Cidades Mortas (3ª edição)/A «Cruz de Ouro»
A «Cruz de Ouro»
— Entre, quem é.
— O «Feroz» não está solto?
— E´ você, compadre? Suba!..
Um barbaças de oculos e chale enrolado ao pescoço ringiu o portão de ferro e galgou com passos tropegos a escadinha que levava ao alpendre de ipoméas. Lá o aguardava, de cara amavel, um segundo barbaças, o coronel Liberato, vestido d'uma farda consentanea com sua bellicosidade: chambre de palha de seda, chinello cara de gato e gôrro de velludo negro com cercadura de ponto russo.
O que subia tambem era coronel. Coronel Antonio Leão Carneiro Lobo de Souza Guerra, ou simplesmente Nho Gué. Chegaram ambos áquelle alto posto militar pela. razão estrategica de colherem para mais de dez mil arrobas de café. Si em vez de dez colhessem apenas cinco mil, seriam majores ou capitães. Este intelligentissimo criterio economico do nosso militarismo é uma garantia de paz muito mais segura do que a Liga das Nações.
— Viva! Que milagre foi esse? disse o de cima abraçando o velho amigo.
— Quem é vivo sempre apparece, respondeu o outro, e eu ainda não morri apesar desta suffocação que me escangalha o peito.
— Você é o peito, eu a enxaqueca. Não valemos mais nada, compadre... Mas como lá vão todos? a comadre?
— Bôa, todos bons, isto é, a Chiquinha... Ui!
—A cotucada?
— Não, este ventinho encanado...
— Pois vamos entrar.
E os dois urumbevas penetraram na sala de fóra. A sala de fóra do Coronel Liberato merece um relatorio para que se deleite a posteridade em conhecer como era uma sala de visitas de coronel brasileiro no seculo XX. Cadeiras austriacas, sofá e cadeiras de balanço, tudo enfeitado com os crochézinhos das filhas. Mézinha central de cipó, com embrechados, obra de um «curioso» do logar. Duas almofadas no sofá, uma tendo um gato estufado, de lá, com olhos de vidro; outra, um papagaio de missanga verde — maravilhas devidas a uma afilhada prendadissima. Dois aparadores com vasos para flores artificiaes, figurinhas de louça — «bibelótes» como lá, dizia o dono, e varias curiosidades naturaes — caramujos, conchas, um ninho de João-de-barro, um mico sêcco e uma familia de içás vestidos. Nas paredes um espelho oval, dois retratos grandes a carvão, e photographias em porta-cartões de talagarça, bordados pelas meninas. Pendurado do gaz, um grande abacaxi de papel de seda. Piano de armario. Tapete com uma grande onça. Que mais? Iam-me esquecendo as duas escarradeiras com caraças de leões... Viva o naturalismo!
Entrados que foram os coroneis, refestelaram-se nas cadeiras de balanço, o do «ui!» com cautelas, gemidos e caretas ao dobrar as juntas. Liberato puxou o cigarro de palha e, emquanto afrouxava o fumo na palma, reatou a conversa.
— Ahn! com que então a d. Chiquinha....
— Compadre, entre nós não ha segredos; a doença della são amores. Quer casar, ora ahi tem!
— Não vejo mal nisso. Está na edade. Só si....
— Mas adivinhe lá com quem a tolinha embirrinchou de casar?
— Com o José de Paula!
— O filho da Nha Vé?
— Esse mesmo. Um tranca, sem vintem de seu, gente do Chicão de Paula... Que cabeça! Sahir do nicho de filha unica, onde vive como uma Nossa Senhorinha, para ligar-se a um lorpa de marido, ser criada, escrava delle! Si pudessemos, nós que temos experiencia da vida, abrir os olhos a essas maripozinhas tontas... Mas é inutil. Encasquéta-se-lhes na cabeça que o amor, o amôôr!, o amôôôr!! é tudo na vida, e adeus. O que nos vale é que o rapaz é pobre mas direitinho, quanto ao moral.
Liberato interveiu com cara purgativa.
— Homem, não sei. Não é por falar, mas não me cheira bem aquelle sujeitinho. Você o acha moralizado. Será. Mas a familia delle é dróga e a prudencia manda attender não só ás qualidades do galho como tambem ás da arvore. Olhe o que succedeu outro dia com o primo delle, o Chiquinho...
— Não soube de nada, compadre, que foi?
— Você anda no mundo da lua, homem! Refiro-me ao escandalo da Recreativa.
A palavra escandalo Nho Gué esqueceu o rheumatismo e arrastou a cadeira para mais perto.
— Escandalo? Esmiuce-me lá isso, compadre.
O coronel Liberato, gososo por contar uma novidade não sabida, limpou o pigarro da garganta e disse:
— Foi no ultimo domingo, na festa annual da Recreativa. Discursos recitativos, e uma peça, aquella indromina sempre. A sociedade mandou convite para toda a gente, os jornaes, os gremios e d'entre estes para a «Camelia Branca» da qual é secretario o Chiquinho de Paula. primo lá do teu. Por signal que para a «Camelia» foi um camarote, o sete, justamente aquelle donde assistimos ao «Poder do Ouro», lembra-se você?
— Si me lembro! Pois uma representação d'aquella é de esquecer? Montepin! e inda mais pelo Furtado! Noitão! Hoje é que não ha mais disso. São umas comediazinhas indecentes, e cinemas, e drogas.
— A Lucinda, hein? mulherão!
Este «mulherão» foi dito com um arregalar d'olho onde toda a concuspicencia retrospectiva se espojava arreitada.
— Nem fale! disse o outro num tom de saudade inexprimivel.
— Pois muito bem: — o theatro encheu-se. Estava lá o coronel Totó Fernandes com a familia; a familia do dr. Izidorinho; o major Gonçalves com a mulher — e por falar, como está acabada a d. Eliza?!
— E' verdade! Quem a viu e quem a vê! A Elizinha do Rincão como lhe chamavamos, menina sapéca, da pá virada, semostradeira até alli... Os annos, compadre, os annos... e suspirou.
— Só não vi lá gente da opposição. Isso, nenhum, nem o Zé Penétra, aquelle caradura.
Riram ambos, gostosamente, á lembrança da ausencia dos adversarios. (Esqueceu-nos dizer que estes coroneis faziam parte do directorio situacionista, columnas fortissimas que eram da força governamental do districto).
— Era alli entre nove e dez quando, de repente, si é capaz adívinhe, compadre, quem surge pelo sete a dentro?
Nho Gué aparvalhou a cara com o ar de quem não é capaz.
— A «Cruz de Quro»! concluiu o outro, de pé, chupando uma, duas, tres baforadas do cigarro apagado, num triumpho.
Nhe Gué pasmou:
— Não me diga!... '
— Pois é o que lhe digo: a «Cruz de Ouro»!
— Ora vejam só!...
O coronel Liberato riscou um phosphoro e proseguiu:
— Foi um reboliço, Toda a gente se pôz a murmurar, olhando uns para os outros. A familia do Totó quiz retirar-se. A mulher do Gonçalves virou bicha, abanava-se com frenesi, indignada da pouca vergonha. O dr. Izidoro, presidente da Recreativa, que no palco já se preparava para deitar o verbo, espia pelo buraco do panno, percebe o negocio, fica possesso, e berra lá dentro que da platéa se ouvia: que processava, que partia a cara: — um fim do mundo! Houve conferencias de um camarote com outro, e destes com os bastidores. Houve pedidos de informação á bilheteria. Era preciso desaggravar a moralidade publica offendida com a execravel presença da «coisa atôa», em festa puramente familiar. Afinal a policia interveiu. O delegado foi ter com a descarada e, com muito bons modos, pôl-a fóra. Só então, onze horas, começou o espectaculo. No primeiro intervallo, porém, soube-se tudo: o Chiquinho de Paula, secretario da «Camelia», recebera o convite para a festa, mas em vez de organizar uma commissão que dignamente representasse o gremio, péga do camarote e o dá á geréba, de quem é....
Aqui o coronel, para remate da phrase, fez uma cara de supremo enojo:
— .... O queridinho!
Voltando em seguida á cara anterior disse, grave e pundonorosamente, bamboleando a cabeça:
— Veja você que refinadissimo franca!
E concluiu, por fim, com desalentada severidade:
— E é com o primo d'um semelhante crapula que d. Chiquinha quer casar-se!...
Na noite desse dia, altas horas, Liberato deixou a enxaqueca em casa e foi sorrateiramente bater á porta da «Cruz de Ouro». Appareceu a criada. Confabularam em voz baixa.
— Não póde ser, disse a Liberia, está cá sêo coronel Nho Gué.
Liberato fez uma careta.
— E amanhã? perguntou.
— Amanhã é a vez do dr. Izidorinho.
— E depois d'amanhã?
— Quarta-feira? Deixe ver — fez calculos nos dedos e disse: quarta-feira é o dia de séo Gonçalves.
— E quinta?
— Pois as quintas não sabe que são de sto Totó?
Liberato não desanimou.
— E domingo?
A criada despejou uma gargalhada sonorosa.
— Os «home»! Pois então sinházinha não ha “de ter um descansinho na «somana»?
E fechou-lhe a porta na cara.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.