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Cidades Mortas (3ª edição)/As seis decepções

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As seis decepções



Puzeram-se de rumo á cidade os tres irmãozinhos. Moravam longe, na chacara; mas uma meia hora de estrada barrenta, com poças d'agua côr de café com leite, que ladeavam pela beirinha na ponta dos pés, e um tejuco meio molle, meio duro, empelotado pela pata dos bois, eram fracos empecilhos á delicia semanal de «ir á cidade». A cidade vivia-lhes no espirito como alvo de todos os desejos e fim supremo de suas vidinhas trefegas. Lá moravam os parentes, a tia Salomé, as Franças, os amigalhotes; era lá a egreja, a quitanda, o circo de cavallinhos, a «gente».

Após a reclusão de uma semana no ermo da chacara, ir gosar um domingo na cidade, fincar os cotovelos nas janellas da titia e perder toda uma tarde bem comprida a vêr e commentar a rua com repenicadas «boas-tardes» aos conhecidos, a «reparar» no vestido das moças, a achar «impagavel» a barriga monstruosa do Canella, vendeiro da esquina, e outras innocentes maldades mais — era um prazer de sapatear; mas para Maria José e para das Dores sómente, que o terceiro, Antonico, depois que deitara calças compridas, só pensava em bilhares e «troça de rapazes».

Naquelle dia iam com licença de se reunirem ás Franças, pousando lá. Caminhavam silenciosos, signal evidente de desaccordo, que grulhavam como pintasilgos quando ardiam na ancia de realizar um mesmo projecto. Cada um suspeitava no outro um objectivo que não o seu — qual não sabia, mas differente e antagonico; e isso era o diabo, pois que em birra nunca houve irmãos de forças tão eguaes. Nenhum cederia — e nestes casos o desfecho era privarem-se todos da festa para não «dar o gosto» ao parceiro.

A verdade era esta: Maisé tramára no ultimo domingo uma ida á dançata semanal do Recreativo; Antonico uma noitada de cavallinhos e das Dores uma visita aos presepes; e como cada qual contasse reduzir os outros á sua idéa, cuidadosamente a calaram durante a semana inteira. Mas estava imminente a lucta e cada cabecinha ia ruminando a melhor tactica para vencer.

Aquelle silencio em que se escondiam era a pedra onde afiavam as armas — razão por que vieram mudos até meio caminho. Alli a necessidade d'uma explicação definitiva desatou a lingua ao mais impaciente dos tres.

Das Dores, com habil manha, quebrou o gelo.

— Os presepes este anno dizem que estão lindos! O da Nhaninha Calabró é todo de botões e conchas. O da Fidencia tem tres monjolos que não param.

Tonico, percebendo o truque, contraveiu, despotico..

— Isso é si fossemos aos presepes. Vamos mas é ao circo.

— Sem licença de mamãe, Tonico que é isso?... insinuou Maisé, entrincheirando-se para o combate.

Antonico bravateou.

— Qual mamãe! Quem manda aqui sou eu e como eu vou, vão vocês tambem.

— Vocês é sucia, que eu não vou.

— Nem eu, secundou Maisé.

— Veremos.

Calaram-se de novo. A questão clareava em parte. Só Maisé conservava occulta a sua idéa, fiada na victoria do tercius. Uns minutos passados, das Dores atirou novo bóte.

— Escavallinho! — disse, com bico de desprezo — uma coisa que ha sempre; presepe, ao menos, é uma só vez no anno.

— Mas é sempre a mesma bobagem, obtemperou Tonico; quem viu um, viu todos. Uma folharada de mato. Para ver mato não é preciso vir á cidade. Escavallinho, sim! Companhia boa! Só o homem que come fogo...

Das Dores casquinou uma risada de escarneo.

— Olha o bobo que acredita nessas coisas, tamanho moço! Aquillo é fogo de mentira que até eu como!

Maisé veiu em seu auxilio com argumentos novos.

— Escavallinho é divertimento de gentinha, negrada, moleques.

Tonico esbravejou que era mentira, que lá ia muita gente boa, a familia do dr. Moura não perdia uma noite, e quanto ao homem que comia fogo, comia-o de verdade. Ellas é que eram umas bobas.

Houve nova pausa. Avistavam já a torre da matriz. Mais cinco minutos e estariam em casa das Franças. Urgia, portanto, liquidar a divergencia. Maisé julgou azado o momento para a sua cartada.

— Pois ha um meio: em vez de irmos aos presepes ou ao circo, vamos ao baile do Recreativo.

Os outros perceberam-lhe incontinenti o manejo e Tonico rompeu.

— A lambeta quer ir sapecar com o Vivi, não é? Uma óva!

E, categorico, escandindo as palavras:

— Eu vim pa-ra ir ao cir-co.

— E eu pa-ra ver pre-se-pes.

— E eu pa-ra o sa-ráu. Se vocês não querem ir ao saráu eu volto d'aqui.

Maisé parou, firme e imperiosa. Pararam os tres. Entreolharam-se com olhos raivosos.

— Se não se resolvem a ir ao circo eu...

— Eu, que?

— Eu volto para casa.

— Pois tambem eu volto, porque vim para molecagens.

— Você é uma sirigaita!

— E você um ranhento que quer ser gente!

Embezerraram. Tonico na frente endireitou a largos passos para a chacara.

As irmãs seguiram-no. Preferiam privar-se da antegosada festa a ceder um palmo de terreno.

Por que?

Ah! Ó caso não era tão simples como parecia. Atrás de cada uma daquellas vontadezinhas irreductiveis se alapavam motivos muito serios. Um Lúlú esperava Das Dores no presepe da Calabró. Um Vivi combinara dançar cinco valsas com Maisé no Recreativo. E uma Chiquita mandára ao Tonico um bilhetinho dizendo que iam todos de sua casa ao «circulo de escavalinho» onde esperava encontral-o sob pena de «namorar outro porque é muito dificel amar gente que abita longe».

Eis porque, nesse dia, as decepções attingiram o numero de seis...





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