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Cena parlamentar

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—Assembléa Legislativa Provincial; sessão de 17 de
  Março. — Entra em discussão o projecto de Lei,
  que concede reforma ao bravo Tenente Coronel
  Carlos Oliva.--O Snr. Deputado Payão previnio
  aos seus amigos de que sustentaria o projecto;
  ha febre de enthusiasmo; a curiosidade abraza
  os circumstantes; reina o mais profundo silencio :
  é meio dia!

   Alcides novo da eloquencia rara,
   Que da patria mil monstros debellára;
   O famoso orador d’immortal fama,
   Que d’alta Athenas no logar severo,
   Foi da solta eloquencia um novo Homero!
(Cand. Lusit.)



Amazona feroz, ao dar á luz,
Da prosapia enfunado, e de capuz,
Ensaia-se o Payão, frange o sobr’ôlho ;
O nariz se-lhe-agita, novo escolho

Nos mappas-narigaes inda não posto;
Mas contam Arlequins de estranho gosto
Que aquelle altivo beque ponteagudo
Já de molde servira, pelo entrudo,
Aos bicos de um chapéo de lazarista,
Que á gente da chalaça deu na vista...

Tossiu, gesticulou, tomou postura,
Torceu e retorceu alta figura...
Dez metros de casaca prolongada,
Como posta em cabide, ou pendurada,
Pendiam-lhe do corpo, um tanto arcado,
Ao peso do mandato celebrado ;
E os hombros encolhendo pouco e pouco,
Como quem dá remoque, e não quer trôco,
E8grouvinha o pescoço, os olhos vibra,
Qual a Ema arrojada ou ave-dibra,
E, de ponto, encarando o Presidente,
A palavra pedio, com voz plangente!...

Oh, caso grande, extranho, e não cuidado,
Que o parlamento poz embasbacado !...
—Pois fallou ? !.. Disse o Dutra, de soslayo
O Bicudo mirando, um tanto bayo...
—Pois fallou ; Sim Senhor ; foi elle mesmo,—
Redargue o Leonel, còr de torresmo,
O feroz Leonel, que, no collega,
Aguarda um orador d'atra refrega!

—Mas eu digo, accrescenta o Alvarenga,
Que este nosso Payão não é Capenga !...

— “Silencio, meus Senhores, d’este modo
“Declaro que suffóco, e me incommódo !„...

Assim se fez ouvir o Presidente
No seyo do motim, que ia crescente :

“Eu concedo a palavra ao Deputado,
“Que vem, perante vós, dar seu recado;
“Attentem todos, pois, que o caso é sério,
“Eu ergo a cruz de cedro—o Salvaterio !„...

Dos Pares nova grita se-alevanta,
A bramarem do demo pela manta.
Em rolantes descargas de apoyados
Retumbam corredores e telhados!

As aranhas dos tectos penduradas
Nas teyas affiguram-se embaladas,
Trementes, pelo estrondo espavoridas,
Ou de maior desastre apercebidas ;
Atiladas, pelludas ratazanas,
Do fracasso temendo às trabuzanas,
Pelos furos do chão, qual rayo ardente,
Sumiram-se de um jacto, de repente :
Os farçolas cocheiros lá do largo,
Ao costumeiro riso pondo embargo.
Treparam de tropel ás almofadas.
E boccas a cahir de escancaradas !

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Quedou-se de improviso a confusão ;
Ha profundo silencio no salão.

Foi-se erguendo o Payão ; e foi-se erguendo...
Cada vez mais seu vulto se estendendo
La a sala tomando, de alto a baixo,
Como os mastros compridos de um patacho ...

Todo o espaço medio mui vagaroso,
Com aspeito febril, com ar cerdoso ;
E os braços apoyando sobre a grade,
Macilento e sombrio, como o Frade,
Que um improviso engendra já vetusto,
D'este geito começa arcando o busto:

—“Augusto Presidente da Assembléa!
“Como disse Josè d’Arimathéa,
“Eu venho decantar o nosso Oliva,
“Tremendo esmurrador da gleba altiva ;
“Grande Chefe, Supremo Permanente,
“Que faz cursar na rua a brava gente !...

—Muito bem ! Sim Senhor !.. . e o Valadão
Arrebenta de riso em explosão !!...
Rebola o Paulo Egydio, como cobra:

—“Temos samba soberbo ; temos obra.—
—“Prosiga o Orador que nos deleita.„
—“Eu creio que é mandinga, ou cousa feita
Exclama no salão um Deputado,
Que na turba não pode ser notado.

—Avante, campeão da liberdade,
“D'este povo, degráo da magestade!... ”

Estruge a gargalhada, estalam palmas,
Deliram de prazer as tibias almas.
Transforma-se o salão em gargalhada,
E a lingua do Payão fica empacada!...

Como a colmeya d’atticas abelhas,
D’aureos oculos pendentes das orelhas,
O pesado Corrêa, vagaroso,
Selecto no olhar, tardo e manhoso,
Do seroso rapé tomando a caixa
Pitadas, pelas ventas, seis encaixa ;
E da trazeira aljaba, mui lampeiro,
Um lenço de Alcobaça, verdadeiro,
A’ guisa de bandeira, foi sacando,
Por sobre o balaustre o pendurando ;
E disse, para impor preceito á bulha,
Do dedo indicador fazendo agulha :

— “D’onde vem tão altiloquo berreiro ?
“Será briga hyperbolica em terreiro ?
“Já não ha liberdade n’esta caza,
“Que a palavra garanta a quem se emprasa
“De a verdade dizer, em prol da patria,
“Quaes Crispados impólutos da Bactria?!

“Do tumido Zambeze auras implora
“O Tantalo crucifero, e devora
“Em rábida, sangrenta e feroz lida
“Fatidicos horóscopos da vida !...
“Attonitos, em flosculos unidos,
“De trágicos saráos espavoridos,
“Titânicos heroes, de impafia illesos,
“Por ignias hecatombes indefesos,
“Jámais de Alli-Pachá soffreram corte,
“Ou Cérbero bimano-atro Mavorte !

“Oh ! porque, nos desertos de Bragança,
“Não morreste, Payão, de mal-de-pança ? !„

—A palavra não t.em o bom Corrêa !...—
Este a fronte enrugou; fez cara feia...

—Foi á parte, exclamou o Valadão;
Quem está com a palavra é o Payão...—

—O á parte o discurso favorece;
E, segundo Passaglia, é como a prece...—

—Dê de mão á sagrada theologia,
Ordena o Presidente.
—Ave, Maria !...

Retumba a confusão de novamente,
A campana sacode o Presidente,

Apavora-se o Mello; atrabilario
No seyo mette a mão, sacca um rosário!
A’s armas ! grita o povo; as galerias
Estrugindo ribombam zombarias;
Ferrou-se o Celidonio ao Zé-Luiz,
O Herodes famoso—Lopes Chaves—
Trez berros disparou, em notas graves;
O Telles poz a mão no suspensorio,
Olhando de revez para o Sertorio;
Espantado, tombando na cadeira,
O Silverio Luiz ergueo poeira! ...
Mas, por fim, acalmou-se a trovoada.
A Assembléa tornou-se sosegada.

No gesto merencorio, solitario,
Qual Pompeu taciturno, ou Bruto, ou Mario,
Imponente e soberbo se antolhava
O preclaro Payão, que meditava !...

Deixaram o salão os Deputados,
Sahindo a dois de fundo, compassados,
E foram commentar, scena implacavel!
Do orador a estréa memoravel...

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Oh, Payão ! Oh, Payão ! lição tremenda!
Este caso aos vindouros recommenda!

Aqui tombou, ao som da tempestade,
De Bragança a gigante Potestade!,..

E os éccos da floresta, e os condores,
Que serão d’este facto os narradores,
Aos gados fallarão e ás hervinhas
Do emporio de luz, que n’alma tinhas.

(Publicado no n. 2 do Polichinello de 23 de Abril de 1876)