Caxambú (1894)/Nha Chica
Nha Chica ou Tia Chica é uma celebridade em todo o sul de Minas.
Não é a feiticeira, que magnetisa os passarinhos e cura bicheiras; tambem não é a curandeira, que faz milagres no tratamento das doenças das ourinas, a minha rival, que não consegui ver.
Nha Chica é uma santa, dizem uns; uma modesta buenadicha assseveram outros; ella não conhece nem de nome Papus, Allan Kardec, nem Mesmer; não cultiva a magia, a feitiçaria, a chiromancia, o esoterismo, as sciencias occultas, o magnetismo, nem o hypnotismo.
Nha Chica é simplesmente uma pobre mulher analphabeta, uma fiel servade Deus cheia de fé, disse-me o Rev. vigario, — muito esmoler, que á força de ser consultada, e de ver aceitos seus conselhos, convenceu-se de que o céo inspira suas respostas.
De bôa vontade responde a todos, sem se suppôr prophetisa nem sybilla, disse-me ella.
« Eu repito o que me diz Nossa Senhora e nada mais. »
Não é portanto uma rival de Melle Lenormand, nem das cartomantes da rua S. José ou do becco do Cotovello.
Não corre, pois, riscos de ser queimada viva, nem de ter de explicar á policia como se lê no pó de café a ingenuidade humana.
Nha Chica é uma visita obrigada quando se vae a Baependy; a todos ella recebe com bondade.
Em Março de 1892 o coronel P. consultou-a sobre seu futuro: — « Terá de fazer breve uma viagem longinqua, penosa e arriscada; mas tenha fé em Deus que voltará com saude! »
De facto o coronel fez uma viagem a Cucuhy, a contragosto, dizem.
Consultaram-n'a um dia duas raparigas sobre casamento: — « A senhora será esposa de Christo, disse ella a uma já trintona, magra e dentuça, sua amiga casará breve ».
Com effeito um anno depois realisou-se a prophecia; dizem uns que o noivo apaixonára-se pela belleza dos olhos, outros que pela elegancia do porte; affirmaram-me, porém, más lingoas que dominava-o a idéa de melhorar o systema de cultura, adoptado nas fazendas do progenitor da rapariga.
Nha Chica descobre animaes fugidos, prognostica em caso de molestia, prevê o resultado de demandas, mas com a condição que a respeitem... em sua presença.
Um grupo de moças foi consultal-a: não tinham acabado de formular a primeira pergunta, começaram as risadinhas, os cochichos, os empurrõesinhos.
Nha Chica em tom solemne, mas sem zangar-se, respondeu:
— « Quem não tem educação e não teme a Deos, nada deve esperar » e indicou-lhes o caminho da rua.
Todos são bem recebidos, todos obtêm uma resposta, um conselho, uma promessa de oração; mas, cuidado, é preciso, simular ao menos, respeito, gravidade.
Alguns visitantes deixam-lhe esmolas, que ella reparte com os pobres e sua egreja; a ninguem ella pediu ainda.
As raparigas consultam-n’a muito sobre casamento; é o assumpto em que ella mais se tem pronunciado; entretanto, Nha Chica foi invulneravel; as settas de Cupido não a attingiram.
Francisca de Paula de Jesus ou Francisca Izabel « meu segundo nome, disse-me ella, porque minha mãe se chamava Izabel » nasceu em S. João d’El-Rey em 1808; veiu pequena para Baependy, onde se viu orphã na idade de 10 annos; um irmão constituia toda sua familia; morrendo, sua mãe lhe recommendára a vida solitaria, para melhor praticar a caridade e conservar a fé christã.
Seguindo esse conselho, ella não deixou a casa onde vivia, recusando o convite do irmão que a chamava para sua companhia.
Cresceu isolada do mundo, que a cercava, dedicando-se á caridade e á fé.
« Nunca senti necessidade de aprender a lêr », disse-me ella; « só desejei ouvir ler as escripturas santas; alguem fez-me esse favor, fiquei satisfeita. »
Rapazes de seu tempo pediram-n’a em casamento; recusou a todos, sem se mostrar contrariada; tornou-se até muito amiga do que mais insistira, grata pelas boas intenções... tinha, porém, missão a cumprir.
Moça ainda, Nha Chica já era a mãe dos pobres; pouco a pouco foi se estendendo a sua fama, porque os seus conselhos eram sempre muito ajuizados.
Para todos ella tinha palavras de consolação e de conforto, a promessa de uma oração, a predição do resultado de uma empreza ou um soccorro material.
Morto seu irmão, Nha Chica herdou uma fortunasinha, em ouro, que consagrou á edificação de uma igreja, junto á casinha onde crescera e attingira á velhice.
E’ ahi que ella recebe a todos indistinctamente, sempre alegre.
No alto de uma collina vê-se a igreja muito modesta; nos fundos, bate-se a uma portinha sempre meio cerrada ; — « Entre » — grita ella com uma vozinha secca, fina.
Penetra-se n’uma sallinha de aspecto monacal, aceiada, bem caiada, sempre meio escura, porque a janella e a porta nunca se abrem de todo; o chão de terra batida; a mobilia consta de seis cadeiras, dous bancos de páo, mesa, uma marqueza sem colchões nem lençóes.
— « E’ minha cella » disse-me ella, « mas não durmo sempre aqui. »
Quando cheguei estavam sobre a mesa umas velas de cera, castiçaes de altar, offertas que acabava de receber.
Nha Chica é uma velhinha, enrugada, morena, já encurvada; veste-se com muita simplicidade; um lenço grande, dobrado em triangulo, envolve-lhe sempre a cabeça e o pescoço.
Beijei-lhe a mão meio ankylosada, deformada pelo rheumatismo, secca; disse-lhe que desejava ha muito ouvir d’ella a narração de suas prophecias, de seus milagres, chamei-a de sybilla.
— « Não sou sybilla, disse ella sorrindo, mas satisfeita pelo cumprimento, nem nunca fiz milagres: eu rézo a Nossa Senhora, que me ouve e me responde; é por isso que posso responder com acerto, quando me consultam, e affirmar o que digo. »
E começou:
« Eu estava fazendo a sachristia: o mestre da obra dizia-me que os tijolos não bastariam: eu resei e respondi que os tijolos bastariam: até o ultimo dia elle insistia; foi a conta justinha: não sobrou um, mas também não faltou um só.
« Um dia o vigario annunciou-me que D. F. não amanheceria; acabava de ungil-a; tive pena; era uma mãe de numerosa familia; orei e mandei chamar o marido.
— « Não chore, disse eu, sua mulher ha de sarar, mas entre na igreja e prometta que sua mulher ha de vir com toda a familia em procissão, ha de ir até o altar de joelhos, beijar o chão e agradecer a Nossa Senhora.»
« O Dr. Manoel Joaquim, que me affirmou não poder salvar esta senhora, viu-a cumprir a promessa. »
Contou ella ainda outros milagres.
Cada vez que fazia uma pausa, dava um estalinho batendo com uma mão na outra, e repetia: « E' porque eu óro com fé.»
« Nossa Senhora me ouviu sempre, continuou ella. Eu só tenho medo de não poder acabar a minha igreja, por isso rezo toda noite assim:
— « Vancè não me engane, deixe-me acabar o frontespicio, depois pode me levar.»
« Eu hei de acabar a igreja, o poder de Deos é grande. Vancê viu no domingo passado como o sol estava amarello?
« Foi um eclipse, disse eu.
— « Qual! eu tambem vi na bacia; foi uma nuvensinha preta, ruim, que se prégou no sol; quem foi lá tiral-a? Só Deos, porque elle não quer o sol encoberto, nem parado. »
— « Mas, Nha Chica. o sol está parado, é a terra que se move. »
— « Modernismos! Não diga isso que é peccado. Olhe, Josué entrou na terra da promissão, porque fez parar o sol, para ter tempo de acabar a guerra, com licença de Deus. Então o sol não caminha?
« Está nos livros santos, que muita gente não conhece, mesmo doutores.
« O sol é obra de Deus e do Padre Eterno; Deus precisou de nenhum homem para fazer o mundo?
« Fez só.
« Qual é o doutor que sabia para ajudar?
« Elle pediu licença ao Padre Eterno, porque tinha muito respeito, veiu ao mundo e disse: « Faça-se o clarão para encher o vacuo de dia! » — Nasceu o sol. « Faça-se a lunha para encher o vacuo da noite! Faça-se as estrellas para enfeitar a noite de luzinhas miudas! »
« E começou tudo a andar á roda desde esse dia...»
Continuava ella a contar-nos a Genesis, interrompi-a:
— « Conte-nos suas prophecias, Nha Chica. »
— « Tinha-se feito aqui uma eleição do governo, estavam conversando comigo cinco doutores, juizes de direito, eleitores, juizes de paz e outros; um delles recebeu um papel do arame candongueiro que tinham tocado da Côrte; elle ficou branco e me pediu que rezasse a Deus, para ajudar a pôr o Imperador para fóra.
« Vieram outros ainda me perguntar se deviam ajudar.
« Porque? disse eu, é uma ingratidão, o Imperador é pai de todos. »
« O doutor ficou abatido, e eu fui fazer uma oração; quando voltei, disse que podiam gritar a Republica.
« Sahiram todos gritando.
« Depois eu soube que o papel de arame candongueiro era de um tal Deodoro, que queria ser rei.
« Depois disso, de vez em quando, lá vem alguem aqui me perguntar se pôde gritar a monarchia; e eu digo sempre que não, mas é porque Nossa Senhora não quer; por mim não, ... eu obedeço; mas não acho bom este despotismo; os homens agora estão amortecidos, e bulir com os homens sem pôr os corações socegados não é direito. Mas Deus escreve por linhas tortas: se elle mandou gritar a Republica, elle sabe o que fez e o que quer fazer ainda. Mas os homens parece que estão embrulhando tudo; um carro de lenha já custa dez mil réis, uma gallinha mil réis, um ovo dous cobres e meio; em que terra já se viu isto? o milho está subindo.
« Mas Nossa Senhora, não vendo as coisas direito, executa tudo.
« Não viu o que succedeu no Rio Grande? « Corria aqui uma falla muito ruim; em S. Paulo pagaram gente para ir lá guerrear; a tropa embarcou, mas o juiz da terra mandou prender tudo e não houve guerra. »
— « Mas, Nha Chica, elles estão guerreando. »
— « Não creia, foi tudo para a cadeia: não houve guerra, porque Deos disse que emquanto o arco-iris estiver sobre a terra os povos estarão em paz.
« Vancé não viu o arco-iris hontem?
« A guerra que a gente de S. Paulo queria fazer no Rio Grande era injusta; queriam vingar outra vez a Constituição, que é uma lei muito ruim; ella só é boa para os fazendeiros, porque com ella elles podem amarrar negros no pelourinho e mandar surrar até matar; é um despotismo peior do que o que temos agora.
« Mas eu estou vendo a republica uma coisa sem consolo, nem socego.
« A republica não tem cipó, está amarrando com capim.
« Os camaristas do rei olhavam para as estradas e para as fontes; a republica não tem camaristas, por isso as estradas estão perdidas.
« A lei que elles queriam fazer no Rio Grande é a do pae delles, um tal Gaspar; mas ha de vingar a lei civil para elles tambem, porque Deos não quer constituição. »
Nha Chica me confiou a chave da igreja, que fui visitar, acompanhado por um senhor, que encontrámos quando entrámos, a ouvir muito respeitosamente a boa velhinha.
Cheio da mais profunda convicção, coritou-nos elle coisas sobrenaturaes.
« Foi ella quem me aconselhou a sahir de Baependy; dizia-me ella que fosse para uma cidade grande.
« Com effeito aqui eu levei a vegetar muitos annos; em S. Paulo fui feliz e fiz um peculio; por isso quando voltei á minha terra mandei dourar os altares da igreja de Nha Chica.
« Uma vez aconselhou-me ella a desistir de uma demanda; não obedeci; perdi, apezar de estar cheio de razão. »
Referiu-me este senhor que mezes antes viéra ao Rio consultar um cirurgião; não quiz, porem, sujeitar-se á operação julgada necessaria, sem obter a approvação prévia de Nha Chica.
A igreja agrada muito pelo aceio e o zelo com que é conservada; quasi toda a ornamentação, imagens, vasos, alfaias, orgão, lampadas, são offertas feitas a Nha Chica, que não cessa de repetir os nomes dos que têm contribuido para sua obra, especialmente o do fallecido Visconde do Cruzeiro.
« Era muito devoto de minha igreja aquelle santo homem; todos os annos me fazia uma offerta de valor; amanhã mando rezar uma missa solemne no altar, que ha dous annos elle mandou dourar, e onde colloquei a imagem da Piedade, que elle me mandou de Roma, da cidade santa onde mora o papa, um mez antes de morrer; vou mandar dobrar os sinos desde muito cedo. De lá da bemaventurança elle me ha de agradecer.»
Os elogios que fiz da igreja enterneceram Nha Chica, que recitou-me muitas poesias de sua lavra.
— « E’ o Espirito Santo que inspira, porque tenho fé viva.»
Consultei-a sobre as-águas de Caxambú.
— « Só tenho fé na ferrea: póde ser que tendo-se fé em Nossa Senhora as outras lucrem. Mas eu creio que só se deve tomar da ferrea, mas só ao pôr do sol: e si ella não fizer effeito como sahe do poço, é bom pôr-lhe assucar.»
Já nos despediamos de Nha Chica, que nos agradecia a attenção com que a tinhamos ouvido, a mim especialmente, porque armado de lapis tomáva notas do interview, repetindo-me que « lesse bem o papel para ser verdadeiro quando contasse o que tinha ouvido, » quando entraram umas mulheres pedindo a chave da igreja para cumprirem uma promessa; traziam velas de céra e um prato com esmolas, colhidas pela cidade.
Não me compete dizer se Nha Chica é uma fanatica.
Exemplo de virtude, de abnegação, espirito de caridade, dominado pela fé, ella é uma inoffensiva buenadicha, convicta, mas que nunca se quiz impôr; habituaram-n’a ao papel de advinha, ella o tomou a sério e o faz sem esforço.
Ha quem já anteveja sua beatificação e ulterior canonisação.
Santa Francisca de Baependy!
E porque não?
Porque é pouco versada em politica, em astronomia, em metrificação?
Outros santos, menos milagrosos, foram mais pobres de espirito.
Santa Francisca de Baependy, ora pro nobis!
Amen.