quantos lá se achavam. E Coqueiro, encostado à ombreira de uma porta, acompanhava-os com um sorriso de felicidade, no qual havia alguma coisa de orgulho de pai que se revê num filho prodigioso.

Mas o querido estudante, para o fim da festa, já não parecia o mesmo: as bebidas e o cansaço davam-lhe um ar grosseiro e desalinhado; já se lhe não via o colarinho, nem os punhos; a roupa empastava-lhe com o suor e a cabeleira desguedelhava-se sobre a testa. E vinham-lhe então pilhérias de mau gosto; tratava Amelinha quase licenciosamente e regamboleava as pernas e os braços no meio da quadrilha, como se estivesse num baile público. Já não dava excelência a ninguém e queria, por força, que Simões e Paiva, depois da festa, o acompanhassem a um passeio ao alto da Tijuca.

— Que diabo! rosnava ele, cuspilhando para os lados. — Ou bem que a gente se mete na pândega ou bem que não se mete!

Só se retiraram ao despontar da aurora. César, que adormecera desde as onze horas da noite, ficou para passar o dia com a família de Campos. Amâncio pôs um carro à disposição de Paiva e de Simões e seguiu no outro com as duas senhoras e Coqueiro.

Este toscanejava durante a viagem, ao lado da mulher que sumia na abundância de uma formidável capa de lã; enquanto que Amâncio, a charutar derreado para um canto da carruagem, adormecia com a mão direita esquecida entre as de Amélia.